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Folhas de Relva

 med.00400.001.jpg  med.00400.002.jpg  med.00400.003.jpg FOLHAS 
  DE RELVA 
 
Walt Whitman 
  
  
 
TEXTO INTEGRAL 
  Série Ouro 
  TRADUÇÃO: LUCIANO ALVES MEIRA 
 
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Os Objetivos, A Filosofia E A Missão Da Editora Martin Claret

O principal Objetivo da MARTIN CLARET é continuar a desenvolver uma grande e poderosa empresa editorial brasileira, para melhor servir a seus leitores.

A Filosofia de trabalho da MARTIN CLARET consiste em criar, inovar, produzir e distribuir, sinergicamente, livros da melhor qualidade editorial e gráfica, para o maior número de leitores e por um preço economicamente acessível.

A Missão da MARTIN CLARET é conscientizar e motivar as pessoas a desenvolver e utilizar o seu pleno potencial espiritual, mental, emocional e social.

A MARTIN CLARET está empenhada em contribuir para a difusão da educação e da cultura, por meio da democratização do livro, usando todos os canais ortodoxos e heterodoxos de comercialização.

A MARTIN CLARET, em sua missão empresarial, acredita na verdadeira função do livro: o livro muda as pessoas.

A MARTIN CLARET, em sua vocação educacional, deseja, por meio do livro, claretizar, otimizar e iluminar a vida das pessoas.

Revolucione-se: leia mais para ser mais!

 med.00400.005.jpg COLEÇÃO A OBRA-PRIMA DE CADA AUTOR 
  Série Ouro 
  
  
 
FOLHAS 
  DE RELVA
Walt Whitman 
  
  
 
TEXTO INTEGRAL MARTIN CLARET
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CRÉDITOS

© Copyright desta tradução: Editora Martin Claret, 2005

  • IDEALIZAÇÃO E COORDENAÇÃO 
      Martin Claret
  • ASSISTENTE EDITORIAL 
      Rosana Gilioli Citino
  • CAPA 
      Ilustração 
      Marcellin Talbot
  • MIOLO 
      Revisão 
      Lilian de Aquino 
      Durval Cordas
  • Tradução 
      Luciano Alves Meira
  • Projeto Gráfico 
      José Duarte T. de Castro
  • Direção de Arte 
      José Duarte T. de Castro
  • Digitação 
      Graziella Gatti Leonardo
  • Editoração Eletrônica 
      Editora Martin Claret
  • Fotolitos da Capa 
      OESP
  • Papel 
      Off-Set, 70g/m²
  • Impressão e Acabamento 
      Paulus Gráfica

Editora Martin Claret Ltda. - Rua Alegrete, 62 - Bairro Sumaré 
  CEP: 01254-010 - São Paulo - SP 
  Tel.: (11) 3672-8144 - Fax: (11) 3673-7146

www.martinclaret.com.br / editorial@martinclaret.com.br

Agradecemos a todos os nossos amigos e colaboradores — pessoas físicas e jurídicas — que deram as condições para que fosse possível a publicação deste livro.

1ª REIMPRESSÃO - 2008

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A história do livro e a coleção "A Obra-Prima de Cada Autor"

Que é o livro? Para fins estatísticos, na década de 1960, a UNESCO considerou o livro "uma publicação impressa, não periódica, que consta de no mínimo 49 páginas, sem contar as capas".

O livro é um produto industrial.

Mas também é mais do que um simples produto. O primeiro conceito que deveríamos reter é o de que o livro como objeto é o veículo, o suporte de uma informação. O livro é uma das mais revolucionárias invenções do homem.

A Enciclopédia Abril (1972), publicada pelo editor e empresário Victor Civita, no verbete "livro" traz concisas e importantes informações sobre a história do livro. A seguir, transcrevemos alguns tópicos desse estudo didático sobre o livro.

O livro na Antiguidade

Antes mesmo que o homem pensasse em utilizar determinados materiais para escrever (como, por exemplo, fibras vegetais e tecidos), as bibliotecas da Antiguidade estavam repletas de textos gravados em tabuinhas de barro cozido. Eram os primeiros "livros", depois progressivamente modificados até chegarem a ser feitos — em grandes tiragens — em papel impresso mecanicamente, proporcionando facilidade de leitura e transporte. Com eles, tornou-se possível, em todas as épocas, transmitir fatos, acontecimentos históricos, descobertas, tratados, códigos ou apenas entretenimento.

Como sua fabricação, a função do livro sofreu enormes modifi-  med.00400.008.jpg cações dentro das mais diversas sociedades, a ponto de constituir uma mercadoria especial, com técnica, intenção e utilização determinadas. No moderno movimento editorial das chamadas sociedades de consumo, o livro pode ser considerado uma mercadoria cultural, com maior ou menor significado no contexto socioeconômico em que é publicado. Enquanto mercadoria, pode ser comprado, vendido ou trocado. Isso não ocorre, porém, com sua função intrínseca, insubstituível: pode-se dizer que o livro é essencialmente um instrumento cultural de difusão de idéias, transmissão de conceitos, documentação (inclusive fotográfica e iconográfica), entretenimento ou ainda de condensação e acumulação do conhecimento. A palavra escrita venceu o tempo, e o livro conquistou o espaço. Teoricamente, toda a humanidade pode ser atingida por textos que difundem idéias que vão de Sócrates e Horácio a Sartre e McLuhan, de Adolf Hitler a Karl Marx.

Espelho da sociedade

A história do livro confunde-se, em muitos aspectos, com a história da humanidade. Sempre que escolhem frases e temas, e transmitem idéias e conceitos, os escritores estão elegendo o que consideram significativo no momento histórico e cultural que vivem. E, assim, fornecem dados para a análise de sua sociedade. O conteúdo de um livro — aceito, discutido ou refutado socialmente — integra a estrutura intelectual dos grupos sociais.

Nos primeiros tempos, o escritor geralmente vivia em contato direto com seu público, que era formado por uns poucos letrados, já cientes das opiniões, idéias, imaginação e teses do autor, pela própria convivência que tinha com ele. Muitas vezes, mesmo antes de ser redigido o texto, as idéias nele contidas já haviam sido intensamente discutidas pelo escritor e parte de seus leitores. Nessa época, como em várias outras, não se pensava na enorme porcentagem de analfabetos. Até o século XV, o livro servia exclusivamente a uma pequena minoria de sábios e estudiosos que constituíam os círculos intelectuais (confinados aos mosteiros durante o começo da Idade Média) e que tinham acesso às bibliotecas, cheias de manuscritos ricamente ilustrados.

Com o reflorescimento comercial europeu, nos fins do século XIV, burgueses e comerciantes passaram a integrar o mercado livreiro  med.00400.009.jpg da época. A erudição laicizou-se e o número de escritores aumentou, surgindo também as primeiras obras escritas em línguas que não o latim e o grego (reservadas aos textos clássicos e aos assuntos considerados dignos de atenção). Nos séculos XVI e XVII, surgiram diversas literaturas nacionais, demonstrando, além do florescimento intelectual da época, que a população letrada dos países europeus estava mais capacitada a adquirir obras escritas.

Cultura e comércio

Com o desenvolvimento do sistema de impressão de Gutenberg, a Europa conseguiu dinamizar a fabricação de livros, imprimindo, em cinqüenta anos, cerca de 20 milhões de exemplares para uma população de quase 10 milhões de habitantes, cuja maioria era analfabeta. Para a época, isso significou enorme revolução, demonstrando que a imprensa só se tornou uma realidade diante da necessidade social de ler mais.

Impressos em papel, feitos em cadernos costurados e posteriormente encapados, os livros tornaram-se empreendimento cultural e comercial: os editores passaram logo a se preocupar com melhor apresentação e redução de preços. Tudo isso levou à comercialização do livro. E os livreiros baseavam-se no gosto do público para imprimir, principalmente obras religiosas, novelas, coleções de anedotas, manuais técnicos e receitas.

Mas a porcentagem de leitores não cresceu na mesma proporção que a expansão demográfica mundial. Somente com as modificações socioculturais e econômicas do século XIX — quando o livro começou a ser utilizado também como meio de divulgação dessas modificações e o conhecimento passou a significar uma conquista para o homem, que, segundo se acreditava, poderia ascender socialmente se lesse — houve um relativo aumento no número de leitores, sobretudo na França e na Inglaterra, onde alguns editores passaram a produzir obras completas de autores famosos, a preços baixos. O livro era então interpretado como símbolo de liberdade, conseguida por conquistas culturais. Entretanto, na maioria dos países, não houve nenhuma grande modificação nos índices porcentuais até o fim da Primeira Guerra Mundial (1914/18), quando surgiram as primeiras grandes tiragens de um só livro, principalmente romances, novelas e textos didáticos. O número elevado de  med.00400.010.jpg cópias, além de baratear o preço da unidade, difundiu ainda mais a literatura. Mesmo assim, a maior parte da população de muitos países continuou distanciada, em parte porque o livro, em si, tinha sido durante muitos séculos considerado objeto raro, atingível somente por um pequeno número de eruditos. A grande massa da população mostrou maior receptividade aos jornais, periódicos e folhetins, mais dinâmicos e atualizados, e acessíveis ao poder aquisitivo da grande maioria. Mas isso não chegou a ameaçar o livro como símbolo cultural de difusão de idéias, como fariam, mais tarde, o rádio, o cinema e a televisão.

O advento das técnicas eletrônicas, o aperfeiçoamento dos métodos fotográficos e a pesquisa de materiais praticamente imperecíveis fazem alguns teóricos da comunicação de massa pensarem em um futuro sem os livros tradicionais (com seu formato quadrado ou retangular, composto de folhas de papel, unidas umas às outras por um dos lados). Seu conteúdo e suas mensagens (racionais ou emocionais) seriam transmitidos por outros meios, como por exemplo microfilmes e fitas gravadas.

A televisão transformaria o mundo todo em uma grande "aldeia" (como afirmou Marshall McLuhan), no momento em que todas as sociedades decretassem sua prioridade em relação aos textos escritos. Mas a palavra escrita dificilmente deixaria de ser considerada uma das mais importantes heranças culturais, entre todos os povos.

Através de toda a sua evolução, o livro sempre pôde ser visto como objeto cultural (manuseável, com forma entendida e interpretada em função de valores plásticos) e símbolo cultural (dotado de conteúdo, entendido e interpretado em função de valores semânticos). As duas maneiras podem fundir-se no pensamento coletivo, como um conjunto orgânico (onde texto e arte se completam, como, por exemplo, em um livro de arte) ou apenas como um conjunto textual (onde a mensagem escrita vem em primeiro lugar — em um livro de matemática, por exemplo).

A mensagem (racional, prática ou emocional) de um livro é sempre intelectual e pode ser revivida a cada momento. O conteúdo, estático em si, dinamiza-se em função da assimilação das palavras pelo leitor, que pode discuti-las, reafirmá-las, negá-las ou transformá-las. Por isso, o livro pode ser considerado instrumento cultural capaz de libertar informação, sons, imagens, sentimentos e idéias através do tempo e do espaço. A quantidade e a qualidade de  med.00400.011.jpg idéias colocadas em um texto podem ser aceitas por uma sociedade, ou por ela negadas, quando entram em choque com conceitos ou normas culturalmente admitidos.

Nas sociedades modernas, em que a classe média tende a considerar o livro como sinal de status e cultura (erudição), os compradores utilizam-no como símbolo mesmo, desvirtuando suas funções ao transformá-lo em livro-objeto. Mas o livro é, antes de tudo, funcional — seu conteúdo é que lhe dá valor (como os livros de ciências, filosofia, religião, artes, história e geografia, que representam cerca de 75% dos títulos publicados anualmente em todo o mundo).

O mundo lê mais

No século XX, o consumo e a produção de livros aumentaram progressivamente. Lançado logo após a Segunda Guerra Mundial (1939/45), quando uma das características principais da edição de um livro eram as capas entreteladas ou cartonadas, o livro de bolso constituiu um grande êxito comercial. As obras — sobretudo best sellers publicados algum tempo antes em edições de luxo — passaram a ser impressas em rotativas, como as revistas, e distribuídas às bancas de jornal. Como as tiragens elevadas permitiam preços muito baixos, essas edições de bolso popularizaram-se e ganharam importância em todo o mundo.

Até 1950, existiam somente livros de bolso destinados a pessoas de baixo poder aquisitivo; a partir de 1955, desenvolveu-se a categoria do livro de bolso "de luxo". As características principais destes últimos eram a abundância de coleções — em 1964 havia mais de duzentas, nos Estados Unidos — e a variedade de títulos, endereçados a um público intelectualmente mais refinado. A essa diversificação das categorias adiciona-se a dos pontos-de-venda, que passaram a abranger, além das bancas de jornal, farmácias, lojas, livrarias, etc. Assim, nos Estados Unidos, o número de títulos publicados em edições de bolso chegou a 35 mil em 1969, representando quase 35% do total dos títulos editados.

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Proposta da coleção "A Obra-Prima de Cada Autor"

"Coleção" é uma palavra há muito tempo dicionarizada e define o conjunto ou reunião de objetos da mesma natureza ou que têm alguma relação entre si. Em um sentido editorial, significa o conjunto não-limitado de obras de autores diversos, publicado por uma mesma editora, sob um título geral indicativo de assunto ou área, para atendimento de segmentos definidos do mercado.

A coleção "A Obra-Prima de Cada Autor" corresponde plenamente à definição acima mencionada. Nosso principal objetivo é oferecer, em formato de bolso, a obra mais importante de cada autor, satisfazendo o leitor que procura qualidade.*

Desde os tempos mais remotos existiram coleções de livros. Em Nínive, em Pérgamo e na Anatólia existiam coleções de obras literárias de grande importância cultural. Mas nenhuma delas superou a célebre biblioteca de Alexandria, incendiada em 48 a.C. pelas legiões de Júlio César, quando estes arrasaram a cidade.

A coleção "A Obra-Prima de Cada Autor" é uma série de livros a ser composta por mais de 400 volumes, em formato de bolso, com preço altamente competitivo, e pode ser encontrada em centenas de pontos-de-venda. O critério de seleção dos títulos foi o já estabelecido pela tradição e pela crítica especializada. Em sua maioria, são obras de ficção e filosofia, embora possa haver textos sobre religião, poesia, política, psicologia e obras de auto-ajuda. Inauguram a coleção quatro textos clássicos: Dom Casmurro, de Machado de Assis; O Príncipe, de Maquiavel; Mensagem, de Fernando Pessoa e O Lobo do Mar, de Jack London.

Nossa proposta é fazer uma coleção quantitativamente aberta. A periodicidade é mensal. Editorialmente, sentimo-nos orgulhosos de poder oferecer a coleção "A Obra-Prima de Cada Autor" aos leitores brasileiros. Nós acreditamos na função do livro.

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Introdução

LUCIANO ALVES MEIRA*

Finalmente, surge no Brasil a primeira tradução integral de Folhas de Relva, obra-prima do poeta norte-americano Walt Whitman. Já era tempo de nos aproximarmos dessa obra sobre a qual o sensacionista poeta Álvaro de Campos, um dos mais conhecidos heterônimos de Fernando Pessoa, escreveu uma candente confissão, em sua famosa "Saudação a Walt Whitman":

Nunca posso ler os teus versos a fio. . . Há ali sentir demais. . . [. . .] E cheira-me a suor, a óleos, a atividade humana e mecânica. Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou se vivo, Não sei se o meu lugar real é o mundo ou nos teus versos, Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural.

De fato, Fernando Pessoa foi para os leitores de língua portuguesa o primeiro elo com Whitman. Há uma clara linha de influência entre Whitman, o poeta da Liberdade, e Fernando Pessoa, que experimenta e assim apresenta o poeta de Folhas de Relva:

Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor, Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso! .......................................................................... Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos, Concubina fogosa do universo disperso,  med.00400.014.jpg Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas, Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões, Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações, Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo, Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes, E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [. . .] E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas, De mãos dadas, Walt, dançando o universo na alma.

Até a idade de 36 anos, não havia sinal de que Whitman se tornaria uma importante figura literária dos Estados Unidos. Em 1855, publicou, às suas custas, a primeira edição de Folhas de Relva, contendo 12 longos poemas que causaram estranheza, silêncio, polêmica e severas críticas da imprensa e do mundo literário nos Estados Unidos. O mais eminente escritor norte-americano da época, o filósofo transcendentalista Ralph Waldo Emerson, foi a grande exceção, pois saudou o poeta com entusiasmo: "Felicito-o pelo seu pensamento livre e corajoso, o que me dá uma grande alegria. Encontro coisas incomparavelmente ditas, como o devem ser. Encontro essa ecoragem na maneira de tratar os temas, que tanto prazer dá e que só uma ampla visão pode inspirar. Saúdo-o no começo de uma grande carreira".

Whitman é hoje considerado um dos precursores da moderna literatura mundial. Assistiu de perto às agruras da Guerra de Secessão e ao veloz crescimento americano na segunda metade do século XIX, tornando-se o principal intérprete e cantor dessa epopéia de contradições. Foi também poeta do corpo e do desejo, do desafio e da exaltação mística, buscando sempre um tom genuinamente autóctone para a poesia do Novo Mundo. Embora pouco popular até a sua morte, Whitman granjeou para si, ainda em vida, a admiração de expoentes da literatura mundial, como Oscar Wilde, Algernon Charles Swinburne, Robert Louis Stevenson e Alfred Lord Tennyson, além de Emerson, já citado. O festejado erudito e crítico norte-americano de nossos dias, Harold Bloom, considera Whitman, em uma perspectiva histórica, o maior poeta dos Estados Unidos, ao lado de Emily Dickinson. Diz ainda da influência que  med.00400.015.jpg essa figura representativa do transcendentalismo norte-americano exerceu sobre ele: "No verão de 1854, o poeta leu os ensaios de Emerson com grande atenção, e com conseqüências maravilhosas, pois foi então que iniciou a escrever o que viria a se chamar 'Canção de mim mesmo'. As primeiras versões registradas no caderno expressam extraordinária sensação de alívio: Sou a tua voz — Ela estava presa em ti — Em mim começa a falar./ Celebro a mim mesmo, para celebrar cada homem e cada mulher vivos [. . .]".

O próprio Whitman reconheceu o efeito que as leituras de Emerson tiveram sobre si: "Eu cozinhava, cozinhava, cozinhava — Emerson me pôs em ponto de fervura".

Com Folhas de Relva, pode ser considerado um dos mais importantes precursores da poesia moderna e, sem dúvida, um dos pouquíssimos autores do século XIX a libertar-se, na América, dos modelos europeus. Guardadas as distinções peculiares, os escritores dos Estados Unidos viviam, até Whitman, a mesma contradição que os autores brasileiros experimentavam até Machado de Assis e Mário de Andrade: um hibridismo cultural que consistia em revestir os temas nacionais de códigos europeus, formas esvaziadas de sentido, deslocadas de seu processo social.

Whitman pagou um alto preço de incompreensão pela sua capacidade de inovar. Tinha consciência da importância do que estava fazendo e até tentava de diversas formas estabelecer-se no panteão dos grandes escritores de seu tempo, mas contentava-se com a repercussão escandalosa que promovia entre alguns e com a falta de interesse das massas pelos cânticos que, com tanto amor, tecera para elas. Por isso escreveu: "O meu livro é um candidato para o futuro. Toda a arte original, afirma Taine1, de qualquer modo, é regulada por si mesma, e nenhuma arte original pode ser regulada por algum fator externo; ela carrega o seu próprio contrapeso, e não o recebe de alguma outra parte — vive de seu próprio sangue — um consolo para as minhas contusões freqüentes e minha intratável vaidade". Ele sabia que os efeitos de sua obra na consciência humana surgiriam com o tempo, e vaticinava:

1  med.00400.016.jpg Esperanças, desejos, aspirações, ponderações, vitórias, miríades de leitores, Revestindo, contornando, cobrindo — depois de incrustações de eras e eras, Somente então poderão estas canções alcançar fruição.

Whitman acreditava ter rompido os estreitos limites do convencional. Em "Um olhar retrospectivo sobre as estradas viajadas"2, afirmava que "o Mundo Antigo teve os poemas dos mitos, das ficções, do feudalismo, das conquistas, das castas, das guerras dinásticas e de personagens e façanhas esplêndidas e excepcionais, que foram grandes; mas o Novo Mundo precisa dos poemas das realidades e da ciência, e da média democrática e da eqüidade básica, que hão de ser maiores". E realça as circunstâncias sociais que condicionaram o seu trabalho: "Sei muito bem que minhas Folhas não poderiam ter emergido ou ter sido confeccionadas em qualquer outra era que não fosse a segunda metade do século XIX, nem em outra terra que não fosse a América democrática, e nem em uma circunstância distinta do triunfo absoluto dos exércitos da União Nacional".

Os ingredientes que fizeram de Folhas de Relva uma obra revolucionária em seu tempo são os mesmos que causaram grande polêmica na época de seu lançamento: a escolha de temas corriqueiros, o foco sobre o homem comum, a desabrida sensualidade, a licenciosidade poética, a linguagem às vezes chã, as estranhas enumerações, a equiparação de valor entre corpo e alma... Mas o que coloca Whitman na condição de gênio da literatura mundial é o fato de ter feito tudo isso sem perder o fio da iluminação espiritual, que é a grande causa, a causa das causas que o animam. Whitman é menos o cantor da democracia do que o cantor do Eu profundo; por isso, sentir o espírito de sua poesia, a sua misteriosa fórmula de sugerir sem jamais concretizar, a sua estranha e às vezes grosseira espontaneidade lírica, é para o leitor "de primeira viagem" o caminho mais seguro de se evitar a frustração. Como alimento da alma, os poemas de Whitman não têm o apelo condimentado das emoções fáceis, de uma sonoridade harmoniosa, de uma estética superficial e dos lugares-comuns. Saboreá-lo será sempre um exercício de paciência e de sensibilidade até que se obtenha o êxtase de uma convivência 2  med.00400.017.jpg sublime que somente pode se estabelecer no lugar que Fernando Pessoa denomina de "alma interna". Nesse sentido, Whitman logrou o maior de todos os seus objetivos literários, o de fazer com que a obra e o autor se tornassem um único fenômeno:

Companheiro, este não é um livro, Aquele que toca isto toca um homem, (Será noite? Estamos juntos aqui, sozinhos?). Eu sou aquele que abraças e aquele que te abraça, Eu salto destas páginas para dentro de teus braços — a morte me chama.

Para Whitman a essência precisava exalar de sua obra a qualquer custo:

Não foi dito sobre os meus cantos que eles se afastaram da arte? Que deixei de fundir dentro deles as regras da precisão e da delicadeza? Que a pulsação comedida do lirista, a graça do templo ornamentado, que as colunas e os arcos polidos foram esquecidos? Mas tu revelaste aqui — espírito que formou este cenário, Que meus cantos lembraram-se de ti.

Naturalmente, Whitman nunca ouviu falar em Teilhard de Chardin, pois no ano de seu falecimento nos Estados Unidos (1892), Chardin, com apenas 10 anos de idade, fazia na França a sua primeira comunhão. Contudo, há muitos pontos de convergência entre o que concluiu o renomado filósofo e paleontólogo francês e a essência dos versos do grande poeta do Brooklin. Estas palavras de Chardin poderiam ser tidas em muitos aspectos como o fundamento da poesia whitmaniana:

  • 1. "Cada um de nós, quer queira quer não, liga-se, por todas as suas fibras materiais, orgânicas e psíquicas, a tudo que o circunda."3
  • 3
  •  med.00400.018.jpg
  • 2. "Cada indivíduo carrega em si algo de todo o interesse final do Cosmo."4
  • 3. "Quanto mais o Homem se tornar Homem, menos aceitará se mover senão em direção do interminavelmente e indestrutivelmente novo [. . .] o Absoluto."5
  • 4. "Não há, concretamente, Matéria e Espírito, mas existe só Matéria tornando-se Espírito. Não há no Mundo, nem Espírito, nem Matéria: o estofo do Universo é o Espírito-Matéria."6
  • 5. "Eu creio que o Universo é uma Evolução. Eu creio que a Evolução vai para o Espírito. Eu creio que o Espírito, no Homem, se conclui no Pessoal. Eu creio que o Pessoal supremo é o Cristo-Universal."7

Se a quarta citação de Chardin nos remete aos poemas sensacionistas em que Whitman sacraliza o corpo físico, descrevendo-o como um altar em que se pode encontrar a essência divina, a número cinco nos faz pensar no que diz o crítico norte-americano Harold Bloom:

[. . .] os dois maiores poetas dos Estados Unidos, Walt Whitman e Emily Dickinson, alcançam o universal através do pessoal [. . .]. Os dois poetas, ao lado de Emerson, precursor de ambos, e Henry James, são os escritores mais influentes produzidos pelos Estados Unidos até o presente. [. . .] Os pais de Whitman eram seguidores do carismático Elias Hicks, pregador quacker, rebelde contrário às doutrinas normativas da seita, e um dos fundadores implícitos do que, segundo penso, deveria ser chamado Religião Norte-Americana, a fusão pós-cristã de vertentes gnósticas, órficas e entusiásticas. Há pouca diferença entre Hicks e Emerson, na condição de oradores da Luz interior; Hicks, tanto quanto Emerson, ressaltava a divindade do Eu, e negava a singularidade de Cristo.8

O saudoso filósofo brasileiro Huberto Rohden certamente diria 4 5 6 7 8  med.00400.019.jpg que Whitman e Pessoa expressam poeticamente aquilo que se pode chamar em filosofia de monismo panenteísta. Se para o monoteísta "só há um Deus", para o monista "só há Deus", ou seja, um único Ser que se manifesta e se revela em toda a criação, estando ao mesmo tempo imanente nela e transcendente a ela (eis o sentido das misteriosas palavras de Cristo: "Eu e o Pai somos um. Eu estou no Pai e o Pai está em mim, mas o Pai é maior do que eu").

Há um ensaio de Rohden sobre o pensamento de Teilhard de Chardin que esclarece o assunto com bastante propriedade9. Nas últimas páginas de O Fenômeno Humano, Chardin se defende das acusações de panteísmo de que vinha sendo alvo:

Para terminar e eliminar de uma vez para sempre os receios de panteísmo, constantemente evocados a propósito da evolução por certos campeões do espiritualismo tradicional — como não ver que, no caso de um Universo convergente tal como o apresentei, longe de nascer da fusão e da confusão dos centros elementares que ele reúne, o Centro universal de unificação (precisamente para exercer a sua função motora, coletora e estabilizadora) deve ser concebido como preexistente e transcendente. Panteísmo muito real, se quiserem (no sentido etimológico da palavra), mas panteísmo absolutamente legítimo: pois se, em fim de contas, os centros reflexivos do mundo não se fazem efetivamente senão "um com Deus", esse estado obtém-se não por identificação (tornando-se Deus tudo), mas por ação diferenciadora e comungante de amor (Deus todo em todos) — o que é essencialmente ortodoxo e cristão.

Rohden lamenta que Chardin não tenha utilizado o termo panenteísmo (tudo em Deus), em vez de panteísmo legítimo:

A palavra panenteísmo (pan-en-theô) foi recomendada pelo filósofo alemão Krause para precisar a inegável verdade de que o Infinito está presente em todos os Finitos. [. . .] O monista, ou panenteísta (o "panteísta legítimo" de Teilhard de Chardin) não separa Deus do mundo nem identifica Deus com o mundo, porque sabe que, como dizia Espinoza, "Deus é a alma do Universo, e o Universo é o corpo de Deus".

9  med.00400.020.jpg

Esse panenteísmo de Espinoza aparece claro na poesia de Whitman, em versos como estes:

Vós! Vós! A vital, a universal, a gigante força sem resistência, que não dorme, sempre calma, Segurando a Humanidade em vossas mãos abertas, como se fora um brinquedo efêmero Que, doente, sempre vos esquece! Pois que também vos esqueci, (Absorvido que estava nessas pequenas potências de progresso, política, cultura, riqueza, invenções, civilização), Perdi o meu reconhecimento de vosso poder sempre controlador, vós, poderosos, agonia dos elementos, No qual e sobre o qual flutuamos, no qual todos boiamos.

Em Fernando Pessoa o panenteísmo aparece vigoroso em muitos momentos. Tal como Whitman, seu mestre, o poeta sente o próprio corpo atravessado dessa luz imanente e transcendente:

Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar, E que há de passar por força, porque quando quero passar sou Deus! [. . .] Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida. O espírito que dá a vida neste momento sou EU! [. . .] Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus, Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa [. . .]10

É evidente que Whitman foi visto com suspeitas pelas correntes do cristianismo tradicional de sua época, mas certamente suas crenças caberiam nesta descrição de Rohden: Em nossos tempos aparece número cada vez maior de homens que, para além do cristianismo teológico, vislumbram a cristicidade 10  med.00400.021.jpg espiritual. Cada vez maior se torna a fome duma experiência direta de Deus, em vez duma simples crença em doutrinas sobre Deus. Essa intuição experiencial é de uma elite ainda muito pequena em comparação com a grande massa dos que não conseguem ultrapassar a crença tradicional.11

A mística monista de Whitman, a sua experiência de unidade cósmica, é a essência que perpassa a amplitude dos quadrantes de sua criação poética, a mesma experiência monista que embala Fernando Pessoa em sua inacreditável realização literária, a mesma elevação arrebatada e livre, a mesma transcendência às crenças infantis do dualismo que domina, há milênios, tanto a Ciência quanto a Religião. Álvaro de Campos e Whitman estão irmanados na percepção dos fenômenos quânticos que dissolvem toda a dualidade da relação sujeito/objeto: "Toda Matéria é Espírito porque matéria e espírito são nomes confusos/ dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho/ E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!", escreve o primeiro. "Cada átomo que há em mim igualmente habita em ti. [. . .] É a ânsia central em cada átomo [. . .]. Para retornar à sua divina fonte e origem, não importa a que distância esteja, potencialmente igual em todos os sujeitos e objetos, sem exceção", postula o segundo.

Harold Bloom é categórico em chamar Whitman de "O Cantor do Eu", mostrando a posição secundária que a defesa da democracia ocupa em sua obra: É difícil acompanhar Whitman; ele está sempre a passar e a nos ultrapassar [. . .]. Duvido que a abrangência de Whitman tenha muito a ver com o fato de ser ele o poeta da democracia, ainda que insistisse nessa identidade. Whitman, na verdade, é poeta hermético, hesitante, reservado e bem mais difícil do que se faz parecer [. . .] Sempre que penso em Whitman e recito seus versos em voz alta, deparo-me com o elegista do eu, o poeta da "Terra Noturna". Em Whitman, quatro grandes imagens se fundem: Noite, Morte, Mãe e Mar. Talvez o gênio de Walt Whitman fosse mais um ponto de chegada do que de partida. Os excluídos nele encontram voz, mas 11  med.00400.022.jpg o autêntico impacto do seu cantar não é tanto a democracia, mas o elevado custo da confirmação do eu, uma despesa total.12

Resta-nos apresentar alguma evidência do comportamento místico de Whitman no cotidiano para confirmar nossa tese de que a sua espiritualidade monista animava a realização de sua obra extraordinária. Essa evidência, fomo-la encontrar no livro-documentário Walt Whitman: Profeta da Liberdade, de Irineu Monteiro13, que pesquisou o amplo acervo biográfico que existe sobre o autor de Folhas de Relva. Se é pelos frutos que conhecemos a árvore, e se Whitman sempre desejou que sua poesia fosse uma expressão de sua personalidade espiritual, o interessantíssimo relato que se segue fala-nos muito sobre a obra: O Dr. Richard M. Bucke deixou observações importantes sobre Walt Whitman, especialmente pelo fato de se haver ligado a ele pessoalmente, como amigo e atento observador de sua personalidade e suas respostas ao mundo envolvente. Seu livro Walt Whitman, publicado em Filadélfia, por David McKay, é de 1883. O Cosmic Consciousness é de 1901. Neste último, Bucke destaca Whitman como inserido entre aqueles que alcançaram experiência cósmica, de ordem espiritual, em sua criatividade estética, na captação de mensagens que ultrapassam as fronteiras da literatura comum, de todos os dias. "Creio que toda a percepção do poeta — enfatiza — é excepcionalmente aguda, sua audição, principalmente. Não há som ou modulação de som perceptível a outrem que lhe escape, e parece que ele ouve muitas coisas inaudíveis à gente comum. Tenho ouvido falar a respeito da percepção dele sobre o crescimento da relva e das árvores expressando-se em folhas." E Bucke continua suas observações, dizendo que a ocupação favorita de Whitman parecia a de estar fora de casa, ao ar livre, em contato com a relva, as árvores, as flores, a luminosidade solar por cima de todas as coisas, as modulações celestes. Gostava de ouvir os pássaros cantando na amplidão livre, os grilos, as rãs, e todos os ruídos da Natureza. Sentia mais atração por esse mundo, essas 12 13  med.00400.023.jpg manifestações da vida, do que pelos seres humanos protocolares e frases feitas. "Até o instante em que o conheci, jamais podia eu imaginar que tais coisas lhe proporcionavam tanta felicidade. Amava as flores, selvagens ou domésticas. Como gostava ele de tantas coisas! Como parecia fazer restrições a tantas outras! Não havia um só objeto da Natureza que não produzisse em seu espírito uma sensação maravilhosa. Sons e imagens, manifestações vegetais, minerais e animais provocavam nele emoções incontidas." Continuando, Bucke comenta que ele parecia gostar de todos os homens, de todas as mulheres e de todas as crianças com as quais se deparava. Todos os que o conheceram podiam afirmar ser Whitman uma pessoa agradável. Também ele, em relação aos outros. Não discutia, não falava sobre dinheiro. Não levava muito a sério o falar em linguagem áspera a respeito de sua pessoa ou de seus escritos. E pondera Bucke: "Isto me fazia pensar que Whitman encontrava prazer na oposição de seus inimigos gratuitos". Ainda mais: penetrando na intimidade da vida do poeta, disse Bucke que, ao encontrá-lo pela primeira vez, imaginou estar ele em estado de plena vigilância, não permitindo que sua língua deixasse escapar qualquer expressão de desgosto, de antipatia, queixumes ou remorso. Bucke custava a crer que tais sentimentos não participassem de suas emoções, nem o fustigassem. Mas, depois de conhecê-lo melhor, observando-o cuidadosamente, afirmou: "Verifiquei ser essa ausência, ou inconsciência, perfeitamente real". Mais: "Suas maneiras eram curiosamente calmas e, em conversações, ou em todas as circunstâncias, raramente aparentava excitação. Jamais o vi ficar de mau humor. Parecia sempre alegre com os que o rodeavam. Geralmente, dispensava apresentações formais". Ninguém, segundo Bucke, ouvia de seus lábios uma só palavra contra o tempo, o sofrimento, as enfermidades. Sua boca era de uma pureza incomparável, dela não saindo uma só expressão desairosa, pejorativa ou uma blasfêmia. E tudo decorria de seu estado interior, seu equilíbrio emocional diante dos fatos, mesmo os mais desagradáveis. Movia-se pela coragem e pelo autocontrole. Em seguida, explica Bucke que Whitman jamais clamava contra qualquer nacionalidade ou categoria humana, ou períodos históricos (feudalismo, por exemplo), ou contra quaisquer tipos de ocupações. Não se voltava contra quaisquer animais, insetos, plantas ou seres inanimados, nem contra qualquer lei da Natureza, ou mesmo contra os resultados dessas leis, tais como doenças, deformidades ou  med.00400.024.jpg morte. Jamais em conversação ou em companhia de qualquer pessoa, sob quaisquer circunstâncias, usava ele de linguagem que pudesse ser indelicada ("naturalmente usou linguagem em seus poemas que tem sido um tanto indelicada, mas em relação a ninguém procedeu assim . . ."). Mais adiante, o clínico e observador cuidadoso acrescenta: "De fato, jamais eu soube que ele usasse de uma só palavra ou sentimento que não pudesse ser publicado por tornar-se prejudicial à sua fama. Nunca jurou. Nunca falou em estado colérico e, aparentemente, nunca se irritou. Jamais exibiu medo, e não creio que o tivesse alguma vez sentido. Conversava em tom baixo, sempre agradável e, usualmente, o conteúdo era instrutivo. Nunca proferiu saudações formais, cheias de mesura e de desculpas, usando as formas comuns de civilidade tais como 'por favor', 'muito obrigado'. Sua conversa, regra geral, consistia de assuntos correntes, fatos do dia: política, notícias sobre política e história, tanto européias como americanas, um pouco sobre livros, muitos aspectos da Natureza, tais como paisagens, estrelas, pássaros, flores e árvores. Lia os jornais do dia regularmente, gostava de boas descrições e de reminiscências. Suas maneiras eram invariavelmente calmas e simples"14.

Tal descrição pormenorizada fala por si. Percorramos agora os versos cósmicos de Folhas de Relva, com suas maravilhosas sutilezas. Pisemos nessa relva poética como quem anda em solo sagrado, mas sem temor, sem desconfiança. Façamos como Álvaro de Campos, que, para "sentir tudo" entregou-se aos cânticos de Whitman e saiu dançando, "de mãos dadas, Walt, dançando o Universo na alma".

14
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FOLHAS DE RELVA

 med.00400.026.jpg Nada pelas palavras do meu livro, 
  por seu sentido, tudo;
Um livro que existe por si mesmo, 
  sem relação alguma com os demais 
  e que não tem sentido se lido apenas 
  com o intelecto;
Mas vós, em vossos silêncios la- 
  tentes, haveis de tremer a cada pági- 
  na, assombrados.
WALT WHITMAN
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Letreiros

Eu canto o meu próprio Ser

Eu canto o meu próprio Ser, pessoa em si e à parte, Embora expresse o verbo democrático, a expressão das massas. A fisiologia, o que vai da cabeça aos pés, eu canto, Não apenas a fisionomia, nem o cérebro somente é digno da Musa, eu digo que a forma completa é muito mais valorosa, A fêmea, tanto quanto o macho, eu canto. Da vida plena de paixão, pulso e poderio, Cheio de alegria, porque, pela forma mais livre que há debaixo das leis de Deus, O homem moderno eu canto.

À medida que eu refletia em silêncio

À medida que eu refletia em silêncio, Debruçando-me sobre meus poemas, considerando-os, demorando-me sobre eles, Um fantasma surgiu diante de meus olhos, com aspecto de desconfiança, Terrífico em beleza, idade e poder, O gênio de poetas de terras antigas, Dirigindo-me a luz de seus olhos como se fossem chamas, Com o dedo apontado para muitas canções imortais, Com voz ameaçadora, O que cantas tu?, disse ele, Não sabes que só existe um único tema para os poetas eternos?  med.00400.028.jpg E que esse é o tema da guerra, da vitória, das batalhas, Da preparação de soldados perfeitos? Que assim seja, respondi então, Eu também, sombra arrogante, canto a guerra e uma guerra mais duradoura e maior que todas as outras, Recompensada em meu livro com diversas vitórias, com vôo, avanço e recuo, vitória concedida e irresoluta, (Mesmo assim, parece-me certa, ou tão boa quanto certa, ao final), o campo de batalha é o mundo. Pela vida e pela morte, pelo corpo e pela alma eterna, Contemplai, eu também venho entoando o canto das batalhas, Eu, acima de todos, promovo corajosos soldados.,

Na cabine dos navios em pleno mar

Na cabine dos navios em pleno mar, O azul sem limites em toda direção se expande, Com o assobio dos ventos e a música das ondas, as ondas grandes e imperiais, Ou alguma nau solitária que baliza a densa marina, Onde jovial, cheia de fé, abrindo suas velas brancas, Ela atravessa ao meio o espaço celeste, no brilho e na espuma do dia, ou sob o céu estrelado da noite. Entre marinheiros jovens e velhos serei eu, uma reminiscência da terra, lido, Em plena harmonia, afinal. Aqui estão nossos pensamentos, pensamentos de viajantes, Aqui não é a terra, a terra firme que aparece sozinha, possam eles dizer então. O arco do céu alcança aqui, sentimos o convés ondular debaixo dos pés, Sentimos a longa pulsação, o refluir e o afluir de um movimento sem fim, Os tons de um mistério nunca visto, as sugestões vagas e vastas do mundo salgado, as sílabas do líquido gracioso, O perfume, o débil ranger da cordoalha, o ritmo de melancolia, O panorama infinito e o horizonte longínquo e opaco estão todos aqui,  med.00400.029.jpg E este é o poema do oceano. Então, ó livro, não hesites! Antes, realiza teu destino. Não és a reminiscência da terra solitária, Tu também, como uma nau atravessando o éter — propósito mais claro do que o teu desconheço — repleto sempre de fé, Casa-te a todo navio que navega, navega tu! Dá a eles o meu amor que vai depositado (queridos marinheiros,por vós eu deposito aqui o meu amor em cada folha); Corre, meu livro! Espalha tuas velas brancas, minha ínfima nau, através das ondas imperiais. Prossegue cantando, navega adiante, desentranha o azul infinito de mim e lança, em cada mar, Esta canção por todos os marinheiros e suas naus.

Às terras estrangeiras

Ouvi dizer que pediste algo para provar este enigma do Novo Mundo, E para definir a América, sua atlética Democracia, Portanto, envio-te meus poemas; que possas neles encontrar o que procuras.

A um historiador

Tu, que celebras eventos passados, Que exploraste a aparência, a superfície das raças, a vida que se revelou, Que trataste os Homens como criaturas políticas, agregados,governadores e sacerdotes, Eu, habitante dos montes Alegânis, tratando do Homem como ele de fato é, em seus plenos direitos, Tomando o pulso da vida que raramente se expõe (o grande orgulho que o Homem tem de si mesmo), Cantor da Pessoa Humana, delineando aquilo que ela um dia há de ser, O que eu arquiteto é a história do futuro.
 med.00400.030.jpg

A ti, causa antiga!

A ti, causa antiga! Tu, incomparável, apaixonante causa boa, Tu, implacável, impiedosa, doce idéia, Imorredoura através dos tempos, raças, terras, Após uma triste e estranha guerra, grande guerra por ti, (Penso que todas as guerras através do tempo foram travadas,e serão sempre travadas no futuro, na verdade, por ti.) Estes cantos por ti, a marcha eterna por ti. (Uma guerra, ó soldados que não estão sozinhos, Muito, muito mais silenciosos, aguardando na retaguarda, e que agora podem avançar neste livro.) Tu, globo de muitos globos! Tu, ardente princípio! Tu, bem guardado gérmen latente! Tu, centro de tudo! Em torno de tua idéia a guerra gira, Com toda a tua irada e veemente dança das causas, (Com vastos resultados por vir, por milhares de anos), Estes versos recitados por ti — meu livro e a guerra são um, Fundidos em tal espírito e no meu, como a disputa articulada em ti, Como uma roda sobre seu eixo, gira este livro, inconsciente de si mesmo, Em torno de tua idéia.

Espectros

Com um vidente deparei, Passando pelos matizes e objetos do mundo, Os campos da arte e do conhecimento, prazer e sentidos, Coligindo espectros. Introduz teus cantos, ele disse, Não mais a hora confusa nem o dia, nem segmentos, partes, introduz, Começa, antes dos demais, como a luz para todos e por todos a canção de entrada, Aquela dos espectros.  med.00400.031.jpg Sempre o pálido começo, Sempre o crescimento, o arredondamento do círculo, Sempre o ápice e o amálgama afinal (para o certo recomeço), Espectros, espectros! Sempre mutáveis, Sempre materiais, transformando-se, fazendo-se em migalhas, readerindo, Sempre os ateliês, as fábricas divinas, Editando espectros. Veja-se, eu ou tu, Ou mulher, ou homem, ou estado, conhecido ou ignorado, Nós parecemos sólida riqueza, força, beleza construída, Mas de fato erguemos espectros. A ostentação evanescente, A substância do humor de um artista ou a longa observação da savana, As armadilhas de um guerreiro, de um mártir, de um herói, Para talhar seu espectro. De toda a vida humana, (As unidades juntas, protegidas, nem um pensamento, a emoção, a realização, deixados de fora) O todo ou o grande ou o pequeno somado, adicionado, Em seus espectros. O velho, o antigo anseio, Baseado nos clássicos pináculos, veja os novos, mais altos pináculos, Da ciência e do moderno ainda impelidos Pelo velho, antigo anseio, espectros. O presente, aqui e agora, Da América, o ocupado, o prolífico, o intrincado turbilhão, De agregado e segregado, porque dali apenas deixando ir, Os hodiernos espectros. Esses com o passado, De terras esvaecidas, de todos os reinos de reis de além mar,  med.00400.032.jpg Velhos conquistadores, velhas campanhas, velhas viagens de marinheiros, Juntando-se aos espectros. Densidades, crescimento, fachadas, Estratos de montanhas, terras, rochas, árvores gigantes, Nascidos à distância, à distância morrendo, vivendo longamente, para deixar, Espectros perpétuos. Exaltado, arrebatado, extático, O útero visível, mas deles desde a origem De esféricas tendências para talhar e talhar e talhar, A poderosa Terra-espectro. Todo espaço, todo tempo, (As estrelas, as terríveis perturbações dos sóis, Dilatando-se, desmoronando, acabando, servindo seu propósito mais breve ou duradouro), Plenos de espectros somente. Miríades silenciosas, Os oceanos infinitos onde os rios deságuam, As incontáveis identidades livres, separadas, como visão, As verdadeiras realidades, espectros. Não é este o mundo, Não são esses os universos, eles os universos Significam e terminam, sempre a permanente vida da vida, Espectros, espectros. Além de tuas aulas, erudito professor, Além de teu telescópio ou espectroscópio aguçado, observador,além de toda matemática, Além da cirurgia dos médicos, da anatomia, além dos químicos e sua química, As entidades das entidades, espectros. Soltos, ainda que presos, Sempre serão, sempre foram e são, Varrendo o presente para o futuro sem fim,  med.00400.033.jpg Espectros, espectros, espectros. O profeta e o bardo Devem embora manter-se em estágios ainda mais elevados, Devem mediar para o moderno, para a Democracia, ser intérpretes deles ainda, Deus e espectros. E tu, minha alma, Alegrias, exercícios incessantes, exaltações, Teus anelos amplamente atendidos finalmente, preparados paraencontrar, Teus companheiros, espectros. Teu corpo permanente, O corpo espreitando lá dentro de teu corpo, O único sentido da forma de tua arte, o verdadeiro Eu, eu mesmo, Uma imagem, um espectro. Tuas próprias canções fora de tuas canções, Sem tensões especiais para cantar, nenhuma por si mesma, Mas do resultado total, erguendo-se finalmente e flutuando, Um giro em círculo total do espectro.

Por ele eu canto

Por ele eu canto, Eu ergo o agora no que foi, (Como árvore perene, de pé sobre as raízes, presente no passado) Com o tempo e o espaço eu a ele expando e eternas leis fundo, De modo que, por elas, ele seja a lei junto a si mesmo.

Enquanto eu lia o livro

Enquanto eu lia o livro, a ilustre biografia, Então é isto (eu disse) que o autor considera ser a vida de um homem? E assim, alguém, quando eu estiver morto ou ausente, escreverá minha vida?  med.00400.034.jpg (Como se qualquer homem soubesse realmente algo sobre a minha vida, Quando até eu mesmo sempre penso saber pouco ou nada sobre minha vida real, Apenas algumas dicas, umas poucas dicas pálidas difusas e despistes Que procuro para meu uso próprio na trilha aqui de fora.)

Ao começar os meus estudos

Ao começar os meus estudos, o passo inicial me agradou tanto, A mera tomada de consciência dos fatos, essas formas, o poder do movimento, O menor dos insetos ou animais, os sentidos, a vista, o amor, Digo que o primeiro passo me assombrou e me deu tanto prazer Que eu nem sequer teria passado, e dificilmente teria desejado passar além daquele ponto, Mas quereria parar ali e vaguear o tempo inteiro, cantando tudo aquilo em cantos extáticos.

Precursores

Como eles são dádivas vindas para a terra (aparecendo a intervalos), Como são queridos e terríveis para o mundo, Como eles se acostumam a si mesmos, assim como a qualquer outro — que paradoxo parece o tempo deles, Como as pessoas reagem a eles ainda que os não conheçam, Como algo de inevitável há no destino deles em todos os tempos, Como todos os tempos escolhem mal os objetos de sua adulação e sua recompensa, E como o mesmo preço inexorável tem de ainda ser pago pela mesma grandeza encomendada.

Para os Estados Unidos

Para os Estados Unidos ou qualquer um que neles viva, em qualquer cidade do país: Resisti muito, obedecei pouco, Uma vez obediência inquestionável, uma vez completa escravatura,  med.00400.035.jpg Uma vez completa escravatura, nenhuma nação, estado, cidade desta terra, resgatará sua liberdade desse dia em diante.

Jornadas pelos Estados Unidos

Em jornadas pelos Estados Unidos começamos, (Sim, através do mundo, instados por estas canções, Navegando doravante por toda a terra e todo o mar) Nós, desejosos aprendizes de tudo, professores de tudo, amantes de tudo. Assistimos às estações que se doam e passam, E temos dito: por que não deveria um homem ou uma mulher fazer tal qual as estações, transbordando o mesmo tanto de si mesmos? Nós vivemos um pouco em cada cidade e em cada vila, Passamos pelo Canadá, o Nordeste, o vasto vale do Mississippi e os Estados do Sul, Nós nos comunicamos em termos igualitários com cada um dos Estados, Nós fazemos julgamento de nós mesmos e convidamos homens e mulheres para ouvi-lo, Dizemos a nós mesmos: lembrai-vos, não temais, sede sinceros, promulgai o corpo e a alma, Vivei o momento e passai adiante, sede copiosos, moderados, castos, magnéticos, E aquilo que transbordardes pode então retornar, tal qual as estações retornam, E podereis ser apenas tanto quanto são as estações.

Para uma certa cantarina

Aqui, recebe este presente, Eu o havia reservado para algum herói, orador ou general, Alguém que deveria servir à boa e antiga causa, à grande idéia, ao progresso e à liberdade da raça, Algum valente que encara os tiranos, algum ousado rebelde; Mas vejo que o que havia reservado a ti pertence tanto quanto a eles.
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Eu imperturbável

Eu imperturbável, de pé, tranqüilo, em meio à Natureza, Mestre de tudo ou de tudo concubina, aprumado em meio ao que é irracional, Imbuído como eles, passivo, receptivo, silencioso tal qual eles, Encontrando minha ocupação, pobreza, notoriedade, excentricidade, crimes, sendo menos importante do que pensava, Eu, na direção do mar do México, ou em Mannahatta ou Tennessee, ou bem ao norte, ou no interior, Um homem rio, ou um homem da floresta ou de qualquer vida rural destes Estados Unidos ou da costa, ou dos lagos ou do Canadá, Eu, onde quer que minha vida seja vivida, eu para ser auto-equilibrado nas contingências, Para confrontar a noite, as tempestades, a fome, o ridículo, os acidentes, as repulsas, tal como fazem as árvores e os animais.

Sabedoria

Mais longe, enquanto observo, vejo cada resultado e a glória revisitada, aconchegada aqui perto, sempre como obrigação, Mais longe as horas, os meses, os anos — mais longe os negócios, o que é sólido, os estabelecimentos, até mesmo o mais minúsculo, Mais longe cada dia da vida, cada discurso, cada utensílio, cada política, as pessoas, os estados; Mais longe nós também, eu com minhas folhas e canções, confiante, admirador, Como um pai que vai para seu pai e com ele traz seus filhos.

A nau saindo

Olhem, do mar sem fim, Em seu seio a nau saindo, içando as velas, levando mesmo suas velas lunares, No topo do mastro a flâmula ondula, à medida que ela corre, corre altiva — abaixo as ondas rivais impulsionam para frente, Em torno da nau com brilhantes movimentos curvilíneos e espuma.
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Ouço a América cantando

Eu ouço a América cantando, cantos alegres e variados ouço, O canto dos mecânicos, cada um entoa seu canto, tal como deveria ser em júbilo e em força, O carpinteiro cantando quando mede sua prancha ou viga, O pedreiro cantando quando começa o seu trabalho, ou quando o finda, O barqueiro cantando o que a ele pertence em seu barco, o taifeiro cantando no convés do barco a vapor, O sapateiro cantando quando senta em seu banco, o chapeleiro cantando quando está de pé, A canção do lenhador, a do lavrador quando vai em seu caminho de manhã, ou no descanso ao meio-dia, ou no crepúsculo, O canto delicioso de uma mãe, ou da jovem esposa em seu trabalho, ou da garota costurando ou lavando, Cada um cantando o que pertence a si mesmo e a ninguém mais, O dia canta o que pertence ao dia — à noite, a festa de jovens camaradas, robustos e amigáveis, Cantando com suas bocas abertas suas fortes e melodiosas canções.

Que lugar está sitiado?

Que lugar está sitiado? Que lugar está sitiado e em vão procura erguer o sítio? Vê, eu envio para lá um comandante, veloz, bravo, imortal, E com ele, que vai a cavalo e a pé, as peças de artilharia, E artilheiros, os mais letais que já empunharam armas.

Ainda assim eu canto o um

Ainda assim eu canto o um, (Um, feito em contradições) Eu o dedico à Nacionalidade, Eu deixo nele a rebelião (Ó latente direito à insurreição! Ó inextinguível, indispensável fogo!)  med.00400.038.jpg Não fecheis as vossas portas Não fecheis para mim as vossas portas, orgulhosas bibliotecas, Pois o que estava faltando em vossas bem fornidas prateleiras, ainda que tão pobres, eu trago, Da guerra recém-saído, um livro eu preparei, Nada pelas palavras do meu livro, por seu sentido, tudo, Um livro que existe por si mesmo, sem relação alguma com os demais e que não tem sentido se lido apenas com o intelecto, Mas vós, em vossos silêncios latentes, haveis de tremer a cada página, assombrados.

Poetas do porvir

Poetas do porvir! Oradores, cantores, músicos que virão! Não é dia de me justificar e responder a que vim, Mas vós, uma nova geração de nativos, atléticos, continentais, maiores que quaisquer outros conhecidos, Levantai-vos! Pois tendes de justificar-me. Eu mesmo só escrevo uma ou duas palavras indicativas do futuro, Faço mover a roda para frente um instante e retorno às sombras bem depressa. Eu sou um homem que, vagando por aí sem nunca ter parada, lança casualmente para vós um olhar e em seguida desvia o próprio rosto, Deixando para vós a missão de prová-lo e defini-lo, Esperando de vós as coisas mais altivas.

Para ti

Desconhecido, se tu que passas e me encontras quiseres a mim te dirigir, por que não o farás? E por que eu não deveria contigo dialogar?
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A ti, leitor

Tu, leitor, que palpitas de vida e orgulho e amor, assim como eu, Para ti, por isso, os cantos que aqui seguem.

Saindo de Paumanok

1

Saindo de Paumanok com sua forma de peixe, onde nasci, Bem concebido e educado por uma mãe perfeita, Depois de vagar por muitas terras, amante de populosos pavimentos, Vivendo em Mannahatta, minha cidade, ou nas savanas do sul, Ou como soldado acampado, ou carregando minha mochila e minha arma, ou mineiro na Califórnia, Ou rude em minha casa nas florestas de Dakota, fazendo minha dieta de carne, sorvendo minha bebida diretamente da fonte, Ou retirado para a musa e absorto em algum recesso profundo, Longe do estrépito das massas, vivendo a intervalos, enlevado e feliz, Consciente do frescor desse Missouri livremente dadivoso, consciente do poderoso Niagara, Consciente dos rebanhos de búfalos que pastam pelas planícies, o touro de peito forte e cabeludo, Ó terra, pedras, a experiência das flores com cinco meses, estrelas, chuva, neve, o meu espanto, Tendo estudado os tons do zombeteiro passarinho e o vôo do falcão montanhês, E tendo ouvido, na alvorada, aquele sem rival, o tordo ermitão do pântano de cedro, Solitário, cantando no Oeste, eu me lanço para um Novo Mundo.

2

Vitória, união, identidade, tempo, Os indissolúveis maciços, riquezas, mistérios, Progresso eterno, o cosmos, e os relatos modernos, Isso, então, é vida, Aqui está o que emergiu depois de tanta agonia e convulsão.  med.00400.040.jpg Que curioso, que real! Sob os pés, o solo divino, o sol sobre a cabeça. Vê o globo que gira, Os continentes ancestrais, distantes uns dos outros, agrupados, Os continentes presentes e futuros, norte e sul, com os istmos entre eles. Vê os espaços vastos sem ter trilhos, Como num sonho mudam e se enchem prontamente, Massas incontáveis sobre eles desembocam, Cobertos agora com os povos mais ousados — artes, instituições — conhecidos. Vê, projetada pelo tempo, Para mim uma audiência inacabável. Com passo firme e regular eles caminham, e nunca cessam, Sucessões de homens, americanos, cem milhões, Uma geração, vivendo a sua parte, passa, Uma outra geração, vivendo a sua parte, passa por sua vez, Com suas faces voltadas para os lados ou para trás, em minha direção para me ouvir, Com olhos retrospectivos para mim.

3

Americanos! Conquistadores! Marchai, humanitários! Na dianteira! Marchas seculares! Liberdade! Massas! Para vós uma programação de canções. Cantos das campinas, Cantos do extenso Mississipi, e abaixo para o mar do México, Cantos de Ohio, Indiana, Illinois, Iowa, Wisconsin e Minnesota, Cantos avançando do centro, do Kansas, e de lá, eqüidistante, Atirando em pulsos de fogo ininterrupto para tudo encher de vida.

4

Leva as minhas folhas, América, leva-as para o Sul e leva-as para o Norte, Dá-lhes em toda parte as boas-vindas, pois são elas crias tuas. Envolve-as no Leste e no Oeste, pois elas quereriam te envolver,  med.00400.041.jpg E vós, precedentes, uni-vos amavelmente a elas, porque elas a vós se unem amavelmente. Aprendi a antiguidade, Sentei-me para aprender aos pés dos grandes mestres, Agora, se eu for digno, ah, que possam os grandes mestres volver e me estudar. Em nome destes Estados, devo eu menosprezar o passado? Ora estão aqui os filhos do passado para justificá-lo.

5

Poetas mortos, filósofos, sacerdotes, Mártires, artistas, filósofos, inventores, governantes de há muito, Escultores das línguas de além-mar, Nações que um dia foram poderosas, agora reduzidas, retraídas ou desoladas, Eu não ouso prosseguir até que respeitavelmente reconheça o que vós deixastes deste lado. Eu já o li, confesso o quanto é admirável (movendo-me um instante em meio dele), Penso que nada pode ser maior, nada pode jamais merecer mais do que ele merece, Referindo-me a todo ele atenta e demoradamente, e após deixando-o passar, Eu permaneço em meu posto no meu tempo e lugar. Aqui as terras, fêmeas e machos, Aqui os herdeiros e herdeiras do mundo, aqui a chama dos materiais, Aqui as tradutoras da espiritualidade, abertamente declaradas, As que tendem para sempre, o final das formas visíveis, As que satisfazem, após uma longa espera do que agora avança, Sim, aqui vem minha amante: a alma.

6

A alma, Para sempre e pela eternidade — por mais tempo do que o solo é pardo e sólido, mais tempo do que a água fluindo e refluindo.  med.00400.042.jpg Quero fazer os poemas da materialidade, pois penso que serão entre todos os mais espirituais, E farei os poemas do meu corpo e do que há de mortal, Pois creio assim estar a mim mesmo concedendo os poemas de minha alma e da imortalidade. Tecerei um cântico a estes Estados para que Estado algum, em circunstância alguma, esteja sujeito a outro Estado, E entoarei uma canção para que exista polidez noite e dia entre todos os Estados e entre dois deles quaisquer. E farei uma canção para os ouvidos do Presidente, cheio de armas com pontas ameaçadoras, E, por trás das armas, incontáveis faces insatisfeitas; E a canção que eu teço é do Um que é feito do amálgama de todos, Esse Um cintilante e armado cuja cabeça se eleva sobre todos, Resoluto e guerreiro Um inclusivo e acima de todos, (Por mais alto que se eleve qualquer cabeça, aquela cabeça permanecerá por cima). Reconhecerei as terras hodiernas, Palmilharei a inteira geografia da terra e saudarei cordialmente cada cidade grande ou pequena, E os empregos! Porei em meus poemas que em vós está o heroísmo sobre a terra e sobre o mar, E contarei o heroísmo sob o ponto de vista americano. Cantarei a canção do companheirismo, Quero mostrar o que sozinho deve enfim unir-se a estes, Creio que estes hão de encontrar seu ideal de humano amor indicando-o em mim, E eu, assim, permitirei que flamejem em mim os fogos abrasadores que ameaçavam consumir-me, Erguerei o que por muito tempo manteve tíbio esse fogo que queima sem ter chamas, Eu lhes darei completa liberdade, Escreverei o poema, evangelho de camaradas e de amor, Pois quem, senão eu, deveria entender o amor com toda a sua aflição e alegria? E quem, senão eu mesmo, deveria ser o poeta dos camaradas?
 med.00400.043.jpg

7

Sou o crédulo homem das qualidades, idades e raças, Eu desponto do povo em seu próprio espírito, Aqui está aquilo que se canta com irrestrita fé. Omnes! Omnes! Deixai que os outros ignorem seja o que for, Escrevo o poema do mal também, eu também comemoro essa outra parte, Eu mesmo sou tão mal quanto sou bom, e minha nação é — e digo que não há, de fato, mal algum, (Ou se há o mal, eu digo, ele é tão importante para vós, para a terra ou para mim quanto qualquer outra coisa.) Eu também, que muitos sigo e por muitos sou seguido, inauguro uma religião, na arena ingresso, (Pode ser que eu esteja destinado a soltar lá os gritos mais fortes, os gritos retumbantes dos vencedores, Quem sabe? Eles podem se elevar de mim ainda e planar acima de todas as coisas.) Nada há que exista por si mesmo, Digo que a terra inteira e todos os astros no céu existem em nome da religião. Eu digo que homem algum foi jamais metade devoto o suficiente, Ninguém jamais adorou ou cultuou metade do suficiente, Ninguém começou sequer a pensar o quão divino ele mesmo é, e quão certo é o futuro. Digo que a grandeza real e permanente desses Estados deve ser sua religião, De outro modo não há grandeza real e permanente; (Nem caráter nem vida valem o nome sem religião, Nem terra nem homem ou mulher sem religião.)

8

O que fazes, meu rapaz? És tão ardente, tão entregue à literatura, à ciência, à arte, ao namoro? E essas realidades ostensivas, políticas, esses pontos? E a tua ambição ou teus negócios, quaisquer que sejam?  med.00400.044.jpg Está bem — contra isso não digo uma palavra, eu sou também poeta deles, Mas contempla! Uma tal queda é repentina: ser queimado em nome da religião. Nem toda matéria promove o calor, a flama intangível, a vida essencial da terra, Tudo isso não é apenas para a religião.

9

O que procuras, tão pensativo e silente? Do que precisas, camarada? Amado filho, pensas que é o amor? Ouve, querido filho — ouve, América, filha ou filho, É doloroso amar um homem ou uma mulher excessivamente, embora ao mesmo tempo satisfaça, seja grandioso, Mas há algo mais que é tão imenso e que faz o todo coincidir, Aquele que suntuoso, além da matéria, com suas mãos continuamente tudo limpa e tudo sustenta.

10

Conhece, apenas para deixar cair na terra as sementes de uma nova religião, Os seguintes cantos, cada qual do seu tipo, que entôo. Meu camarada! Compartilha comigo duas grandezas, e uma terceira erguendo-se inclusiva e resplendente, A grandeza do Amor e da Democracia, e a grandeza da Religião. Miscelânea própria de mim, o não visto e o visto, Oceano misterioso onde há fluxos vazios, Espírito profético da matéria, transformando-se e bruxuleando em minha volta, Seres viventes, identidades que agora não hesitam, próximas de nós no ar que desconhecemos, Contato diário e de cada hora que não me abandona um segundo, Esses que são seletivos, esses que me pedem sugestões. Não ele, o beijo diário com o qual me beijas progressivamente desde a infância,  med.00400.045.jpg Esbaforiu-se e cingiu-se em minha volta aquele que a ele me prende, Tanto quanto eu vivo abraçado aos céus e ao mundo espiritual inteiro, Após o que eles me criaram soprando tantos temas. Ah, tais temas! — igualdades! Ah, divina média! Gorjeios sob o sol, introduzidos como agora, ou ao meio-dia, ou no crepúsculo, Tensões da música que flui pelas eras, agora chegando até aqui, Eu tomo as tuas cordas imprudentes e compostas, a elas acrescento e alegremente passo-as adiante.

11

Quando eu fazia no Alabama o meu passeio matinal, Vi onde a fêmea do pássaro-das-cem-línguas pousou em seu ninho entre as roseiras bravas, chocando suas crias. Vi também o macho passarinho, Parei para ouvi-lo próximo de mim inflando o peito e cantando alegremente. E quando parei ali, notei que não estava ali somente para o que assim cantava, Nem para a sua companheira, nem para ele mesmo apenas, nem para tudo que é devolvido pelos ecos, Mas sutil, clandestino, longe e além, Tecia uma declaração e oculta dádiva para aqueles que nasciam.

12

Democracia! Próxima de ti uma garganta que agora infla e que canta alegremente. Ma femme! Pela ninhada além de nós e nossa, Pelos que são daqui e os que virão, Exulto de estar pronto para eles e quero entoar cânticos, agora mais fortes e mais agudos do que todos os que já foram ouvidos sobre a Terra. Farei as canções da paixão para lhes dar passagem,  med.00400.046.jpg E também os vossos cantos, criminosos foras-da-lei, pois eu vos fito com olhos consangüíneos e vos trago comigo iguais aos outros. Tecerei o verdadeiro poema das riquezas, Ganhando para o corpo e para a alma tudo o que adere e vai adiante e não é suprimido pela morte; Entornarei o egotismo e revelarei que a tudo ele dá base e serei o bardo da personalidade. E mostrarei do masculino e do feminino que cada qual é apenas aimagem um do outro, E os órgãos sexuais e os atos! Concentrai-vos em mim, pois estou determinado a contar-vos, com voz corajosamente clara, para provar-vos ilustres. E revelarei que não há imperfeição no presente e que ela também não pode existir no futuro, E mostrarei que tudo o que acontece a uma pessoa qualquer pode redundar em maravilhosos resultados, E provarei que nada pode ocorrer a alguém que seja mais belo do que a morte, E enfiarei um raio de luz através de meus poemas que farão do tempo e dos eventos um mesmo ser compacto. E verás que todas as coisas do Universo são milagres perfeitos, cada um tão profundo quanto o outro. Não escreverei meus poemas em referência às partes, Mas escreverei poemas, canções, reflexões, com referência ao conjunto, E não cantarei fazendo referência a um só dia, mas farei referência a todos os dias, E não farei um poema, nem a mínima parte de um poema, para referir-me exclusivamente à alma, Pois tendo observado os objetos do universo, descubro que não há qualquer um deles, e nem sequer uma partícula de um deles, que não seja uma referência à alma.

13

Alguém estava pedindo para ver a alma? Veja vossa própria forma e expressão, as pessoas, as substâncias, os animais, as árvores, os rios que correm, as pedras e a areia. Tudo contém alegria espiritual e em seguida dela se desprende;  med.00400.047.jpg Como pode algum dia o corpo real morrer e ser enterrado? No vosso corpo real, e qualquer corpo verdadeiro de homem ou de mulher, Item por item confundirá as mãos dos preparadores de cadáver e passará às esferas adequadas, Levando aquilo que proveio do momento do nascimento até o momento da morte. As letras pelo tipógrafo dispostas geram a impressão, o sentido, a idéia central, Tanto quanto a substância e vida de um homem ou a vida e substância de uma mulher são gravados no corpo e na alma, Antes e depois da morte, indiferentemente. Notai, o corpo contém e é o sentido, a idéia central; ele contém e é a alma; Quem quer que sejais vós, quão soberbos e divinos são os vossos corpos, ou qualquer parte deles!

14

Quem quer que sejais vós, para vós mesuras sem fim! Filhas das terras, esperastes pelo vosso poeta? Esperastes por aquele com uma boca graciosa e mão indicativa? Apontando para os homens dos Estados e para as mulheres dos Estados, Com palavras de exultação, palavras de terras democráticas. Terras interligadas, generosas por seus frutos! Terra de carvão e de aço! Terra do ouro! Terra de algodão, açúcar, arroz! Terra de trigo, de bovinos, de suínos! Terra da lã e do linho! Terra da maçã e da uva! Terra de planícies pastorais, campos de relva do mundo! Terra daqueles intermináveis platôs de brisa doce! Terra das manadas, dos jardins, da saudável moradia de argila! Terras onde sopra o vento nordeste de Colúmbia e o vendo sudeste do Colorado! Terra de Chesapeake ao leste! Terra do Delaware!  med.00400.048.jpg Terra do Ontário, Erie, Huron, Michigan! Terra dos Treze Antigos! Terra de Massachusetts! Terra de Vermont e Connecticut! Terra das costas oceânicas! Terra das serras e dos picos! Terra de barqueiros e marinheiros! Terra de pescadores! Inextricáveis terras! Unidas! Apaixonantes! Lado a lado! Os irmãos mais velhos e os mais jovens! Os ossos em seus membros! A terra das grandes mulheres! O feminino! As irmãs experientes e as irmãs inexperientes! Terra das brisas longínquas! Suportada pelo Ártico! Bafejada pelas brisas mexicanas! Diversificada! Densa! As da Pensilvânia, as da Virgínia, as das duas Carolinas! Ah, todos bem amados por mim! Minhas intrépidas nações! Ah, eu em todos os graus abraço-vos com perfeito amor! Eu não posso de vós me desligar! De nenhum de vós mais cedo do que o outro! Ah, morte! Ah, por tudo aquilo, eu sou ainda por vós não enxergado nesta hora com amor irreprimível, Andando pela Nova Inglaterra, um amigo, um viajante, Usando meus pés descalços, para espirrar a água das ondinhas de verão, nas bordas das areias, em Paumanok. Cruzando os prados, vivendo em Chicago uma vez mais, vivendo em toda cidade, Testemunhando espetáculos, nascimentos, progresso, estruturas, artes, Ouvindo oradores e oradoras falar em átrios públicos, Nestes Estados, deles e através deles, cada homem e mulher, um vizinho meu. Os da Louisiana, os da Geórgia, tão próximos de mim, tal como eu tão próximo deles e delas, Os de Mississippi e os de Arkansas até agora comigo, e eu até agora com qualquer um deles, E também sobre as planícies, a oeste do rio raquiano, ainda em minha casa de argila, E também voltando para o Leste, e ainda no Estado costeiro ou em Maryland, E também os canadenses, alegremente suportando o inverno, a neve e o gelo, são bem-vindos para mim, E também um filho verdadeiro do Maine ou dos Estados do Granito, ou do Estado da Baía de Narragansett, ou do Estado do Império,  med.00400.049.jpg E também navegando a outras praias para juntar-me aos mesmos, dando ainda as boas-vindas para cada novo irmão, Aqui introduzindo estas folhas para os novos do momento que se unem aos antigos, Eu venho entre os novos para ser deles companheiro e igual, vindo a vós pessoalmente agora, Ordenando-vos para ações, personagens, espetáculos, comigo.

15

Comigo, com um abraço firme, contudo pressa! Apressai-vos! Por vossa vida uni-vos a mim (Eu posso ter de ser persuadido muitas vezes antes de consentir entregar-me a vós completamente, mas o que tem isso? Não tem de ser persuadida muitas vezes também a própria Natureza?) Não um eu delicado, doce e afetuoso, Mas barbado, queimado de sol, com pescoço pardo, proibitivo. Eu cheguei, Para participar das lutas na medida em que caminho no rumo dos sólidos prêmios do universo, Pois é isso tudo o que ofereço a quem quer que persevere para vencê-los.

16

Em meu caminho eu paro por um instante, Aqui por vós! E aqui pela América! Paralisado no presente eu me ergo e fico em suspensão, paralisado no futuro destes Estados eu inspiro o alegre e o sublime, E pelo passado eu pronuncio aquilo que guarda o éter dos aborígines vermelhos. Os aborígines vermelhos, Respirando ao natural, ao som dos ventos e da chuva, têm nomes de pássaros, de animais na floresta, têm nomes que são sílabas para nós, Okonee, Koosa, Ottawa, Monongahela, Sauk, Natchez, Chattahoochee, Kaqueta, Oronoco, Wabash, Miami, Saginaw, Chippewa, Oshkosh, Walla-Walla, Deixando esse legado para estes Estados, eles se desfazem, partem, lançando sobre a água e sobre as terras os seus nomes.
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17

Expandindo-se sem delongas, doravante, Elementos, procriadores, que se ajustam, turbulentos, ligeiros e audaciosos, Um mundo primitivo novamente, visões da glória incessante que se ramifica, Uma nova raça, dominando as que a antecedem, capaz de avançar muito mais longe, com novas disputas, Novas políticas, nova literatura e religião, novos inventos e arte. Tendo isso minha voz anunciado — não mais dormirei, mas erguer-me-ei, Vós, oceanos que estivésseis calmos dentro de mim! Como vos sinto, Incompreensíveis, agitando-se, preparando ondas sem igual e tempestades.

18

Vede navios a vapor soltando vapores através de meus poemas, Vede, em meus poemas, imigrantes constantemente vindo e aterrissando, Vede, em arriere, a tenda de convenções, a trilha, a cabana do caçador, a canoa, a palha de milho, a reivindicação, a cerca ndelicada, e a vila tão remota, Vede de um lado o Mar do Oeste e do outro o Mar do Leste, como avançam e recuam sobre os meus poemas, tal como o fazem sobre as suas próprias praias, Vede pastos e florestas em meus poemas — vede animais selvagens e domesticados — vede além do gado as manadas e búfalos sem conta na relva baixa e crespa, Vede, em meus poemas, cidades sólidas, vastas, interioranas, com ruas pavimentadas, com edifícios de aço e pedra, com veículos que não cessam e comércio, Vede as gráficas a vapor com seus muitos cilindros — vede o telégrafo elétrico que se espicha através do continente, Vede os pulsos que viajam nas profundezas atlânticas da América até a Europa, pulsos que da Europa retornam pontualmente, Vede a locomotiva forte e rápida à medida que ela parte, pintando o céu, tocando seu apito a vapor, Vede lavradores arando as fazendas — vede mineiros escavando as minas — vede as fábricas inumeráveis,  med.00400.051.jpg Vede os mecânicos ocupados em seus assentos com as ferramentas — vede que entre eles emergem juízes superiores, filósofos, presidentes, vestidos em roupas de operário, Vede, caminhando entre as lojas e os campos dos Estados, eu bem amado, abraçadinho dia e noite, Ouvi os altos ecos de meus cantos lá — lede as sugestões que chegam afinal.

19

Ó camarada que estás próximo! Ó tu e eu finalmente, e nós dois apenas. Ó uma palavra para abrir o caminho de alguém que possa ir em frente sem limites! Ó algo extático e inexprimível! Ó música selvagem! Ó agora eu triunfo — e tu também; Ó de mãos dadas — Ó prazer saudável — Ó mais um amante cheio de desejos! Ó apressa-te neste abraço firme — apressa-te, apressa-te comigo.

Canção de mim mesmo

1

Eu celebro o eu, num canto de mim mesmo, E aquilo que eu presumir também presumirás, Pois cada átomo que há em mim igualmente habita em ti. Descanso e convido a minha alma, Deito-me e descanso tranqüilamente, observando uma haste da relva de verão. Minha língua, todo átomo do meu sangue formado deste solo, deste ar, Nascido aqui de pais nascidos aqui de pais o mesmo e seus pais também o mesmo, Eu agora com trinta e sete anos de idade, com saúde perfeita, dou início, Com a esperança de não cessar até morrer. Crenças e escolas quedam-se dormentes, Retraindo-se por hora na suficiência do que são, mas nunca esquecidas,  med.00400.052.jpg Eu me refugio pelo bem e pelo mal, eu permito que se fale em qualquer casualidade, A natureza sem estorvo, com energia original.

2

Casas e cômodos cheios de perfumes, prateleiras apinhadas de perfumes, Eu mesmo respiro a fragrância, a reconheço e com ela me deleito, A essência bem poderia inebriar-me, mas não permitirei. A atmosfera não é um perfume, não tem o gosto da essência, não tem odor, Existe para a minha boca, eternamente; estou por ela apaixonado, Irei até à colina próxima da floresta, despir-me-ei de meu disfarce e ficarei nu, Estou louco para que ela entre em contato comigo. A fumaça da minha própria respiração, Ecos, sussurros, murmúrios vagos, amor de raiz, fio de seda, forquilha e vinha, Minha expiração e inspiração, a batida do meu coração, a passagem de sangue e de ar através de meus pulmões, O odor das folhas verdes e de folhas ressecadas, da praia e das pedras escuras do mar, e de palha no celeiro, O som das palavras expelidas de minha voz aos remoinhos do vento, Alguns beijos leves, alguns abraços, o envolvimento de um abraço, A dança da luz e a sombra nas árvores, à medida que se agitam os ramos flexíveis, O deleite na solidão ou na correria das ruas, ou nos campos e colinas, O sentimento de saúde, o gorjeio do meio-dia, a canção de mim mesmo erguendo-me da cama e encontrando o sol. Achaste que mil acres são demais? Achaste a terra grande demais? Praticaste tanto para aprender a ler? Sentiste tanto orgulho por entenderes o sentido dos poemas? Fica esta noite e este dia comigo e será tua a origem de todos os poemas, Será teu o bem da terra e do sol (há milhões de sóis por encontrar), Não possuirás coisa alguma de segunda ou de terceira mão, nem enxergarás através dos olhos de quem já morreu, nem te  med.00400.053.jpg alimentarás outra vez dos fantasmas que há nos livros. Do mesmo modo não verás mais através de meus olhos, nem tampouco receberás coisa alguma de mim, Ouvirás o que vem de todos os lados e saberás filtrar tudo por ti mesmo.

3

Eu ouvi a conversa dos falantes, a conversa sobre o início e sobre o fim, Mas não falo nem do início nem do fim. Nunca houve mais iniciativa do que há agora, Nem mais juventude ou idade do que há agora, E jamais haverá mais perfeição do que há agora, Nem mais paraíso ou inferno do que há agora. O anseio, o anseio, o anseio, Sempre o anseio procriador do mundo. Na obscuridade a oposição equivale ao avanço, sempre substância e acréscimo, sempre o sexo, Sempre um nó de identidade, sempre distinção, sempre uma geração de vida. Não vale a pena elaborar, eruditos e ignorantes sentem que é assim. Certeza tal como a mais certa certeza, aprumados em nossa verticalidade, bem fixados, suportados em vigas, Robustos como um cavalo, afetuosos, altivos, elétricos, Eu e este mistério aqui estamos, de pé. Clara e doce é minha alma e claro e doce é tudo aquilo que não é minha alma. Faltando um falta o outro, e o invisível é provado pelo visível, Até que este se torne invisível e receba a prova por sua vez. Apresentando o melhor e isolando-o do pior, a idade agasta a idade, Conhecendo a adequação e a equanimidade das coisas, enquanto eles discutem eu mantenho-me em silêncio e vou me banhar e admirar a mim mesmo. Bem-vindo é todo órgão e atributo de mim, e também os de todo homem cordial e limpo,  med.00400.054.jpg Nenhuma polegada ou qualquer partícula de uma polegada é vil e nenhum será menos familiar que o resto. Estou satisfeito — vejo, danço, rio, canto; Quando o companheiro amoroso dorme abraçado a mim a noite inteira e depois vai embora ao raiar do dia com passos silenciosos, Deixando-me cestas cobertas com toalhas brancas enchendo a casa com sua exuberância, Devo adiar minha aceitação e compreensão e gritar pelos meus olhos, Para que deixem de fitar a estrada ao longe e para além dela E imediatamente calculem e mostrem-me para um centavo, O valor exato de um e o valor exato de dois, e o que está à frente?

4

Traiçoeiros e curiosos estão à minha volta, Pessoas com quem me encontro, os efeitos que a minha infância tem sobre mim, ou o bairro e a cidade em que vivo, ou a nação, As últimas datas, descobertas, invenções, sociedades, autores antigos e novos, Meu jantar, roupas, amigos, olhares, cumprimentos, dívidas, A indiferença real ou fantasiosa de um homem ou mulher que eu amo, A doença de alguém de minha gente ou de mim mesmo, ou ato doentio, ou perda ou falta de dinheiro, depressões ou exaltações, Batalhas, os horrores da guerra fratricida, a febre de notícias duvidosas, os terríveis eventos; Essas imagens vêm a mim dia e noite, e partem de mim outra vez, Mas não são o meu verdadeiro Ser. Longe do que puxa e do que arrasta, ergue-se o que de fato eu sou, Ergue-se divertido, complacente, compassivo, ocioso, unitário, Olha para baixo, está ereto, ou descansa o braço sobre certo apoio impalpável, Olhando com a cabeça pendida para o lado, curioso sobre o que está por vir, Tanto dentro como fora do jogo, e o assistindo, e intrigado sobre ele. No passado vejo em meus próprios dias quando suei através do nevoeiro com lingüistas e contendores, Não trago zombarias ou argumentos, apenas testemunho e aguardo.
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5

Acredito em ti, minha alma, o outro que eu sou não deve se humilhar para ti, E tu não deves te humilhar para o outro. Vadia comigo sobre a relva, solta a válvula de tua garganta, Nem palavras, nem música ou rima eu desejo, nem fantasias ou discursos, nem mesmo os melhores, Só da calmaria eu gosto, do zumbido da tua voz valvulada. Lembro-me de como certa vez nós nos deitamos numa manhã de verão transparente como a de hoje, De como pousaste obliquamente tua cabeça sobre meu colo e gentilmente te viraste para mim, Abriste a camisa no meu peito e impeliste a língua no meu coração despido, E alcançaste a minha barba até senti-la, e alcançaste o extremo dos meus pés para segurá-los. De repente, tu te levantaste e espalhaste em minha volta a paz e o conhecimento que vão além de todos os argumentos da terra, Eu sei que a mão de Deus é a promessa da minha, E eu sei que o espírito de Deus é o irmão do meu espírito, E que todos os homens que já nasceram são igualmente meus irmãos, e todas as mulheres minhas irmãs e amantes. E que a sobrequilha da criação é o amor, E que infinitas são as folhas rijas ou caídas pelos campos, E as formigas marrons nos pequenos poços sob elas, E as crostas musgosas da cerca, das rochas empilhadas, do ancião, do verbasco e da erva-dos-cancros.

6

Uma criança disse O que é a relva?, encantadora para mim, apresentando-a em suas mãos; O que eu poderia responder à criança? Ignoro o que a relva é tanto quanto esse menino. Penso que seja a bandeira de minha disposição, tecida a partir de um algo verde esperançoso.  med.00400.056.jpg Imagino que seja o lenço do Senhor, Um presente perfumado, uma lembrança deixada para nós como um desígnio, Tendo o nome do dono gravado de algum modo nos cantos, para que possamos ver e destacar, e dizer De quem? Ou é possível que a relva ela mesma seja uma criança, o bebê criado pela vegetação. Imagino que seja um hieróglifo uniforme, E significa que brota tanto nas zonas largas quanto nas estreitas, Crescendo tanto entre os negros quanto entre os brancos, Canadenses, tuckahoes, congressistas, presos — eu dou a eles o mesmo, eu deles recebo o mesmo. E agora me parece que ela é o lindo cabelo longo dos túmulos. Com carinho eu te usarei, relva crespa, Pode ser que transpires do peito de jovens rapazes, Pode ser que se eu os tivesse conhecido eu os teria amado, Pode ser que venhas dos velhos, ou de recém-nascidos arrancados prematuramente do colo de suas mães, E aqui tu te transformas em colos de mãe. Esta relva é muito escura para que provenha dos cabelos brancos das mães, Mais escura que as barbas sem cor dos anciãos, Escura para vir de sob os desfalecidos céus vermelhos das bocas. Ah! percebo afinal tantas línguas pronunciando, E percebo que elas não vêm dos céus da boca à toa. Eu gostaria de poder traduzir as insinuações sobre os rapazes e as moças mortas, E as insinuações sobre os velhos e as mães, e das criancinhas que foram levadas prematuramente dos colos. O que achas que foi feito dos jovens e dos velhos? E o que achas que foi feito das mulheres e das crianças? Eles estão vivos e bem em alguma parte,  med.00400.057.jpg O brotinho é a prova de que de fato não há morte, E se acaso algum dia ela existiu, conduziu-se adiante para a vida; não ficou à espera no final para prendê-la, E deixou de ser a morte no momento em que a vida apareceu. Tudo avança e se expande, nada entra em colapso, Morrer é algo diferente do que qualquer um pode supor, é uma sorte maior.

7

Alguém se julgou afortunado por ter nascido? Apresso-me a informá-lo ou informá-la que morrer é ter a mesma sorte, e disso tenho ciência. Passo pela morte com aquele que morre e pelo nascimento com o nascituro, e não estou contido entre o meu chapéu e minhas botas. E examino muitos objetos; não há dois que sejam idênticos e todos são bons, A Terra é boa e as estrelas são boas, e seus adjuntos são bons. Não sou uma Terra nem o adjunto de uma Terra, Eu sou o parceiro e o companheiro dos povos, todos tão imortais e insondáveis como eu sou (Eles não têm ciência de sua imortalidade, mas eu tenho.) Cada tipo para si e para aquilo que é seu, para mim o meu macho ou minha fêmea, Para mim os que foram meninos e que amam as mulheres, Para mim o homem orgulhoso que sabe a dor de ser desprezado, Para mim a moça amada e a velha solteirona, para mim as mães e as mães das mães, Para mim lábios que já sorriram, olhos que verteram lágrimas, Para mim as crianças e aqueles que geram as crianças. Descortinai-vos! Não sois culpados para mim, nem caducos, nem descartados, Eu vejo através da lã e do algodão pelo sim e pelo não, E estou próximo, tenaz, ambicioso, incansável, e não posso ser afugentado.
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8

O pequenino dorme em seu berço, Ergo a tela e o observo por um tempo longo, e sem alarde espanto as moscas com a mão. O jovem e a moça de rosto rosado se viram para o lado na montanha repleta de arbustos, Eu os perscruto olhando-os lá do alto. O suicida está esparramado no chão, ensangüentado no quarto de dormir, Eu testemunho o cadáver com seus úmidos cabelos e noto onde a pistola caiu. A tagarelice das calçadas, as rodas das carroças, a lama na sola das botas, a conversa no passeio público, O ônibus pesado, o motorista com seu polegar interrogativo, o estrépito das ferraduras no chão de granito, Os trenós, os estalidos, as piadas gritadas, o impacto das bolas de neve, As saudações para os favoritos do povo, a fúria das hordas inflamadas, A agitação das cortinas da liteira, um doente carregado ao hospital, O encontro de inimigos, a blasfêmia repentina, as pancadas e a queda, A multidão excitada, os policiais com sua estrela forçando apressadamente a passagem para o centro da turba, As rochas impassíveis que recebem e devolvem tantos ecos, Que gemidos de empanzinados ou famintos que caem de insolação ou com espasmos, Que exclamações de mulheres que entram subitamente em trabalho de parto e correm para suas casas dando à luz os seus bebês, Que discurso vivo e subterrâneo está sempre aqui vibrando, que uivos reprimidos pelo decoro, A prisão de criminosos, desprezados, ofertas adúlteras feitas, consentimentos, rejeições com lábios convexos, Eu os percebo ou a sua aparição ou a sua ressonância — eu chego e me vou.
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9

As grandes portas do celeiro no interior mantêm-se abertas e prontas, A relva seca do tempo de colheita enche o vagão da carroça levada lentamente, A luz cristalina brinca com o marrom acinzentado e com o verde misturado, As braçadas enfeixadas no monte de feno movediço. Eu estou lá, eu ajudo, vim estirado no alto da carga, Senti o sacolejar macio, uma perna reclinada sobre a outra, Pulo das vigas e arranco o trevo e o capim, Dou cambalhotas e emaranho meus cabelos plenos de mechas.

10

Solitário, nas longínquas selvas e montanhas eu caço, Perambulando espantado com a minha própria leveza e meu júbilo, No fim da tarde, escolhendo um local seguro para passar a noite, Acendendo uma fogueira e cozinhando a caça fresca, Adormecendo sobre um monte de folhas com meu cachorro, tendo meu rifle ao meu lado. O veleiro ianque está debaixo de suas velas de céu, ele corta as chispas e desliza, Meus olhos divisam a terra, debruço-me sobre a proa ou grito alegremente do convés. Os marinheiros e os catadores de marisco levantaram bem cedo e vieram me apanhar, Eu enfiei as barras de minhas calças dentro das botas e fui e me diverti; Tinhas de estar conosco naquele dia junto ao caldeirão de ensopado. Assisti ao casamento do caçador de peles ao ar livre, no Oeste longínquo, a noiva era uma pele-vermelha, O pai dela e seus amigos sentaram próximos com suas pernas cruzadas e fumavam mudos; eles calçavam mocassins e tinham spessos cobertores sobre os ombros, Numa elevação assentava-se o caçador, ele estava vestido quase inteiramente com suas peles, sua barba e os cachos do cabelo pulentos protegiam seu pescoço, ele conduzia sua noiva pelas mãos, Ela tinha longos cílios, sua cabeça estava nua, sua cabeleira lisa e  med.00400.060.jpg grossa caía sobre os braços voluptuosos e alcançava até os pés. O escravo fugitivo chegou à minha casa e parou lá fora, Ouvi os movimentos com os quais ele quebrou os gravetos na pilha de lenha, Pela porta entreaberta da cozinha, eu o vi hesitante e frágil, E fui até o tronco em que ele se sentava, trouxe-o para dentro e o acalmei, Trouxe água e enchi uma banheira para o seu corpo suado e seus pés feridos, Dei-lhe um quarto contíguo ao meu, dei-lhe algumas roupas ordinárias e limpas, Lembro-me perfeitamente bem de seus olhos agitados e de seu constrangimento, E lembro-me de colocar emplastros nas escoriações de seu pescoço e de seus tornozelos; Ele ficou comigo durante uma semana até se recuperar e continuar sua jornada para o norte, Eu fazia com que se sentasse ao meu lado na mesa, meu mosquete encostado a um canto.

11

Vinte e oito rapazes banham-se na praia, Vinte e oito rapazes, e todos tão amigos; Vinte e oito anos de vida feminina e todos tão solitários. Ela é a proprietária daquela bela casa na subida da margem, Ela se esconde bela e bem vestida por trás das persianas da janela. Qual dos rapazes ela mais ama? Ah! até o mais simplório entre eles lhe parece lindo. Aonde vais, senhora? Pois te vejo, Brincas lá na água e ainda assim estás imóvel no teu quarto. Dançando e rindo pela praia veio a vigésima nona banhista, Os outros não a viram, mas ela os viu e os amou. As barbas dos rapazes cintilavam porque estavam molhadas, com a água escorrida de seus cabelos longos.  med.00400.061.jpg Pequenos riachos passaram pelos corpos deles. Uma mão invisível também passou pelos seus corpos, Descendo trêmula de suas frontes e costelas. Os rapazes bóiam de costas, suas barrigas brancas salientes estão voltadas para o sol, eles não perguntam quem os segura com tanta rapidez, Não sabem quem sopra e se debruça como um arco pendente que se curva, Eles não imaginam a quem encharcam quando borrifam a água.

12

O rapaz que trabalha no açougue tira o seu avental de matadouro ou afia a sua faca na tenda do mercado, Eu me demoro apreciando as suas réplicas, o seu barulho e confusão. Ferreiros de peito horrendo e cabeludo fazem um círculo em torno da bigorna, Cada um tem o seu malho principal, eles estão todos trabalhando, há um grande calor na forja. Da soleira coberta de cinzas, acompanho seus movimentos, A leve agitação de suas cinturas joga até mesmo com seus braços maciços, De cima para baixo balançam seus martelos, de cima para baixo tão devagar, de cima para baixo com tanta precisão, Eles não se apressam, cada homem trabalha em seu posto.

13

O negro segura firme as rédeas dos seus quatro cavalos, o bloco cambaleia embaixo da corrente bem atada, O negro dirige a longa carreta no pátio de pedra; impassível e alto ele se ergue tendo uma perna sobre a longarina, Sua camisa azul expõe seus vastos pescoço e tórax e se afrouxa sobre os quadris, Seu olhar de relance é calmo e imperativo, ele afasta da testa a aba do chapéu, O sol cai sobre os seus crespos cabelos e bigode, cai sobre os seus membros polidos e perfeitos.  med.00400.062.jpg Contemplo o gigante pitoresco e o amo, e não paro por lá, Sigo com a equipe também. Em mim aquele que faz carícias na vida para onde quer que se mova, voltando-se para frente ou para trás, Debruçado sobre nichos laterais e novos, não perco qualquer pessoa ou objeto, Absorvo tudo para mim mesmo e para esta canção. Bois sacudindo ruidosamente o jugo e as correntes ou parando sob a sombra das folhas, o que é que expressais em vossos olhos? Isso me parece mais do que todo impresso que já li em minha vida. Meus passos assustam o pato selvagem e sua fêmea nesse passeio distante que dura o dia inteiro, Eles se erguem juntos, eles voam em círculos com lentidão. Eu creio nesses propósitos alados, Reconheço o vermelho, o amarelo, o branco, brincando comigo, E considero o verde e o violeta e a coroa plumada intencional, E não desprezo o valor da tartaruga porque ela é algo mais, E o gaio na floresta nunca estudou a escala musical, e ainda assim gorjeia belamente em meu conceito, E o olhar da égua baia revela a vergonha de minha estupidez.

14

O ganso selvagem guia o seu bando pela noite fria, Ya-honk, ele diz, e para mim o seu canto soa como um convite. O insolente pode supor que isso não tem significado, mas, ouvindo com atenção, Descubro seu propósito e seu lugar na direção do céu de inverno. O alce de cascos afiados do norte, o gato no peitoril da casa, o canário, o cão dos prados, A ninhada do javali grunhe quando puxa as tetas da mãe, Os filhotes da perua e ela têm as asas parcialmente abertas, Vejo neles e em mim mesmo a mesma velha lei. A pressão de meu pé sobre a terra faz jorrar uma centena de afeições, Elas escarnecem do máximo que faço para descrevê-las.  med.00400.063.jpg Estou enamorado da experiência de crescer ao ar livre, Entre os homens que vivem entre o gado ou degustam os oceanos ou as florestas. Entre os construtores e capitães de navios, os que empunham machados e marretas e os que conduzem cavalos, Posso comer e dormir com eles semana após semana. O que é mais comum, mais barato, mais próximo, mais fácil, sou Eu, Eu me lançando sobre as minhas chances, investindo para alcançar um retorno vasto, Enfeitando-me para me entregar ao primeiro que me escolher, Sem pedir ao céu que baixe para a minha boa vontade, Espalhando-a livremente para sempre.

15

O puro contralto canta no paiol do órgão, O carpinteiro reveste a sua prancha, a língua de sua plaina assobia em seu louco e crescente balbucio, Os filhos casados e solteiros dirigem-se para casa, para o seu jantar de Ação de Graças, O piloto segura o leme, ele o empurra para baixo com braço forte, O parceiro ergue-se amparado no barco baleeiro: a lança e o arpão estão prontos, O caçador de patos anda em silêncio e a passos cautelosos, Os diáconos são ordenados tendo suas mãos cruzadas no altar, A tecelã recua e avança ao sabor do zunido do grande tear. O fazendeiro pára nos bares quando anda no ócio de um fim de semana e observa a aveia e o centeio, O lunático é finalmente levado para o hospício, um caso confirmado, (Ele nunca mais dormirá como fazia no abrigo do quarto de dormir de sua mãe) O impressor diarista, com sua cabeça grisalha e queixo macilento, trabalha no seu estojo, Ele masca tabaco enquanto seus olhos se embaçam com o manuscrito; Os membros malformados estão atados à mesa do cirurgião, Ouve-se o horrível baque daquele que é amputado e cai num balde; A moreninha é vendida na sala de leilão, o bêbado inclina a cabeça ao lado do aquecedor do bar, O maquinista arregaça as mangas, o policial faz sua ronda, o sentinela nota quem passa por ali,  med.00400.064.jpg O rapaz dirige o vagão expresso (eu o amo, apesar de não conhecê-lo); O mestiço calça suas botas leves para competir na corrida, O tiro ao peru no Oeste atrai velhos e moços, alguns se apóiam em seus rifles, outros sentam-se em troncos de madeira, Destacado da multidão, o atirador caminha, toma a sua posição, faz mira; Os grupos de recém-chegados imigrantes cobrem o ancoradouro ou a doca, Enquanto os negros capinam nas plantações de cana-de-açúcar, o supervisor os observa do alto de sua sela, A corneta toca no salão de baile, os cavalheiros perseguem suas parceiras, os dançarinos fazem mesuras, O jovem deita-se desperto no sótão de telhado de cedro e ouve atentamente a chuva musical, O caçador em Michigan põe armadilhas no riacho que ajuda a encher o Huron, A índia embrulhada em seu pano amarelo embainhado está oferecendo mocassins e sacos de contas, O especialista observa a galeria com olhos semi-abertos, inclinando- se para o lado, Enquanto os marinheiros aceleram o barco a vapor, a prancha é lançada aos passageiros que ficarão em terra, A irmã mais nova agarra-se à meada, enquanto a mais velha faz uma bola de novelo, e pára às vezes para desatar os nós, A mulher casada há um ano se recupera e está feliz, tendo dado à luz seu primeiro filho há uma semana, A jovem ianque de cabelos limpos trabalha em sua máquina de costura ou na fábrica ou no moinho, O pedreiro se apóia em seu martelo de duas alças, o lápis do repórter desliza suavemente sobre o caderno, o pintor de sinais está escrevendo em azul e dourado, O menino do canal trota pelo caminho do reboque, o guarda-livros calcula em sua mesa, o sapateiro encera a sua fibra, O maestro marca o compasso da banda e todos os músicos seguem seu comando, A criança é batizada, o convertido faz suas primeiras profissões de fé, A regata está esparramada pela baía, a corrida começou (como as velas brancas brilham!) O vaqueiro guardando seu rebanho orienta os animais que iriam se perder,  med.00400.065.jpg O mascate com a mercadoria em suas costas (o comprador pechincha cada centavo); A noiva alisa seu vestido branco, o ponteiro de minutos do relógio se move vagarosamente, O viciado em ópio reclina a cabeça rígida com os lábios entreabertos, A prostituta arrasta o xale, sua touca bamboleia em seu pescoço ébrio e marcado, A multidão acha graça em suas blasfêmias injuriosas, os homens dela escarnecem piscando uns para os outros, (Miserável! Eu não rio de tuas injúrias nem zombo de ti); O Presidente realizando uma reunião de gabinete é cercado por seus grandes Secretários de Governo, Na praça caminham três matronas faustosas e amigáveis, de braços dados, A tripulação do navio pesqueiro acumula camadas de linguado no estoque, O morador do Missouri atravessa as planícies carregando suas mercadorias e seu gado, Enquanto o cobrador vai pelos corredores do trem denunciando sua presença pelo retinir das moedas, Os trabalhadores estão assentando o piso, os estanhadores estão revestindo o telhado, os pedreiros pedem mais argamassa, Em fila indiana, cada um tendo sobre os ombros o seu balde, passam adiante os trabalhadores; De estação em estação, a multidão indescritível se reúne, é o quarto dia do sétimo mês (que saudações de canhão e pequenos exércitos!) De estação em estação o arado ara, o ceifador ceifa e os grãos de inverno caem no chão; Lá nos lagos o pescador de lúcio observa e aguarda junto ao buraco na superfície congelada, Os tocos grossos de pé em torno da clareira, o posseiro acerta a fundo com seu machado, Os condutores da chalana ancoram ao entardecer, perto dos algodoeiros e das nogueiras pecãs, Os caçadores de escravos atravessam as regiões do Rio Vermelho, ou aquelas que são banhadas pelo Tennessee, ou as do Arkansas, Tochas brilham na escuridão que pende sobre os Chattahooche ou Altamahaw, Patriarcas sentam-se para jantar, tendo ao redor seus filhos, netos e bisnetos,  med.00400.066.jpg Entre paredes de argila, em tendas de lona, descansam caçadores e armadores depois do seu dia de esporte, A cidade dorme e dorme o campo, Os vivos dormem para seu tempo, os mortos dormem para o seu, O velho marido dorme ao lado da esposa e o marido jovem dorme ao lado da esposa; E eles vêm para o meu interior, e eu saio ao seu encontro, E tal como aquilo que pertence a eles, mais ou menos eu sou, E de cada um deles, e de todos, eu teço a canção de mim mesmo.

16

Sou dos velhos e dos jovens, sou dos tolos e dos sábios, Sem consideração aos outros, sempre os considerando, Maternal tanto quanto paternal, uma criança tanto quanto um homem, Cheio das coisas que são ásperas e cheio daquilo que é fino, Um ente da Nação de muitas nações, indiferente às menores e às maiores, Um sulista tanto quanto um nortista, um plantador desinteressado e hospitaleiro próximo ao Oconee eu vivo, Um ianque atraído para os meus próprios modos, pronto para negociar, minhas são as mais ágeis juntas da terra e as mais rígidas também. Um homem do Kentucky, caminhando pelo vale do Elkhorn em minhas perneiras de pele de veado, um homem da Louisiana ou da Geórgia. Um barqueiro em lagos ou em baías ao longo da costa, um homem de Indiana, Wisconsin, Ohio; Sinto-me em casa nas montanhas de neve do Canadá ou acima no mato, ou com os pescadores das terras recém-descobertas, Sinto-me em casa na frota de navios quebra-gelos, navegando com os demais e bordejando, Sinto-me em casa nos morros de Vermont, ou nas florestas do Maine, ou nos ranchos do Texas, Camarada entre os californianos, camarada entre os livres do Noroeste (amando seu porte avolumado), Camarada entre balseiros e entre carvoeiros, camarada entre todos os que acolhem, dão as boas-vindas, oferecem bebida e comida, Um aprendiz dos mais simples, um professor dos mais pensantes, Um noviço dando os primeiros passos, contudo experimentado em miríades de estações, De toda cor e casta eu sou, de toda classe e religião,  med.00400.067.jpg Um fazendeiro, mecânico, artista, cavalheiro, navegante, quacre, Prisioneiro, proxeneta, arruaceiro, advogado, médico, sacerdote. Resisto a qualquer coisa melhor do que à minha própria diversidade, Respiro o ar, mas deixo muito dele atrás de mim, Não sou presunçoso, e ocupo o meu posto. (A mariposa e as ovas de peixe estão em seus postos, Os sóis brilhantes vejo e os sóis escurecidos que eu não posso ver estão em seus postos, O palpável está em seu posto, o impalpável está em seu posto).

17

Na verdade esses são os pensamentos de todos os homens, em todos os tempos e lugares, eles não são originais em mim, Se não são seus tanto quanto meus, não são nada, ou próximos de nada, Se não são o enigma e a solução do enigma, não são nada, Se não são tão próximos quanto distantes, não são nada. Esta é a relva que cresce onde quer que haja terra e haja água, Este é o ar comum que banha o globo.

18

Com música poderosa eu venho, com minhas cornetas e tambores, Não toco marchas para os vitoriosos conhecidos, toco marchas para os conquistados e assassinados. Ouviste dizer que é bom ganhar o dia? Digo que também é bom cair; batalhas são perdidas no mesmo espírito em que são ganhas. Bato e alardeio pelos mortos, Eu sopro através de minha embocadura, bem alto e alegremente para eles. Vivas àqueles que perderam! E para aqueles cujas naus de guerra naufragaram no oceano! E para aqueles que se afogaram no oceano! E para todos os generais derrotados em suas empresas, e todos os heróis abatidos!  med.00400.068.jpg E os incontáveis heróis desconhecidos, tão grandes quanto os grandes e aclamados heróis!

19

Esta é a refeição servida com igualdade, esta é a carne para a fome natural, Ela serve aos maus tanto quanto aos justos, minha festa é para todos, Não deixarei uma única pessoa desprezada ou deixada de lado, A cortesã, o aproveitador, o ladrão são por meio desta convidados. O escravo de lábios grossos está convidado, o que sofre de doenças venéreas está convidado; Não haverá diferença entre eles e os demais. Esta é a estampa de uma mão tímida, este é o movimento e o perfume dos cabelos, Este é o toque de meus lábios nos seus, este é o murmúrio do anelo, Esta é a profundidade e a altura refletindo minha própria face, Esta é a incorporação refletida de mim mesmo e a vasão reencontrada. Pensas que tenho algum propósito intrincado? Bem, eu tenho, pois a chuva do quarto mês tem, e a mica na superfície lateral da rocha também tem. Pensas que o que desejo é surpreender? A luz do dia surpreende? O rabo-ruivo da manhã pipila na floresta? Será que eu surpreendo mais que ambos? Neste momento eu conto o que conto em confidência, Possivelmente não contarei a todos, mas a ti eu conto.

20

Quem vai ali? Cheio de realizações, tosco místico, nu; Como extraio energia da carne que consumo? O que é um homem afinal? O que sou eu? O que és tu? Tudo o que marco como sendo meu tu deves compensar com o que é teu. De outro modo seria perda de tempo me ouvir.  med.00400.069.jpg Não lanço a lamúria da minha lamúria pelo mundo inteiro, De que os meses são vazios e o chão é lamaçal e sujeira. Choradeira e servilismo são encontrados junto com os remédios para inválidos, a conformidade polariza-se no ordinário mais remoto. Uso meu chapéu como bem entender dentro ou fora de casa. Por que eu deveria orar? Por que deveria venerar e ser cerimonioso? Tendo inquirido todas as camadas, analisado as minúcias, consultado os doutores e calculado com perícia, Não encontro gordura mais doce do que aquela que se prende aos meus próprios ossos. Em todas as pessoas enxergo a mim mesmo, em nenhuma vejo mais do que eu sou, ou um grão de cevada a menos. E o bem e o mal que falo de mim mesmo eu falo delas. Sei que sou sólido e sadio. Para mim os objetos convergentes do universo perpetuamente fluem, Todos são escritos para mim, e eu devo entender o que a escrita significa. Sei que sou imortal, Sei que a órbita do meu eu não pode ser varrida pelo compasso de um carpinteiro, Sei que não passarei como os círculos luminosos que as crianças fazem à noite, com gravetos em brasa. Sei que sou augusto. Não perturbo meu próprio espírito para que se defenda ou seja compreendido, Vejo que as leis elementares nunca pedem desculpas, (Reconheço que me comporto com um orgulho tão alto quanto o do nível com que assento a minha casa, afinal). Existo como sou, isso me basta, Se ninguém mais no mundo está ciente, fico satisfeito. E se cada um e todos estiverem cientes, satisfeito fico.  med.00400.070.jpg Um mundo está ciente e esse é incomparavelmente o maior de todos para mim, e esse mundo sou eu mesmo, E se venho para o que é meu, ainda hoje ou dentro de dez mil anos, ou dez milhões de anos, Posso alegremente recebê-lo agora, ou esperá-lo com alegria igual. Meus pés estão espigados e encaixados no granito, Debocho daquilo que chamas de dissolução, E conheço a amplitude do tempo.

21

Sou o poeta do Corpo e sou o poeta da Alma, Os prazeres do céu estão comigo e as dores do inferno estão comigo, O primeiro eu transplanto e amplio sobre mim e o segundo traduzo em uma nova língua. Eu sou o poeta da mulher tanto quanto o do homem, E digo que é tão grandioso ser uma mulher como ser um homem, E digo que não há nada maior do que ser a mãe dos homens. Canto o canto da expansão ou do orgulho, Já tivemos fuga e censura o suficiente, Revelo que o tamanho é apenas o desenvolvimento. Ultrapassaste os demais? És o Presidente? Isso é ninharia, eles irão além desse teu feito. Eu sou aquele que caminha com a noite que cresce brandamente, Clamo à terra e ao mar, em parte abraçados pela noite. Estampa-te em mim, noite de seio nu — estampa-te em mim, noite magnética e nutritiva! Noite do vento sul — noite de estrelas grandes e escassas! Noite imóvel e ondulante — noite de verão louca e desnuda. Sorri, ó voluptuosa terra de hálito fresco! Terra das árvores sonolentas e líquidas! Terra do crepúsculo finado — terra das montanhas dos topos de neblina! Terra da vertente vítrea da lua cheia, subtilmente tingida de azul! Terra do brilho e da escuridão que mosqueiam a maré do rio!  med.00400.071.jpg Terra do cinza límpido, das nuvens que são mais brilhantes e mais claras em meu nome! Terra angulada dos grandes precipícios — terra rica em flores de macieira! Sorria, teu amante está chegando. Pródiga, tu me deste amor — assim sendo eu também te dou amor! Ó amor apaixonado e indizível.

22

Tu, ó mar! Eu também me entrego a ti — adivinho o que queres dizer, Vejo da praia teus dedos deformados que me convidam, Creio que recusas retornar sem antes me sentir, Precisamos juntos dar uma volta, eu me dispo, me apresso para fora da vista da terra, Amortece-me suavemente, embala-me em encapelado adormecimento, Espirra-me tua umidade amorosa, eu posso te recompensar. Mar de estendidos elementos avultados, Mar de respirações vastas e convulsivas, Mar da água da vida e das sepulturas não cavadas sempre prontas, Uivador e escavador de tempestades, caprichoso e requintado mar, Sou um contigo, também sou de uma fase e de todas as fases. Compartilhador do influxo e do efluxo eu, cantor do ódio e da conciliação, Cantor dos amigos e daqueles que dormem nos braços uns dos outros. Eu sou aquele que oferece solidariedade, (Devo fazer minha lista das coisas que estão dentro da casa e esquecer a casa que as sustenta?) Não sou o poeta da bondade apenas, não rejeito a possibilidade de ser também o poeta da maldade. Que besteira é essa de virtude e vício? O mal me impele e a reforma do mal também me impele, e eu permaneço indiferente, Meu modo de andar não é o de um crítico ou o de alguém que contesta,  med.00400.072.jpg Eu molho a raiz de tudo o que cresceu. Temias alguma escrófula após a persistente gravidez? Pensavas que as leis celestiais precisariam ser aperfeiçoadas e corrigidas? Encontro de um lado o equilíbrio e do lado oposto um equilíbrio, Uma doutrina maleável é tão segura quanto uma doutrina estável, Pensamentos e feitos do presente são nosso despertar e nosso início prematuro. Este minuto que me chega após os decilhões passados, Não há nada melhor do que ele agora. O que se comportou bem no passado ou se comporta bem no presente não é por isso um assombro, O assombro é sempre e sempre que possa haver um homem mau ou infiel.

23

Interminável desdobramento de verbos de eras! E o meu é o verbo do moderno, o verbo da Massa. Um verbo de fé que nunca empaca, Aqui, ou daqui em diante, tudo é o mesmo para mim, aceito o tempo de modo absoluto. Só ele não tem falha, só ele a tudo circunda e tudo completa, Essa mística e desconcertante maravilha a tudo completa. Aceito a realidade e não ouso questioná-la, O materialismo saturando o alfa e o ômega. Hurra para a ciência positiva! Vida longa para a demonstração exata! Alcança a erva-pinheira misturada com o cedro e os galhos de lilás, Este é o lexicógrafo, este é o químico, este fez uma gramática de antigos cartuchos, Estes marinheiros colocam o navio por mares perigosos e desconhecidos,  med.00400.073.jpg Este é o geologista, este trabalha com o escalpelo e este é um matemático. Cavalheiros, para vós sempre as primeiras honras! Vossos fatos são úteis, mas não são o meu domínio, Apenas cruzo com eles em uma área de meu domínio. Minhas palavras são menos que lembranças de propriedades descritas, E são mais as lembranças da vida oculta, e de liberdade e desenredo, E fazem pouco caso de eunucos e castrados, favorecendo homens e mulheres totalmente equipados, E batem o gongo da revolta, e acampam com fugitivos e com aqueles que tramam e conspiram.

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Walt Whitman, um Cosmos, de Manhattan o filho, Turbulento, corpulento, sensual, comendo, bebendo e reproduzindo, Sem sentimentalismo, sem estar acima de homens e mulheres ou separado deles, Não mais modesto do que imodesto. Desatai as fechaduras das portas! Desatai mesmo as portas de seus batentes! Quem quer que degrade o outro, degrada a mim, E tudo o que é feito e dito retorna ao final para mim. Através de mim a inspiração chega em ondas sobre ondas, através de mim a corrente e o catálogo. Digo a senha primordial, eu dou o sinal da democracia, Por Deus! Não aceitarei nada de que todos não possam ter sua compensação nos mesmos termos. Através de mim muitas vozes emudecidas há muito tempo, Vozes das gerações intermináveis de prisioneiros e escravos, Vozes de doentes e desesperados e de ladrões e anões, Vozes dos ciclos de preparação e crescimento, E das linhas que se conectam aos astros, dos úteros e das coisas dos pais,  med.00400.074.jpg E dos direitos daqueles submetidos aos outros, Dos deformados, dos fúteis, dos apáticos, dos tolos, dos desprezados, Nevoeiro no ar, besouros rolando bolas de esterco. Por mim, vozes proibidas, Vozes de sexos e de desejos, vozes veladas e eu retiro o véu, Vozes indecentes, por mim clarificadas e transfiguradas. Não aperto meus dedos sobre a boca, Cuido com delicadeza de meus intestinos, do mesmo modo com que cuido da cabeça ou do coração, A cópula não é mais digna para mim do que a morte. Acredito na carne e nos apetites, A visão, a audição, o tato são milagres, e cada parte e fragmento de mim é um milagre. Divino eu sou por dentro e por fora e tudo o que toco ou aquilo por que sou tocado torna-se sagrado. O cheiro dessas axilas é um perfume mais elevado do que a prece, Esta cabeça é mais do que as igrejas, as bíblias, e todas as crenças. Se eu cultuar algo com especial intensidade esse algo será a extensão de meu próprio corpo ou de qualquer parte dele. Translúcido molde meu, serás tu! Telhado e descanso que a sombra oferece, serás tu! Arado firme e masculino, serás tu! Qualquer coisa que vá para a minha lavoura serás tu! Tu, meu rico sangue! Teu córrego lácteo são tiras pálidas da minha vida! Peito que se aperta a outros peitos, serás tu! Meu cérebro serão tuas recônditas torções! Raiz de cálamo lavado! Temerosa narceja do lago! Ninho de ovos duplos vigiados! Serás tu! Dança rústica misturada e indistinta de cabeça, barba, músculo, serás tu! Gotejo de seiva de ácer, fibra de másculo trigo, serás tu! Sol tão generoso, serás tu! Vapor que ilumina e faz sombra em minha face, serás tu! Regatos e orvalhos suados, sereis vós!  med.00400.075.jpg Ventos cujos genitais gotejam suavemente ao se roçarem contra mim, sereis vós! Vastos campos musculares, ramos de carvalho vivo, amantes vadios em meus caminhos sinuosos, sereis vós! Mãos que segurei, rosto que beijei, mortal que sempre toquei, sereis vós! Tenho loucura por mim, há tanto de mim, e tudo tão saboroso, Cada momento — aconteça o que acontecer — me enche de deleite. Não posso dizer como meus tornozelos se torcem, nem a origem de meus menores desejos, Nem a causa da amizade que irradio, nem a causa da amizade que recebo em troca. Quando ando até o alpendre, paro para conjeturar sobre a realidade deste fato: Uma planta que cresce em minha janela me satisfaz mais do que a metafísica dos livros. Testemunhar a alvorada! A luz débil enfraquece a sombra diáfana e imensa, O ar tem um gosto bom para o meu paladar. A maior parte de um mundo em movimento, em inocentes cambalhotas se erguendo silenciosamente, gotejando com frescor. Fugindo obliquamente acima e abaixo. Algo que não posso ver ergue seus forcados libidinosos, Mares de fluidos brilhantes inundam o céu. A terra pelo céu acompanhada, o fechamento diário de sua junção, Desafio do leste erguido naquele momento sobre minha cabeça, O insulto zombeteiro. Vê, então, se serás o Mestre!

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Fascinante e tremendo, com que rapidez o nascer do sol me mataria, Se eu pudesse agora e sempre emitir, de dentro de mim, o nascer do sol.  med.00400.076.jpg Também nos erguemos fascinantes e tremendos como o sol, Encontramos o que é nosso, ó minha alma, na calmaria e no frescor da alvorada. Minha voz persegue o que meus olhos não alcançam, Com um giro de minha língua abarco mundos e volumes de mundos. A fala é gêmea de minha visão, ela é inigualável em sua própria medida, Ela me provoca para sempre, ela diz sarcasticamente, Walt, conténs o bastante, por que não te abres para o mundo? Vem agora, não serei atormentado, concebes articulação em demasia, Não sabes, ó discurso, como os botões sob ti se fecham? Esperando na escuridão, protegido pela geada, A poeira retrocedendo perante os meus gritos proféticos, Eu sublinhando causas para equilibrá-las finalmente, Meu conhecimento são minhas partes vivas, ele mantém a conta do significado de todas as coisas, Felicidade (quem quer que me ouça deixe que se lance em busca dela neste dia). Meu mérito final recuso a ti, recuso-me a entregar o que de fato sou, Abrange os mundos, mas nunca tentes me abranger, Preencho o que tens de mais macio e de melhor simplesmente olhando para ti. A escrita e a fala não me provam. Carrego a plenitude das provas e tudo o mais em minha face, Na quietude de meus lábios o céptico desconcerta-se inteiramente.

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Agora nada farei além de ouvir, Para acrescer o que ouço aos meus cantos, para deixar que os sons contribuam em sua direção. Eu ouço o talento dos pássaros, o alvoroço do trigo que cresce, a fofoca das chamas, os estalos dos gravetos cozinhando minhas refeições, Eu ouço o som que amo, o som da voz humana,  med.00400.077.jpg Eu ouço todos os sons se propagando juntos, combinados, fundidos ou em seqüência, Sons da cidade e sons fora da cidade, sons do dia e da noite, Jovens faladores com os que deles gostam, a risada estridente dos trabalhadores durante as refeições, A base irritada da amizade desfeita, os tons débeis dos doentes, O juiz com as mãos presas à mesa, seus lábios pálidos pronunciando uma sentença de morte, Os altos brados dos estivadores descarregando os navios no cais, o refrão dos levantadores de âncora, O toque dos alarmes, o grito de "fogo!", o ronco dos motores rápidos e do carro com mangueiras e tinidos premonitórios e luzes coloridas. O apito a vapor, o rolamento sólido do trem que vem chegando, A marcha lenta tocada à frente da associação, marchando dois a dois, (Eles vão recolher alguns corpos, o topo das bandeiras drapejado com musselina negra). Ouço o violoncelo (é o lamento do coração do rapaz), Ouço a corneta de teclado que desliza rapidamente pelos meus ouvidos, Ela causa uma agonia louca e doce que atravessa minhas entranhas e meu peito. Ouço o coro, é a grande ópera, Ah, isso sim é música! — isso se casa comigo. Um tenor grande e novo como a criação me preenche, O céu esférico de sua boca está jorrando em mim e me realizando. Ouço a soprano virtuosa (o que é este trabalho quando comparado ao dela?) A orquestra me faz rodopiar numa órbita mais larga que a do vôo de Urano, Faz surgir em mim tais ardores que não imaginava possuir, Ela me faz navegar, mergulho meus pés descalços, eles são lambidos pelas ondas indolentes, Sou cortado por um granizo amargo e irado, perco o fôlego, Macerado por melíflua morfina, minha traquéia sufocada em farsas da morte, Ao fim, solto-me uma vez mais para sentir o enigma dos enigmas,  med.00400.078.jpg E aquilo que chamamos Ser.

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Ser em qualquer forma, o que é isso? (Movemo-nos em círculos, todos nós, retornamos sempre ao ponto de partida) Se nada se assenta mais desenvolvido, o mexilhão em sua concha calosa seria suficiente. Eu não vivo em uma concha calosa, Há condutores instantâneos por toda parte de meu ser, quer eu passe quer eu pare. Eles tomam todo o objeto e o conduzem, sem fazer dano, através de mim. Eu apenas agito, pressiono, sinto com meus dedos e estou feliz, Tocar minha pessoa na de outro alguém é praticamente tudo o que posso suportar.

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É isto, então, um toque? Um estremecimento que me dá uma nova identidade, Chamas e éter correndo pelas minhas veias, Desleal pedaço de mim alcançando e entrando pela multidão para ajudá-la, Minha carne e meu sangue jogando raios para derrubar o que mal difere de mim mesmo, De todos os lados lúbricos provocadores imobilizando meus membros. Puxando o úbere de meu coração para obter a seiva interna, Comportando-se licenciosamente em relação a mim, não aceitando recusa, Despojando-me do meu melhor a pretexto de uma causa, Desabotoando minhas roupas, abraçando-me pela cintura nua, Enganando minha confusão com a calma da luz solar e das pastagens, Sem modéstia, afastando de mim os sentidos companheiros, Eles os subornaram em troca do toque e foram pastar à beira de mim, Nenhuma consideração, nenhuma atenção às minhas forças exauridas ou minha raiva, Atraíram o resto do rebanho em torno de si para desfrutar deles por um momento,  med.00400.079.jpg Depois, todos se uniram em pé sobre um promontório a me afligir. As sentinelas abandonam todas as outras partes de mim, Deixaram-me desamparado diante de um saqueador escarlate, Todos eles vêm ao promontório para testemunhar e se unir contra mim. Sou entregue por traidores, Falo abertamente, perdi minhas graças, eu e ninguém além de mim sou o maior dos traidores, Fui o primeiro a ir ao promontório, minhas próprias mãos me carregaram até lá. Tu, toque canalha! O que estás fazendo? Minha respiração está apertada na garganta, Abre tuas comportas, és demais para mim.

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Toque cego, amante e lutador, toque embainhado, encapuzado, de dentes afiados! O fato de teres me deixado causou-te alguma dor? Partida seguida de chegada, perpétuo pagamento de perpétuo empréstimo, Chuva forte e rica, e recompensa mais rica a seguir. Brotos recebem e acumulam, erguem-se sobre o parapeito prolíficos e vitais, Paisagens que se projetam masculinas, grandes e douradas.

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Todas as verdades esperam em todas as coisas, Elas não apressam o tempo de sua entrega nem resistem a ele, Elas não precisam do fórceps obstétrico do cirurgião, O insignificante é tão grande para mim como tudo o mais, (O que é maior ou menor do que um toque?) A lógica e os sermões nunca convencem, A umidade da noite cala mais fundo em minha alma. (Apenas aquilo que se prova para todo homem e mulher é real,  med.00400.080.jpg Só aquilo que ninguém nega é real.) Um minuto e uma gota de mim estabelecem meu cérebro, Acredito que os torrões encharcados se tornarão amantes e luzes, E um compêndio de compêndios é a carne de um homem ou de uma mulher, E um cimo e uma flor ali são o sentimento que eles têm um pelo outro, E eles estão para se ramificar, ilimitadamente, por força daquela lição até que se torne onípara. E até que um e todos nos deliciarão, e nós a eles.

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Creio que uma folha de relva não faz menos que a jornada diária das estrelas, E a formiga é igualmente perfeita, e o grão de areia, e o ovo da garriça, E a raineta é uma obra-prima para o altíssimo, E um corredor de amoras pretas adornaria os salões do céu, E a mais estreita junta de minha mão faz qualquer máquina parecer desprezível, E a vaca ruminando com sua cabeça volúvel supera qualquer estátua, E uma ratazana é um milagre suficiente para dobrar os joelhos de sextilhões de infiéis. Percebo que incorporo gnaisse, carvão, musgo de fios longos, frutas, grãos, raízes comestíveis, Sou todo revestido com figuras de quadrúpedes e aves, Estou distante do que deixei atrás de mim por bons motivos, Mas chamo de volta qualquer coisa quando desejar. Em vão a velocidade ou a timidez, Em vão as rochas plutônicas enviam seu velho calor contra a minha abordagem, Em vão o mastodonte se recolhe embaixo de seus próprios ossos pulverizados, Em vão os objetos se mantêm a léguas de distância e assumem formas diversas, Em vão o oceano se assenta em depressões e os grandes monstros se escondem, Em vão o urubu faz sua casa no céu, Em vão a cobra desliza pelas plantas rasteiras e os troncos,  med.00400.081.jpg Em vão o alce se recolhe para as pastagens mais recônditas da floresta, Em vão o mergulhão navega para o norte extremo em Labrador, Eu sigo rápido, galgo até o ninho na fissura do penhasco.

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Penso que eu poderia mudar-me para viver com os animais, eles são tão plácidos e independentes, De pé, eu olho para eles por muito e muito tempo. Eles não suam nem se lamentam de sua condição, Não se deitam e rolam acordados no escuro chorando por seus pecados, Não me deixam enjoado discutindo seus deveres perante Deus, Nenhum está insatisfeito, nenhum está ensandecido com a mania de possuir coisas, Nenhum se ajoelha diante do outro, nem para os de sua espécie que viveram há milhares de anos, Nenhum é respeitável ou infeliz na terra toda. Então eles mostram seus laços familiares para mim e eu os aceito, Eles me trazem sinais de mim mesmo, exibem-nos com clareza em sua posse. Fico imaginando em que paragens encontraram esses sinais, Terei passado por lá há muito tempo, terei sido negligente ao deixá-los cair? Eu sigo adiante como então, como agora e como sempre, Juntando e mostrando sempre mais e com velocidade, Infinito e omniforme, e semelhante a esses entre eles, Não muito exclusivo para com aqueles que alcançam minhas lembranças, Escolhendo aqui um que eu amo, e agora vou com ele em termos fraternos. Uma gigantesca beleza de garanhão, jovem e sensível às minhas carícias, Cabeça com testa alta, orelhas bem separadas, Patas lustrosas e ágeis, cauda arrastando-se no chão, Olhos cheios de brilhante travessura, orelhas bem talhadas, movendo-se flexivelmente.  med.00400.082.jpg Suas narinas se dilatam à medida que meus calcanhares o abraçam, Seus membros bem modelados tremem de prazer quando corremos e voltamos. Eu te uso apenas por um momento, e depois te renuncio, garanhão, Que necessidade tenho de teus passos se eu mesmo galopo com eles? Mesmo quando estou em pé ou sentado passo mais rápido do que tu.

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Espaço e Tempo! Agora vejo que é verdade o que já tinha adivinhado, O que adivinhei quando vadiava na relva, O que adivinhei quando estava deitado sozinho em minha cama, E de novo enquanto andava na praia sob as estrelas pálidas da manhã. Meus laços e lastros me deixam, meus cotovelos repousam em abismos no mar, Contorno as serras, minhas palmas cobrem continentes, Caminho a pé com a minha visão. Pelas casas quadrangulares da cidade — em cabanas de madeira, acampando com lenhadores, Ao longo dos buracos das estradas, ao longo da ravina seca e do leito do riacho, Capinando meu canteiro de cebolas, ou cavando, com a enxada, fileiras de cenouras e mandioca, atravessando savanas, penetrando em florestas, Fazendo prospecção, procurando ouro no solo, cortando as cascas das árvores de uma terra recém-adquirida, Os tornozelos queimados pela areia quente, arrastando meu barco pelo rio raso, Onde a pantera anda de um lado para outro sobre um galho alto,onde o cervo se volta com fúria contra o caçador, Onde a cascavel leva ao sol sua flácida extensão sobre uma pedra, onde a lontra se nutre de peixe, Onde o crocodilo, com sua dura carapaça, dorme num braço de rio, Onde o urso negro procura por raízes ou mel, onde o castor dá um tapa na lama com seu rabo em forma de remo; Sobre a cana-de-açúcar que cresce, sobre o pé de algodão de flores amarelas, sobre o arroz em seu campo baixo e úmido, Sobre a casa de fazenda de telhado pontiagudo, com sua escória em  med.00400.083.jpg forma de leque e brotos delgados que nascem das calhas, Sobre o caquizeiro no oeste, sobre o milho de longas folhas, sobre o delicado linho de flores azuis, Sobre o trigo-sarraceno branco e marrom, um beija-flor e uma cigarra, lá com os outros. Sobre o verde escuro do centeio que ondula e sombreia na brisa; Escalando montanhas, galgando com cuidado, firmando-me em galhos baixos e raquíticos, Caminhando pela trilha gasta na grama, aberta entre as folhas do mato, Onde a codorna está assobiando entre o bosque e o campo de trigo, Onde o morcego voa na noite de sétimo mês, onde o grande besouro dourado cai na escuridão, Onde o arroio brota das raízes da velha árvore e corre para o prado, Onde o gado está, espantando as moscas com o rápido estremecimento de seu couro, Onde os panos de curar o queijo estão pendurados na cozinha, onde os trasfogueiros cruzam a lareira, onde as teias caem como guirlandas dos caibros; Onde o bate-estaca colide, onde a máquina de impressão gira seus cilindros, Onde quer que o coração humano bata com espasmos terríveis sob as costelas, Onde o balão em forma de pêra flutua sem rumo (eu mesmo flutuo nele e olho serenamente para baixo), Onde a viatura da vida é puxada por uma corda, onde o calor incuba ovos de um verde pálido na areia serrilhada, Onde a baleia nada com seu filhote sem nunca deixá-lo só, Onde o barco a vapor arrasta atrás de si sua longa flâmula de fumaça, Onde a barbatana do tubarão corta como um floco negro a superfície da água, Onde o brigue meio queimado está navegando em correntes desconhecidas, Onde as conchas crescem em seu convés pegajoso, onde os corpos dos mortos se decompõem; Onde o pendão repleto de estrelas é carregado à frente dos regimentos, Aproximando-se de Manhattan pela ilha comprida, Sob o Niagara, a catarata caindo como um véu sobre o meu semblante, Sobre a soleira, sobre o bloco de madeira maciça para se montar nos cavalos do lado de fora,  med.00400.084.jpg Sobre a pista de corridas, ou aproveitando um piquenique, uma dança ou um bom jogo de beisebol, Em festivais masculinos, com troças sujas, licença irônica, danças de tourada, bebedeira, risos, No engenho de sidra, provando a doce mistura marrom, tomando o suco por um canudo, Na atividade de descascar maçãs, querendo um beijo para cada fruto vermelho que encontro, Em recrutamentos, festas na praia, em reuniões de vizinhos, na debulha do milho, em mutirões; Onde o tordo-dos-remédios faz soar seus deliciosos gorjeios, cacarejos, gritos, choros, Onde o monte de feno se ergue no terreiro, onde os talos secos estão espalhados, onde a vaca reprodutora espera no curral, Onde o touro avança para fazer seu trabalho masculino, onde o garanhão pára a égua, onde o galo está montando na galinha, Onde as novilhas pastam, onde os gansos mordiscam sua comida com um rápido movimento da cabeça, Onde as sombras do pôr-do-sol se estendem sobre a pradaria vasta e solitária, Onde as manadas de búfalo transformam numa chapada rastejante as milhas quadradas longe e perto, Onde vacila o beija-flor, onde o pescoço do longevo cisne está se curvando e se enroscando, Onde o martim-pescador voa perto da praia, onde ele ri seu riso quase humano, Onde as colméias estão dispostas sobre um banco cinza no jardim, semi-oculto pelas ervas altas, Onde as perdizes de pescoço listrado se empoleiram, fazendo um círculo no chão com suas cabeças para fora, Onde os carros fúnebres entram pelos arcos dos portais do cemitério, Onde os lobos do inverno latem em meio às vastidões de neve e árvores congeladas, Onde a garça de coroa amarela vem à beira do brejo à noite e se alimenta de caranguejinhos, Onde a água espirrada pelos nadadores e mergulhadores refresca a tarde quente, Onde a fêmea do grilo faz soar sua flauta de cana cromática na nogueira sobre o poço, Por fileiras de cidreiras e pepinos com folhas de fios prateados,  med.00400.085.jpg Pela salina ou pela clareira alaranjada, ou sob abetos cônicos, Pelo ginásio, pelo salão enfeitado de cortinas, pelo escritório ou sala de reunião; Satisfeito com o nativo e satisfeito com o estrangeiro, satisfeito com o novo e com o velho, Satisfeito com a mulher simples tanto quanto com a que é linda, Satisfeito com a quacre quando ela tira a touca e fala melodiosamente, Satisfeito com o tom do coral da igreja caiada, Satisfeito com as palavras fervorosas do suado pregador metodista, ditas com seriedade no culto campestre; Olhando as vitrines da Broadway a manhã inteira, apertando a carne do meu nariz contra o vidro espesso, Passeando na mesma tarde com o rosto voltado para as nuvens, ou por uma alameda, ou ao longo da praia, Meu braço esquerdo e meu braço direito em torno de dois amigos, e eu no meio; Chegando em casa com o menino cansado silencioso e de pele escura (atrás de mim, ele cavalga no final do dia), Longe dos povoados estudando pegadas de animais, ou de mocassim, Ao lado do leito de hospital, estendendo um copo de limonada para um paciente febril, Perto do corpo no caixão quando tudo está quieto, examinando com uma vela; Viajando por todos os portos em busca de permutas e aventuras, Correndo com a multidão moderna, ansioso e volúvel como qualquer um, Cheio de raiva contra alguém que odeio, pronto na minha loucura para esfaqueá-lo, Solitário à meia-noite no meu quintal, meus pensamentos longe de mim por um bom tempo, Atravessando as velhas colinas da Judéia com o Deus belo e gentil ao meu lado, Voando pelo espaço, voando pelo céu e pelas estrelas, Voando entre os sete satélites e o largo anel e o diâmetro de oitenta mil milhas, Voando com os meteoros e suas caudas, atirando bolas de fogo como o resto, Carregando a criança crescente que, por sua vez, carrega sua própria mãe cheia na barriga,  med.00400.086.jpg Esbravejando, aproveitando, planejando, amando, acautelando, Recuando e preenchendo, aparecendo e desaparecendo, Passo dia e noite por essas estradas. Visito os pomares das esferas e espio o produto, E olho para os quintilhões amadurecidos e os quintilhões verdes. Vôo aqueles vôos de uma alma fluida e esfaimada, Meu curso corre mais abaixo que os ruídos de todos os prumos. Sirvo-me daquilo que é material e imaterial, Nenhum vigia pode me barrar, nenhuma lei pode me evitar. Ancoro meu navio por um instante apenas, Meus mensageiros partem continuamente ou trazem suas conquistas para mim. Vou caçar peles polares e a foca, saltando abismos com um cajado pontiagudo, agarrando-me a cimos quebradiços e azuis. Subo à borla no mastro de proa, Ocupo meu lugar, tarde da noite, no cesto do corvo, Navegamos pelo mar ártico, abundante é a luz que nos basta, Através da clara atmosfera expando-me na beleza maravilhosa, As enormes massas de gelo passam por mim e eu passo por elas, o cenário é plano em todas as direções, As montanhas de topo branco aparecem à distância, solto minha imaginação na direção delas, Estamos nos aproximando de um grande campo de batalha, no qual logo seremos inseridos, Atravessamos os colossais postos avançados do acampamento, passamos com pés silenciosos e com cuidado, Ou estamos entrando pelos subúrbios de uma vasta cidade em ruínas, Os blocos e a arquitetura destruída, mais do que todas as cidades vivas do globo. Sou um mercenário, acampo junto às fogueiras dos invasores, Expulso o noivo da cama e fico eu mesmo com a noiva, Aperto-a a noite inteira às minhas coxas e a meus lábios. Minha voz é a voz da esposa, o guincho junto ao corrimão da escada,  med.00400.087.jpg Mandam vir o corpo do meu homem encharcado e afogado. Entendo os grandes corações dos heróis, A coragem do tempo presente e de todos os tempos, Como o capitão viu o destroço lotado e desorientado do navio a vapor, e a Morte perseguindo-o para a frente e para trás na tempestade, Como ele se submeteu com garra e não recuou um centímetro sequer, e foi fiel durante os dias e fiel durante as noites, E escreveu com grandes letras numa lousa, Não desanimeis, não vos abandonaremos; Como ele os seguiu e os acompanhou durante três dias e não desistiu, Como salvou o grupo à deriva, por fim. Como era a aparência das mulheres delgadas em suas roupas largas quando foram embarcadas, retiradas dos túmulos que já estavam preparados para elas, Como as silenciosas crianças de rosto envelhecido e os doentes levantados de suas camas, e os homens por barbear de lábios ásperos; Tudo isso engulo, tem um bom sabor, gosto muito, torna-se parte de mim, Eu sou o homem, sofri, estava lá. O desdém e a calma dos mártires, A mãe idosa, condenada como bruxa, queimada com o fogo da madeira seca, seus filhos a tudo testemunhando, O escravo perseguido que desiste na corrida, apóia-se na cerca, ofegante, coberto de suor, As fisgadas que ferem como agulhas suas pernas e seu pescoço, o tiro assassino de chumbo grosso e as balas, Tudo isso eu sinto ou sou. Sou o escravo perseguido, estremeço com a mordida dos cães, O inferno e o desespero caem sobre mim, os atiradores atiram e outra vez atiram, Aperto os paus da cerca, meu sangue goteja, diluído pela exsudação da minha pele, Tombo sobre as ervas e as pedras, Os cavaleiros esporeiam seus cavalos arredios, aproximam-se, Dirigem seu escárnio contra meus ouvidos aturdidos e me batem com violência na cabeça, usando o cabo dos chicotes.  med.00400.088.jpg As agonias estão entre as roupas que visto, Não pergunto ao ferido como se sente, eu mesmo me torno o ferido, Minhas dores se voltam lívidas para mim quando me apóio na bengala e observo. Sou o bombeiro esmagado com o esterno quebrado, Paredes desabadas me enterraram em seus escombros, O calor e a fumaça inspirei, ouvi os gritos dos meus camaradas, Ouvi os golpes distantes de suas pás e picaretas, Eles conseguiram abrir espaço entre as vigas, agora me erguem com cuidado. Estou deitado no ar noturno na minha camisa vermelha, o silêncio geral é por minha causa, Sem dor afinal, fico deitado, exausto mas não infeliz, Pálidos e belos são os rostos em torno de mim, as cabeças despiram seus capacetes, A multidão ajoelhada se apaga na luz das lanternas. Os distantes e os mortos ressuscitam, Aparecem como o mostrador ou se movem como ponteiros de mim, eu mesmo sou o relógio. Sou um velho artilheiro, narro o bombardeio contra o meu forte, Estou lá novamente. Mais uma vez o longo rufar dos tambores, Mais uma vez o ataque dos canhões, dos morteiros, Mais uma vez aos meus ouvidos atentos, a reação dos nossos canhões. Eu participo, vejo e ouço tudo, Os gritos, as maldições, os urros, os aplausos por um tiro bem dado, A ambulância passando lentamente, deixando um filete de sangue atrás de si, Trabalhadores examinando danos, fazendo reparos indispensáveis, A queda de granadas pelo teto arrombado, a explosão em forma de leque, O som de membros, cabeças, pedras, madeira, ferro, alto no ar. Mais uma vez gorgoleja a boca do meu general moribundo, ele sacode a mão com fúria,  med.00400.089.jpg Sussurra através do sangue coagulado: Não se importem comigo — dêem atenção às trincheiras.

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Agora conto o que soube no Texas no início de minha juventude, (Não conto a queda de Álamo, Ninguém escapou para contar a queda de Álamo, Os cento e cinqüenta ainda estão mudos em Álamo), Esta é a história do assassinato a sangue frio de quatrocentos e doze jovens. Ao recuar eles tinham formado um quadrado usando sua bagagem como barricada, Novecentas vidas do inimigo que os cercava, que tinha nove vezes o seu número, foi o preço que cobraram, Seu coronel estava ferido e a munição tinha acabado, Fizeram um tratado de rendição honrosa, receberam documentos e selos, entregaram as armas e marcharam de volta prisioneiros de guerra. Eram a glória da raça dos rancheiros, Incomparáveis com o cavalo, o rifle, a canção, a comida, a corte, Grandes, turbulentos, generosos, belos, orgulhosos e afetuosos, Barbados, queimados de sol, vestidos à maneira livre dos caçadores, Nenhum deles tinha mais de trinta anos de idade. Na segunda manhã de domingo foram trazidos para fora em bandos e massacrados; era um belo início de verão, O trabalho começou por volta das cinco e terminou às oito. Nenhum obedeceu à ordem de se ajoelhar, Alguns se lançaram a uma corrida louca e inútil, outros ficaram imóveis, firmes e eretos, Alguns caíram imediatamente, atingidos na têmpora ou no coração, os vivos e os mortos jaziam juntos, Os feridos e os mutilados cavavam a terra, os que chegavam os viam lá, Alguns meio mortos tentavam se arrastar para longe dali, Estes eram despachados com golpes de baioneta ou espancados com a coronha dos mosquetes,  med.00400.090.jpg Um jovem que ainda não tinha dezessete anos agarrou seu assassino até que dois outros viessem libertá-lo, Os três ficaram todos feridos e cobertos com o sangue do menino. Às onze horas começou a queima dos corpos; Esta é a história do assassinato dos quatrocentos e doze jovens.

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Ouvirias a história de uma batalha naval muito antiga? Queres saber a quem pertenceu a vitória sob a luz da lua e das estrelas? Registra o fio dessa história, tal como o pai de minha avó, o marinheiro, contou-a para mim. Nosso inimigo não estava esquivo em seu navio, eu te digo (contou ele) Ele tinha o espírito ríspido do inglês, e não há ninguém mais durão ou mais franco, e nunca houve nem nunca haverá; Junto do anoitecer ele veio horrivelmente em nosso encalço. Nós nos atracamos, as jardas se emaranharam, o canhão foi acionado, Meu capitão avançou com as próprias mãos, chicoteando. Havíamos levado alguns tiros de dezoito libras embaixo d'água. Em nosso convés baixo de artilharia, dois grandes canhões haviam explodido no primeiro tiro, matando todos os que estavam em volta e destruindo o que havia acima. Lutas ao pôr-do-sol, lutas na escuridão, Dez horas da noite, a lua cheia bem em cima, os vazamentos crescendo e a notícia de que cinco pés de água já tinham invadido a nau. O mestre da armada libertou os prisioneiros de suas celas, oferecendo-lhes uma chance de sobrevivência. O trânsito de ida e volta ao paiol está agora interrompido pelos vigias, Eles vêem tantas faces estranhas que não conhecem, pessoas nas quais não podem confiar. Nossa fragata se incendeia, O inimigo questiona se nos entregamos, Se nossa bandeira estava arriada e se a luta havia chegado ao fim.  med.00400.091.jpg Agora eu rio contente, pois escuto a voz do meu pequeno capitão, Não arriamos nossa bandeira, ele grita solenemente, aqui é que tem início nossa parte da luta. Somente três canhões ainda atiram, Um é apontado pelo próprio capitão para o mastro principal do inimigo, Dois bem abastecidos de metralha e lata silenciam os mosqueteiros e limpam os conveses do inimigo. As gáveas somente secundam o fogo dessa pequena bateria, especialmente a gávea principal, Elas se mantêm bravamente durante o desenrolar das ações. Não há momento qualquer de repouso, Os vazamentos são mais rápidos que as bombas, o fogo devora o navio em direção ao paiol de pólvora. Uma das bombas foi atingida por um disparo, há uma crença geral de que estamos naufragando. O pequeno capitão está sereno. Ele não tem pressa, sua voz não é alta nem baixa, Seus olhos nos fornecem mais luz do que nossos faróis de batalha. Perto da meia-noite, ali sob os raios da lua, eles se rendem a nós.

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Extensa e imóvel jaz a meia-noite, Dois grandes cascos inertes no seio da escuridão, Enquanto nossa nau lenta e enigmaticamente naufraga, preparamo-nos para passar à nau que conquistamos, O capitão no tombadilho está friamente dando suas ordens com aparência alva, Perto dali está o corpo da criança que servia na cabine, O rosto morto de um velho marinheiro com seu cabelo branco e cachos cuidadosamente enrolados, As chamas, apesar de tudo o que se pode fazer, bruxuleiam em cima e embaixo, A voz rouca de dois ou três oficiais que ainda estão aptos ao dever,  med.00400.092.jpg Pilhas disformes de corpos e corpos deixados sozinhos, partes de corpos sobre mastros, Cortes de cordame, cordame balançando, leves choques do impacto das ondas, Armas negras e impassíveis, sujeira das caixas de pólvora, cheiro forte, Algumas estrelas grandes sobre as cabeças, brilhando em lúgubre silêncio, Delicadas inalações de brisa marítima, cheiro de grama com juncos nos campos perto da praia, mensagens dos moribundos confiadas aos sobreviventes, O sibilo da faca do cirurgião, os dentes cortantes da sua serra, Um chiado, uma batida surda, um jorro de sangue que cai, um breve grito selvagem e o gemido longo, apático e agudo, Isso tudo dessa forma, isso tudo irreparável.

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Vós molengões que estais de guarda! Atentai para as vossas armas! As multidões estão nos portões conquistados! Estou possesso! Incorporo todas as presenças foras da lei ou sofredoras, Vejo-me na prisão na forma de um outro homem, E sinto a dor entorpecida e ininterrupta. Por mim os guardiões dos condenados carregam nos ombros as suas carabinas e ficam vigiando, Permitem que eu saia de manhã e me prendem à noite. Não há um só amotinado caminhando algemado para a cadeia sem que eu esteja algemado a ele e caminhando ao seu lado (Eu não sou o entusiasmado que vai ali, sou, sim, o silencioso com suor em meus lábios retorcidos.) Nenhum jovem é pego por furto sem que eu seja preso junto dele, e com ele sou julgado e sentenciado. Nenhum paciente com cólera dá o seu último suspiro sem que eu também dê o meu último suspiro, Meu rosto tem a cor das cinzas, meus tendões se retorcem, as pessoas se retraem à vista de mim. Pedintes se incorporam em mim e eu me incorporo neles, Estendo meu chapéu, sento-me com o rosto envergonhado e esmolo.
 med.00400.093.jpg

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Basta! Basta! Basta! Por alguma razão estou atormentado. Afastai-vos! Dai-me algum tempo além de minha cabeça esbofeteada, do sono, dos sonhos, das fissuras, Descubro que estou à beira de cometer um erro comum. Que eu pudesse esquecer os que zombam e insultam! Que eu pudesse esquecer as lágrimas que escorrem e as pancadas das clavas e martelos! Que eu pudesse olhar com um olhar isolado a minha própria crucificação e coroação sangrenta. Lembro-me agora, Retomo a fração que ficou além do tempo, O túmulo de pedra multiplica o que foi a ele confiado, ou a quaisquer túmulos, Corpos se erguem, feridas se fecham, grilhões rolam de mim. Marcho adiante restabelecido com poder supremo, sou um no meio de uma procissão normal e infindável. Pela terra e ao longo da costa prosseguimos e passamos por todas as linhas fronteiriças, Nossos batalhões ligeiros a caminho, espalhados pela terra inteira, As flores que levamos em nossos chapéus cresceram durante mil anos. Discípulos, eu vos saúdo! Avançai! Continuai vossas anotações, prossegui com vossos questionamentos.

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O selvagem amigável e fluente, quem é ele? Ele está à espera de civilização ou tendo-a ultrapassado deseja dominá-la? É ele algum nativo do sudoeste criado nas ruas? É canadense? É ele da região do Mississippi? Iowa, Oregon, Califórnia? Das montanhas? Dos prados, dos arbustos? Ou marinheiro oceânico? Onde quer que ele vá, homens e mulheres aceitam-no e o desejam,  med.00400.094.jpg Desejam que ele goste deles, que os toque, que fale com eles, que fique com eles. Comportamento sem lei, tal como são os flocos de neve, palavras simples como a relva, cabelo despenteado, risos e ingenuidade. Pés que andam devagar, feições comuns, modos comuns e emanações, Eles caem em novas formas da ponta de seus dedos, Flutuam com o perfume de seu corpo ou seu hálito, voam de um relance de seus olhos.

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Ostentação do brilho do sol, não preciso de teu calor — relaxa! Iluminas apenas a superfície, eu forço as superfícies e as profundezas igualmente. Terra! Pareces procurar por algo em minhas mãos, Dize, velho elevado, o que desejas? Homem ou mulher, eu gostaria de dizer o quanto gosto de ti, mas não posso, E talvez dizer-te o que há em mim e o que há em ti, mas não posso, E talvez dizer-te que anseios eu tenho, aquele pulso de meus dias e noites. Atenção, não dou palestras nem faço um pouco de caridade, Quando dou algo, dou-me por inteiro. Tu que estás aí, impotente, de pernas bambas, Abre o lenço que cobre a tua boca até que sopre coragem para dentro de ti, Abre as palmas de tuas mãos e ergue a aba de teus bolsos. Não posso ser rejeitado, posso compelir-te, tenho abundância de depósitos, tenho-os de sobra, E tudo o que tenho eu ofereço. Não pergunto quem és, isso não importa para mim, Nada podes fazer, nem podes ser alguma coisa diferente do que eu te moldar.  med.00400.095.jpg Ao escravo dos campos de algodão ou aos limpadores de latrina me inclino, Em sua face direita deixo o meu beijo familiar, E em minha alma juro que nunca o negarei. Em mulheres prontas para a concepção, gero bebês maiores e mais ágeis, (Hoje estou atirando a essência de repúblicas muito mais arrogantes.) A qualquer um que esteja morrendo, corro para alcançá-lo e viro a maçaneta da porta, Viro os lençóis na direção do pé da cama, Permito ao médico e ao padre que voltem para casa. Pego o homem que cai e levanto-o com vontade irresistível, Ó desesperado, aqui está o meu pescoço, Por Deus, não podes cair! Solta todo o teu peso sobre mim. Eu te dilato com um sopro tremendo,te faço boiar, Todos os quartos da casa sinto com uma força armada, Amantes de mim, estorvos dos túmulos. Dorme — eu e eles vigiaremos a noite inteira, Nem dúvida, nem doença ousarão colocar um dedo sobre ti, Eu te abracei, e daqui em diante, eu te possuo. E quando te levantares pela manhã, saberás que o que te digo é verdade.

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Sou aquele que traz ajuda para os doentes quando eles se mostram arquejantes, E para os homens fortes e aprumados, trago um auxílio ainda maior. Ouvi o que foi dito sobre o Universo. Ouvi e ouvi por muitos milhares de anos; É mediocremente bom, até onde se sabe — mas será que isso é tudo? Ampliando e aplicando venho, Cobrindo, de saída, o lance dos velhos comerciantes, Medindo, eu mesmo, as exatas dimensões de Jeová, Litografando Cronos, Zeus, seu filho, e Hércules, seu neto,  med.00400.096.jpg Comprando desenhos de Osíris, Ísis, Belus, Brahma, Buda, Em minha pasta tenho Manitu livre, Alá numa folha e o crucifixo gravado, Com Odin, Mexitli, que tem a face horrenda, e todos os outros ídolos e imagens, Levando por eles tudo aquilo que valem e nenhum centavo a mais, Admitindo que eles já estiveram vivos e que cumpriram a missão de seus dias, (Eles davam insetos para os pássaros implumes que agora têm de se erguer, voar e cantar por si mesmos.) Aceitando os esboços deíficos para que se sintam melhores em mim, ofertando-os livremente em cada homem e mulher que vejo, Descobrindo tanto quanto ou mais no construtor que edifica a casa, Valorizando mais a ele que está lá, com as mangas arregaçadas, orientando a marreta e o cinzel, Sem fazer objeções a revelações especiais, considerando uma espiral de fumaça ou os pêlos nas costas de minha mão, com a mesma curiosidade sobre qualquer revelação, Os rapazes dentro dos carros de bombeiro e nas cordas das escadas de incêndio não são menos importantes para mim que os deuses das guerras da Antiguidade, Prestando atenção às suas vozes que ressoam pelo estrondo da destruição, Seus membros musculosos passando seguros sobre as ripas carbonizadas, com suas testas brancas, saem incólumes e inteiros do calor das chamas; Junto à esposa do mecânico com o seu bebê, em seu seio intercedendo por toda pessoa que nasce, Três foices na colheita zumbindo em seqüência de três anjos vigorosos cujas camisas caem frouxas em suas cinturas, O cavalariço de dentes salientes com seu cabelo vermelho redimindo pecados passados e futuros, Vendendo todas as posses, viajando a pé para contratar advogados para seu irmão e sentando-se ao seu lado quando é julgado por fraude; O que foi esparramado mais longe, esparramando-se por metros quadrados em volta de mim, e nem assim enchendo os metros quadrados, Nem o touro nem o besouro foram alguma vez adorados o suficiente, O esterco e a sujeira são mais admiráveis do que se sonhava,  med.00400.097.jpg O sobrenatural não é valorizado, eu espero o meu momento de ser um dos seres supremos, Um dia se prepara para mim em que farei tanto bem quanto o melhor e serei igualmente prodigioso; Pelas minhas massas de vida! Tornando-me já um criador, Situando-me aqui e agora no útero emboscado das sombras.

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Uma chamada no meio da multidão, Minha própria voz, bombástica, completa e final. Vinde, crianças minhas, Vinde, meus meninos e meninas, minhas mulheres, familiares e íntimos, Agora o artista lança a sua fibra, ele já tocou o seu prelúdio nos cálamos dentro de si. Cordas fáceis e frouxas — sinto o dedilhar de seu clímax e paro. Minha cabeça gira sobre meu pescoço, A música flui, mas não vem do órgão, As pessoas estão em minha volta, mas não são meus parentes. Sempre o chão duro e inflexível, Sempre os comilões e beberrões, sempre o sol que sobe e desce, sempre o ar e as marés incessantes, Sempre eu e meus vizinhos, repousantes, cruéis, reais, Sempre a mesma velha inexplicável questão, sempre aquele dedo ferido, o sussurro de coceiras e sedes, Sempre os brados do atormentador: uuh! uuh! até que encontramos onde o astuto se esconde e o trazemos para a luz, Sempre o amor, sempre o soluçante líquido da vida, Sempre o curativo sob o queixo, sempre os cavaletes que sustentam a morte. Aqui e ali, andando com moedas nos olhos, Para alimentar a ganância da barriga, o cérebro, liberalmente, usando a colher, Comprando ingressos, tomando, vendendo, mas nunca estando na festa uma única vez,  med.00400.098.jpg Muitos suando, arando, debulhando, e então recebendo por pagamento apenas os farelos. Alguns proprietários ociosos continuamente exigindo o trigo. Esta é a cidade e eu sou um dos cidadãos, Tudo o que interessa aos demais interessa a mim: a política, as guerras, os mercados, os jornais, as escolas, O prefeito e a câmara, os bancos, as tarifas, os navios a vapor, as fábricas, as ações, as lojas, os imóveis e os bens pessoais. Os inúmeros manequins saltando de um lado para o outro em seus colarinhos e fraques, Estou ciente de quem são (positivamente não são minhocas nem moscas), Reconheço os clones de mim mesmo, o mais fraco e superficial é imortal comparado a mim, O que faço e digo, o mesmo espera por eles, Todo pensamento que se debate em mim também se debate neles. Conheço perfeitamente bem meu egotismo, Conheço minhas linhas onívoras e não devo escrever menos, E te pegaria, quem quer que sejas, para receberes comigo a coroa. Não há palavras rotineiras nesta minha canção, Mas abruptamente questiono, salto para além e ainda assim me aproximo; Há este livro impresso e encadernado — mas e o impressor e o ajudante do impressor? As fotografias bem tiradas — mas e a tua esposa ou o teu amigo, próximos e firmes em teus braços? Há o navio negro blindado com ferro, suas armas poderosas posicionadas nas torres — mas e o ânimo do capitão e dos engenheiros? Há nas casas a louça, as provisões e os móveis — mas e o anfitrião e a anfitriã e o que seus olhos exprimem? Há o céu lá em cima — contudo e aqui, ou na casa ao lado, ou do outro lado da rua? Há os santos e os sábios na história — mas e tu? Há sermões, crenças, teologia — mas e a incompreensível mente humana?  med.00400.099.jpg E o que é a razão? E o que é o amor? E o que é a vida?

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Não vos desprezo, sacerdotes, o tempo inteiro, mundo afora, Minha fé é a maior das fés e a menor delas, Ela inclui os cultos antigos e os modernos, e tudo o que há entre o antigo e o moderno, Crendo que voltarei à Terra dentro de cinco mil anos, Aguardando respostas de oráculos, honrando os deuses, saudando o sol, Criando um fetiche da primeira pedra ou do primeiro pedaço de madeira, fazendo conferências com gravetos no círculo de obis, Ajudando o lama ou o brâmane a limpar as lâmpadas dos ídolos, Dançando ainda pelas ruas na procissão fálica, enlevado e austero nas florestas, um gimnosofista, Bebendo hidromel, tendo um crânio por copo, admirando Shastas e Vedas, atento ao Alcorão, Escalando as teocalis, borrado de sangue da pedra e da faca, tocando o tambor de pele de serpente, Aceitando os evangelhos, aceitando aquele que foi crucificado, tendo a certeza de que ele é divino, Ajoelhando-me perante a multidão ou ajoelhando-me para a prece do puritano, ou sentando-me pacientemente num banco de igreja, Altercando e espumando em minha crise de insanidade, ou fingindo-me de morto até que meu espírito me erga, Olhando adiante no pavimento e na terra, ou fora do pavimento e da terra, Pertencendo àqueles que enrolam o circuito dos circuitos. Membro da quadrilha centrípeta e centrífuga, eu me volto e falo como um homem que deixa suas ordens antes de uma jornada. Desmotivados, incrédulos, melancólicos e excluídos, Frívolos, mal-humorados, apáticos, raivosos, enfermos, desencorajados, ateus, Conheço cada um de vós, conheço vosso mar de tormentas, vossas dúvidas, desespero e descrença. Como os linguados se debatem!  med.00400.100.jpg Como eles se contorcem rapidamente como raios, com espasmos e esguichos de sangue! Ficai em paz, linguados que sangram, de incrédulos e de apáticos esfregões, Tomo meu lugar entre vós, tal como o faço entre os demais, O passado é o que vos empurra para adiante, e também a mim e a todos, sempre do mesmo modo, E aquilo que ainda não foi tentado, e aquilo que já foi, é para vós, para mim e para todos, sempre do mesmo modo. Eu não sei o que não foi tentado e o que já foi, Mas sei que quando sua vez chegar ela será suficiente, e não poderá falhar. Cada um que passa é considerado, cada um que pára é considerado, e nenhum deles poderá falhar. Não falhará o jovem homem que morreu e foi enterrado, Nem a jovem mulher que morreu e foi colocada ao lado dele, Nem a pequena criança que espiou pelo vão da porta, e que recuou e jamais foi vista novamente, Nem o homem velho que viveu sem ter propósito, e sente-o com amargor pior que o do fel, Nem aquele que está no albergue de indigentes, tuberculoso, em virtude do rum e da perturbação mental. Nem os numerosos chacinados e destruídos, nem a ralé embrutecida, rotulada de excremento da humanidade, Nem os sacos que andam por aí com a boca aberta para receber comida, Nem qualquer outra coisa na terra ou dentro dos túmulos antigos da terra, Nem qualquer coisa entre as miríades de esferas ou as miríades de miríades de seres que as habitam, Nem o presente, nem o menor farrapo conhecido.

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É hora de me explicar — vamos ficar de pé. Aquilo que é conhecido, removo, Lanço todos os homens e mulheres para frente, comigo, em meio ao Desconhecido.  med.00400.101.jpg O relógio indica o instante — mas o que é indicado pela eternidade? Temos, pois, exaurido trilhões de invernos e verões, Há trilhões adiante desses que se foram e outros trilhões mais para frente. Nascimentos nos trouxeram riqueza e variedade, E outros nascimentos nos trarão riqueza e variedade. Eu não chamo um de maior e outro de menor, Aquele que realiza seu tempo e seu lugar é tal como outro qualquer. A humanidade foi assassina e invejosa para contigo, meu irmão, minha irmã? Sinto muito por ti, ela não é assassina nem invejosa para comigo, Todos têm sido gentis comigo, não tenho lamentações para exprimir. (Que tenho eu com as lamentações?) Sou um clímax das coisas que já foram conquistadas e em mim está guardado tudo aquilo que há de vir. Meus pés batem no vértice do ápice dos degraus, Em todos os degraus, bandos de eras e bandos maiores entre os meus passos, Tudo que está abaixo foi devidamente percorrido, e ainda subo e subo cada vez mais. E, a cada lance de ascensão, os fantasmas sobem atrás de mim, Ao longe, lá embaixo, vejo o primeiro Nada monumental, sei que eu também estava lá, Esperei ignoto e sempre, e dormi através das brumas letárgicas, E aguardei meu tempo, e não me feri com o carbono fétido. Por muito tempo fui abraçado fortemente, por muito e muito tempo. Imensas foram as preparações para mim, Fiéis e amigáveis os braços que me suportaram. Os ciclos transportaram meu berço, remando e remando como alegres barqueiros,  med.00400.102.jpg Para me dar espaços, as estrelas se mantiveram apartadas em suas próprias órbitas, Elas enviaram influências para cuidar daquilo que iria me sustentar. Antes que eu nascesse de minha mãe, gerações me guiaram, Meu embrião nunca foi entorpecido, nada podia oprimi-lo. Para ele, a nebulosa inteira sintetizou-se num orbe, As camadas vagarosamente se acumularam para lhe servir de alicerce, Vastos vegetais deram-lhe substância, Dinossauros transportaram-no em suas bocas e o depositaram com cuidado. Todas as forças foram empregadas consistentemente para completar-me e deleitar-me, Agora, neste exato lugar, eu me ergo com alma robusta.

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Ó envergadura da juventude! Elasticidade sempre forçada! Ó virilidade, equilibrada, florida e repleta. Meus amantes me sufocam Enchendo meus lábios, fechando os poros de minha pele, Empurrando-me pelas ruas e pelos corredores públicos, vindo a mim durante a noite, Bradando de dia: Ó de bordo! das pedras dos rios, balançando e gorjeando sobre a minha cabeça, Chamando meu nome desde os canteiros das flores, das vinhas, debaixo de arbustos intrincados, Iluminando cada instante de minha vida, Dando beijinhos em meu corpo, com beijocas balsâmicas e macias, Silenciosamente, passando punhados de seus corações e doando-os para se tornarem meus. A velhice erguendo-se soberbamente! Ó bem-vinda graça inefável dos dias moribundos! Toda condição promulga mais que ela mesma, promulga aquilo que cresce após e a partir dela, E o sombrio silêncio promulga tanto quanto o resto.  med.00400.103.jpg Abro minha escotilha à noite e vejo os sistemas borrifados, ao longe, E tudo o que vejo multiplicado, até o limite do que posso decifrar, tangencia a beira dos sistemas mais distantes. Cada vez maior o raio em que se expande, expande-se sempre mais, Para fora e para fora e para sempre para fora. Meu sol tem o seu sol e em torno dele gira obedientemente, Ele se une aos seus parceiros em um grupo de circuito superior, E grupos maiores se seguem, fazendo com que pareçam pontinhos os maiores dentre eles. Não há interrupção e nunca pode haver interrupção, Se eu, tu e os mundos, e tudo que há embaixo ou acima de suas superfícies, fôssemos neste momento reduzidos de novo a uma pálida bóia, de nada adiantaria, a longo prazo, Certamente alcançaríamos de novo o ponto evolutivo em que hoje estamos, E com certeza iríamos mais longe, e mais longe e ainda mais longe. Alguns quatrilhões de eras, alguns octilhões de léguas cúbicas, não ameaçam o instante nem o tornam impaciente, Eles são apenas partes, qualquer coisa é apenas uma parte do todo. Ainda que enxergues a distância, há espaços sem limites fora dela, Conta tanto quanto desejares, mas há tempo ilimitado em volta disso. Meu encontro está marcado, ele é certo, O Senhor estará lá e aguardará minha chegada em termos perfeitos, O grande Camarada, o verdadeiro amante por quem anseio estará lá.

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Sei que tenho o melhor do tempo e do espaço, que nunca foi e nunca será medido. Percorro uma jornada perpétua (vinde todos ouvir!) Meus sinais são um casaco à prova de chuva, bons sapatos e um cajado de madeira da floresta, Nenhum amigo meu descansa em minha cadeira,  med.00400.104.jpg Não tenho cadeira, não tenho igreja, nem filosofia, Não levo homem algum para o jantar, para a biblioteca, para a bolsa de valores, Mas cada homem e cada mulher entre vós eu conduzo ao cimo de um outeiro, Minha mão esquerda abraça-os pela cintura, Minha mão direita aponta para as paisagens de continentes e estradas públicas. Não eu, ninguém mais pode viajar aquela estrada em teu lugar, Deves viajá-la com teus próprios passos. Ela não é distante, ela está dentro do alcance, Talvez estejas nela desde o teu nascimento e não saibas, Talvez ela esteja em toda parte pela água e pela terra. Põe tua mochila em teus ombros, filho amado, e eu farei o mesmo, e vamos apressar nossa jornada, Cidades maravilhosas e nações livres tomaremos no caminho. Se te cansares, entrega-me ambos os fardos e descansa o fôlego de tua mão em meus quadris, E quando a hora chegar, tu hás de fazer o mesmo por mim, Pois quando tivermos partido não repousaremos mais. Hoje, antes do nascimento do sol, subi ao cimo de uma montanha e enxerguei o céu povoado, E disse para o meu espírito: Quando nos tornarmos os guardiões desses orbes e de todo o prazer e do conhecimento que neles há, estaremos, então, plenos e satisfeitos? E meu espírito respondeu: Não, superaremos essa etapa apenas para passar adiante e ir mais além. Estás, também, fazendo-me perguntas e eu posso ouvir-te, Respondo que não posso responder, pois é mister que encontres a resposta por ti mesmo. Senta-te por um instante, filho amado, Aqui estão alguns biscoitos para comeres e aqui algum leite para beberes,  med.00400.105.jpg Mas assim que dormires e te vestires com roupas limpas, eu te darei um beijo de despedida e abrirei o portão para que saias daqui. Por tempo suficiente tens sonhado sonhos desprezíveis, Agora, limpo a remela de teus olhos, Deves habituar-te ao fascínio da luz e de todos os momentos de tua vida. Por muito tempo, tu te agarraste timidamente a uma prancha na praia, Agora quero que sejas um nadador ousado, Para que mergulhes em alto mar, te ergas novamente, acenes para mim, grites e, sorrindo, agites teus cabelos.

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Sou o professor de atletas, Aquele que graças a mim tem seu torso avantajado, mais que o meu, prova a largura de meu torso, Aquele que mais honra meu estilo é o que aprende com ele a destruir o professor. O rapaz que amo torna-se um homem, não por algum poder emprestado, mas por mérito próprio, Antes iníquo que virtuoso por conformidade ou medo, Afetuoso por sua namorada, saboreando bem o seu bife, Amor não correspondido ou desprezo ferem-no mais que aço afiado, Primeira classe para cavalgar, lutar, bater nos olhos do búfalo, navegar um esquife, cantar uma canção ou tocar banjo, Preferindo as cicatrizes e a barba e os rostos manchados pela varíola a todas as espumas, E os bem bronzeados a aqueles que se mantêm longe do sol. Ensino que se desviem de mim, contudo quem pode se desviar de mim? Persigo-te, quem quer que sejas na presente hora, Minhas palavras fazem coçar os teus ouvidos até que sejam entendidas. Não afirmo essas coisas por um dólar ou para passar o tempo enquanto espero por um barco, (Tu falas tanto quanto eu. Ajo como se fosse a tua língua, Presa à tua boca, pois na minha ela começa a se soltar).  med.00400.106.jpg Juro que jamais mencionarei outra vez o amor ou a morte dentro de uma casa, E juro que jamais traduzirei a mim mesmo, exceto para aquele ou aquela que privar da minha intimidade ao ar livre. Se podes me compreender, sobe para o cume das montanhas ou segue para as praias, O inseto mais próximo é uma explicação, e uma gota ou o movimento das ondas é uma chave, O malho, o remo, o serrote corroboram minhas palavras. Nenhuma sala ou escola fechada pode afinar-se comigo, Mas os brutos e as criancinhas são nisso melhores do que eles. O jovem mecânico é mais próximo de mim, ele me conhece bem, O lenhador que carrega seu machado e seu cântaro carrega-me também o dia inteiro, O jovem agricultor na fazenda, arando os campos, sente-se bem ao som de minha voz, Os barcos que navegam acompanham as minhas palavras; viajo com pescadores e marinheiros e os amo. O soldado acampado ou marchando é meu, Na noite que antecede a próxima batalha muitos me procuram, e eu não os decepciono, Naquela noite solene (pode ser a sua última) aqueles que me conhecem me procuram. Meu rosto se esfrega ao rosto do caçador quando ele está deitado na solidão, embaixo do cobertor, O condutor que pensa em mim não se importa com o sacolejo de sua carroça, A jovem mãe e a velha mãe me compreendem, As moças e a esposa descansam suas agulhas por um instante e se esquecem do lugar em que se acham, Elas e todos recapitulariam o que eu lhes disse.

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Eu disse que a alma não é mais do que o corpo, E disse que o corpo não é mais do que a alma,  med.00400.107.jpg E nada, nem Deus, é maior para um ser do que esse ser para si mesmo, E quem quer que ande um estádio sem solidariedade caminha para seu próprio funeral vestindo sua mortalha, E eu ou tu sem um centavo no bolso podemos comprar a nata da terra, E vislumbrar com um olho, ou apresentar um grão na sua vagem, confundindo o conhecimento de todas as eras, E não há negócio ou emprego em que um jovem, seguindo a carreira, não se possa tornar um herói, E não há objeto que seja tão delicado que não possa funcionar como o centro em que se ligam todas as rodas que movem o Universo, E digo para qualquer homem ou mulher, Deixe que sua alma esteja tranqüila e íntegra perante um milhão de universos. E digo para a humanidade, Não tenha curiosidade sobre Deus, Pois eu que sou curioso sobre todas as coisas não tenho curiosidade alguma sobre Deus, (Não há uma gama de termos grande o suficiente com a qual eu possa dizer o quanto estou em Paz sobre Deus e sobre a morte.) Ouço e observo Deus em todos os objetos e ainda assim não compreendo Deus minimamente, Nem posso compreender quem possa haver que seja mais maravilhoso do que eu. Por que eu deveria ver Deus melhor do que este dia? Eu vejo algo de Deus a cada hora das vinte e quatro horas do dia, e a cada momento, Nos rostos de homens e mulheres eu vejo Deus, e em minha própria face no espelho, Encontro cartas de Deus espalhadas pelas ruas e todas elas estão assinadas por Ele, E deixo-as ficar onde se encontram, pois sei que onde quer que vá, Outras virão pontualmente para toda a eternidade.

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E quanto a ti, Morte, e tu, amargo abraço da mortalidade, é inútil tentar me assustar.  med.00400.108.jpg Para o seu trabalho sem vacilo vem o parteiro Vejo a mão do idoso pressionando, recebendo, auxiliando, E me reclino sobre o peitoril das portas flexíveis e requintadas, E indico a saída e indico o alívio e a fuga. E quanto a ti, Corpo frio, penso que serás um bom adubo, mas isso não me ofende, Sinto o perfume doce das rosas brancas que crescem, Alcanço os lábios folhosos, alcanço os peitos polidos de melão. E quanto a ti, Vida, reconheço-te nos restos de muitas mortes, (Sem dúvida eu mesmo já morri umas dez mil vezes antes.) Eu vos ouço assobiando aí, ó estrelas do Céu, Ó sóis — ó relva dos túmulos — ó perpétuas transferências e promoções, Se vós não dizeis nada, como eu posso dizer alguma coisa? Do lago de águas turvas que jaz no meio da floresta outonal, Da lua que desce as escarpas do crepúsculo murmurante, Arremessai-vos, centelhas do dia e do anoitecer — arremessai-vos sobre os caules negros que apodrecem no esterco. Arremessai-vos à gemebunda algaravia dos galhos secos. Subo da lua, subo da noite, Percebo que o lampejo cadavérico são os raios do sol do meio-dia refletidos, E desemboco no que é estável e central, a partir de uma descendência grande ou pequena.

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Há isso em mim — eu não sei o que isso é — mas sei que está em mim. Angustiado e suado — calmo e tranqüilo, então, meu corpo se torna, Durmo — durmo por um longo tempo. Não sei o que é — é algo que não tem nome — é uma palavra que jamais foi dita, Não está em dicionário algum, expressão vocal, símbolo.  med.00400.109.jpg Balança sobre algo maior do que a terra em que balanço, Para ele a criação é o amigo cujo abraço me desperta. Talvez eu possa dizer mais. Perfis! Imploro por meus irmãos e irmãs. Vedes, ó meus irmãos e minhas irmãs? Não é o caos ou a morte — é a forma, a união, o plano — é a vida eterna — é a Felicidade.

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O passado e o presente definham — eu os preenchi, eu os esvaziei, E procedo para completar meu próximo aprisco do futuro. Ouvinte que aí estás! Que confidências tens para me fazer? Olha nos meus olhos enquanto sorvo o andar de esguelha da noite, (Fala honestamente, ninguém mais te ouve e eu fico apenas por mais um minuto.) Eu me contradigo? Muito bem, então me contradigo, (Sou vasto, contenho multidões.) Concentro-me naqueles que estão próximos, espero na soleira da porta. Quem já cumpriu o trabalho do dia? Quem terminará o seu jantar mais cedo? Quem deseja andar comigo? Falarás antes que eu parta? Chegarás tarde demais?

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O gavião pintado mergulha e me acusa, ele reclama de minha tagarelice e de minha vadiagem. Eu também não sou muito domado, eu também sou intraduzível, Lanço no ar o meu urro bárbaro sobre os telhados do mundo. A última sombra do dia espera por mim, Ela arremessa minha imagem atrás das outras e, tão verdadeira quanto qualquer coisa no agreste sombrio,  med.00400.110.jpg Me arrasta para o vapor e para o crepúsculo. Eu parto como o ar, agito minhas mechas brancas sob o sol fugitivo, Derramo minha carne em remoinhos e deixo-a à deriva em saliências rendilhadas. Lego-me ao pó para crescer da relva que amo, Se queres me ver novamente, procura-me grudado à sola de tuas botas. Dificilmente saberás quem sou ou o que significo, Mas hei de ser para ti boa saúde assim mesmo, E filtrarei e darei fibra ao teu sangue. Se não puderes me encontrar na primeira vez, mantém a esperança, Não me achando em certo lugar, procura em outro, Fico em alguma parte à tua espera.
 med.00400.111.jpg

Filhos de Adão

Ao jardim, o mundo torna

Ao jardim, o mundo torna se elevando, Poderosos companheiros, filhas, filhos, preludiando, O amor, a vida de seus corpos, o sentido e o ser, Curiosos, vede aqui a minha ressurreição após o sono ligeiro, Os ciclos rotativos em sua ampla órbita me trazem de volta, Amoroso, maduro, tudo tão maravilhoso para mim, tudo assombroso, Meus membros e o fogo tremendo que sempre brinca através deles, por razões — quase todas assombrosas Que ao existir eu perscruto e vou além ao penetrá-las, Feliz com o presente, feliz com o passado, Ao meu lado ou atrás de mim, Eva me segue, Ou vai à minha frente, e do mesmo modo eu a sigo.

Desde os rios confinados à dor

Desde os rios confinados à dor, Sem aquilo de mim, sem o que eu não seria nada, Desde aquilo que estou determinado a tornar ilustre, mesmo que eu viva solitário entre os homens, Desde a minha própria ressonante voz, cantando o fálico, Entoando o canto da procriação, Cantando a necessidade de crianças soberbas, e a esse respeito soberbos adultos, Cantando o impulso muscular e a hemorragia, Entoando a canção do companheiro de cama (Ó ardente desejo! Ó por todos e por cada corpo que atrai o seu correspondente! Ó por ti, quem quer que sejas, o teu corpo correspondente! Ó isso, mais que coisa qualquer, tu te deliciando!)  med.00400.112.jpg Desde o roedor faminto que me devora noite e dia, Desde os momentos nativos, desde as dores acanhadas, cantando-as, Pesquisando algo que ainda não pude descobrir, embora tenha diligentemente procurado anos a fio, Cantando a canção verdadeira da alma intermitente, ao acaso, Renascido com a natureza grotesca ou entre os animais, Disso, deles e aquilo que vai a título de informação com meus poemas, Do perfume das maçãs e dos limões, da poda dos pássaros, Da umidade das florestas, da curvatura das ondas, Das loucas investidas das ondas sobre a terra, eu então cantando, Fazendo soar levemente a abertura, a tensão antecipando, A bem-vinda proximidade, a visão do corpo perfeito, O nadador nadando nu na banheira ou boiando sem movimentos em seu dorso deitado, As formas femininas se aproximando, eu pensante, amante do corpo, tremendo de dor, A lista divina sendo feita para mim, para ti ou para qualquer um, O rosto, os membros, o índice da cabeça aos pés, e aquilo que faz com que ele se levante, O delírio do místico, a loucura amorosa, o completo abandono, (Chega perto e calado escuta o que agora sussurro para ti, Eu te amo, ó tu que me tens por inteiro, Ó tu e eu fugimos do mundo e sumimos inteiramente, livres e sem lei, Dois falcões voando, dois peixes nadando no mar tão sem lei quanto nós dois.) A furiosa tempestade por mim atravessando, e eu tremendo apaixonadamente, O juramento de inseparabilidade dos dois que se unem, da mulher que me ama e a quem amo mais que a própria vida, esse juramento fazendo, (Ó eu desejando arriscar tudo por ti, Ó deixe-me estar perdido se necessário for! Ó tu e eu! O que significa para nós o que os outros fazem ou pensam? O que é tudo o mais para nós? Apenas sabemos que desfrutamos um ao outro e nos exaurimos se necessário for.) Desde o mestre, ao condutor entrego a nau, O general me comanda, comanda a todos, dele recebemos permissão, Desde o tempo, o programa apressando (tenho vadiado muito até agora)  med.00400.113.jpg Desde o sexo, desde a urdidura e desde a textura, Desde a privacidade, desde as lamentações solitárias, Desde muitas pessoas próximas e, ainda assim as pessoas certas distantes, Desde a maciez das mãos que escorregam sobre mim e a passagem dos dedos pelos meus cabelos e minha barba, Desde o longo beijo sustentado na boca ou nos seios, Desde a pressão calorosa do corpo que me embriaga e embriaga qualquer homem até desmaiá-lo pelo excesso, Desde aquilo que o marido divino conhece, desde o trabalho da paternidade, Desde a exultação, a vitória e o alívio, desde o abraço do companheiro de cama durante a noite, Desde os poemas de ação dos olhos, das mãos, dos quadris e dos seios, Desde a pegada do braço que treme, Desde a curva flexionada e o abraço, Desde o movimento de tirar a coberta flexível que nos cobre de um lado a outro, Desde aquele que não deseja me ver partindo, e eu que também não desejo partir, (Será um instante apenas, ó delicado ser que me aguarda, e eu retornarei,) Desde a hora das estrelas brilhantes e orvalhos gotejantes, Desde a noite um momento em que vou emergindo fugaz, Celebro-te, ato divino, e vós, filhos preparados, E vós, corajosos leões.

Eu canto o corpo elétrico

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Eu canto o corpo elétrico, Os exércitos daqueles que amo estão em minha volta e estou em torno deles, Eles não me deixarão partir até que eu vá com eles, até que lhes dê uma resposta, E os descarregue e os carregue a todos com a carga da alma. Foi posto em dúvida se aqueles que corrompem seus próprios corpos se disfarçam?  med.00400.114.jpg E se aqueles que desafiam os vivos são tão maus quanto os que desafiam os mortos? E se o corpo não faz o mesmo tanto quanto a alma faz? E se o corpo não for a própria alma, o que é a alma?

2

O amor do corpo masculino ou feminino é indescritível, o próprio corpo é indescritível, O do macho é perfeito, e o da fêmea é perfeito. A expressão do rosto é indescritível, Mas a expressão de um homem bem feito não aparece apenas em seu rosto, Ela está em seus membros e nas suas juntas igualmente, está curiosamente nas juntas de seus quadris e de seus punhos, Transparece em seu modo de caminhar, na força de seu pescoço, na flexão de sua cintura e de seus joelhos, e as roupas não conseguem escondê-lo, A qualidade docemente poderosa que ele tem rompe através do algodão e da lã, A visão de sua passagem nos transmite algo comparável ao melhor dos poemas, talvez ainda mais, Pára para observar suas costas, sua nuca e suas espáduas. O espreguiçar e a plenitude dos bebês, os seios e as cabeças das mulheres, as dobras de seus vestidos, seus estilos, quando as vemos nas ruas, e suas formas vistas de cima para baixo, O nadador desnudo na piscina, visto enquanto cruza as translúcidas águas verdes e brilhantes ou deitado com sua face para cima, rolando silenciosamente para lá e para cá com a ondulação da água, A inclinação dos remadores para frente e para trás em seus barcos, o cavaleiro em sua sela, Moças, mães, empregadas, em meio aos seus afazeres, Ao meio-dia o grupo de operários está sentado com suas marmitas abertas, enquanto suas esposas aguardam, A fêmea amamentando uma criança, a filha do fazendeiro no jardim ou no curral, O mocinho cultivando milho, o cocheiro dirigindo a carruagem de seis cavalos por entre a multidão,  med.00400.115.jpg A luta dos lutadores, dois garotos aprendizes, bem crescidos, sensuais, de boa natureza, nativos, saindo pelo descampado ao fim do dia de trabalho, Os casacos e os bonés jogados ao chão, o abraço de amor e a resistência, O golpe por cima e o golpe por baixo, o cabelo caindo sobre os olhos e atrapalhando a visão; A marcha dos bombeiros que vestem suas fardas, o jogo másculo de músculos por entre suas calças limpas e cinturões, O retorno tranqüilo do incêndio, a pausa quando a sirene toca, de repente, outra vez, e a escuta em estado de alerta, As atitudes naturais, perfeitas, variadas, a cabeça inclinada, o pescoço inclinado e a conta; É isso que amo — e me entrego, passando livremente, estou no seio da mãe com a criança de colo, Nado com os nadadores, luto com os lutadores, marcho alinhado com os bombeiros, e pauso, e escuto, e conto.

3

Conheci um homem, um fazendeiro comum, o pai de cinco filhos, E eles mesmos pais de outros filhos, que por sua vez eram pais de outros filhos. Esse homem tinha um vigor fabuloso, calma e uma bela personalidade, A forma de sua cabeça, a cor pálida amarela e branca de seus cabelos e de sua barba, o significado imensurável de seus olhos negros, a riqueza e a amplitude de suas maneiras, Para ver essas suas qualidades, eu costumava visitá-lo, ele era também muito sábio, Tinha cerca de um metro e oitenta de altura, tinha mais de oitenta anos de idade, seus filhos eram fortes, limpos, barbados, tinham o rosto queimado de sol, eram belos, Tanto seus filhos quanto suas filhas o amavam, todos que o conheciam o amavam, Eles não o amavam pelo dinheiro, eles tinham um verdadeiro amor pela pessoa, Bebia água, somente, seu sangue era visivelmente vermelho por trás de sua pele morena, Era um caçador e pescador assíduo, ele mesmo velejava seu barco, um barco excelente que ganhara de um barqueiro, tinha armas de caça presenteadas por homens que o amavam,  med.00400.116.jpg Ao vê-lo saindo com seus cinco filhos e muitos netos para uma caçada ou pescaria, dizíamos que ele era o mais belo e vigoroso do grupo, Desejávamos por muito tempo estar com ele, desejávamos nos sentar ao lado dele no barco, de modo que pudéssemos tocar uns aos outros.

4

Percebi que estar com os que amo é o suficiente, Descansar na companhia dos demais, à noitinha, é o suficiente, Estar cercado por pessoas lindas, curiosas, arejadas, sorridentes é o que basta, Passar por entre elas ou tocar qualquer um deles, ou descansar meu braço sempre tão leve em torno do pescoço dele ou dela, por um momento, o que é isso então? Não peço nada mais delicioso do que isso, nado nessa experiência como se fosse o oceano. Há algo especial em estar próximo de homens e mulheres, observando-os, em contato com eles e com seu perfume, e é isso que dá tanto prazer à alma, Todas as coisas dão prazer à alma, mas com esses prazeres a alma de fato se sente bem.

5

Esta é a forma da fêmea, Ela exala uma auréola divina da cabeça aos pés, Ela atrai com inegável e arrebatadora atração, Sou arrastado pelo seu hálito, como se eu não fosse mais que um vapor indefeso, tudo que há em volta se esvaece exceto ela e eu, Letras, arte, religião, as eras, a terra visível e sólida, e do que era esperado do céu e temido do inferno, agora está tudo acabado: Loucos filamentos e renovos saltam para fora dela, com uma reação também desgovernada, Cabelos, seios, quadris, pernas dobradas, negligentes mãos caídas, todas difusas, as minhas também difusas, Refluxo tocado pela correnteza e correnteza tocada pelo refluxo, carne de amor dilatando e doendo deliciosamente, Ilimitados e límpidos jatos de amor quentes e enormes, geléia trêmula de amor, explosão branca e suco delirante, Noite de amor de noivo tecendo certa e maviosamente até se prostrar no amanhecer,  med.00400.117.jpg Ondulando dentro do produtivo dia de desejos, Perdido na divisão do dia de carne doce e envolvente. Eis o núcleo — depois é a vez da criança nascer da mulher, o homem nasce da mulher, Eis o banho da origem, eis o batismo do pequeno e do grande e a saída de novo. Não vos envergonheis, mulheres, vosso é o privilégio de conter os outros e de dar a eles a saída, Vós sois os portões do corpo, e sois o portão da alma. A fêmea contém todas as qualidades e as tempera, Ela ocupa seu posto e se move com em perfeito equilíbrio, Ela é todas as coisas devidamente veladas, ela é ambos, o passivo e o ativo, Ela existe para conceber tanto filhas como filhos, e filhos como filhas. Assim como na Natureza, vejo minha alma refletida, Assim como vejo através de um nevoeiro, Uma de inexprimível plenitude, saúde e beleza, Vejo sua cabeça inclinada e seus braços cruzados sobre seus seios, a Fêmea eu vejo.

6

O macho não é menos nem mais do que a alma, ocupa também o seu posto, Ele possui as mesmas qualidades, sendo a ação e o poder, O fluxo do universo conhecido está nele, O escárnio cai-lhe bem, e o apetite e a rebeldia caem-lhe bem, As maiores paixões, as mais selvagens, a felicidade em seu limite extremo caem-lhe bem, o orgulho cai-lhe bem, O orgulho em sua máxima potência no homem é calmante e excelente para a alma, O conhecimento é próprio dele, ele sempre o aprecia, tudo ele aproxima de si para experimentar, Qualquer tipo de pesquisa, qualquer que seja o mar e o veleiro é aqui, finalmente, que ele faz as sondagens (Onde mais ele poderia fazer as sondagens além de aqui mesmo?)  med.00400.118.jpg O corpo do homem é sagrado e o corpo da mulher é sagrado, Não importa quem ele seja, é um ser sagrado — é ele o pior de um grupo de operários? É um dos imigrantes que, com expressão melancólica no rosto, acaba de desembarcar no cais? Cada um deles pertence a esta terra, ou a qualquer outra parte, tanto quanto os bem-nascidos, tanto quanto vós, Cada um tem seu lugar na procissão. (Tudo é uma procissão, O universo é uma procissão que se move em medida perfeita.) Sabeis tanto que podeis chamar o menos preparado de ignorante? Supondes que tendes direito a uma boa compreensão das coisas, e ele e ela não têm direito algum? Pensais que a matéria se fez una e coesa a partir de seu movimento difuso e que o solo está na superfície e as águas correm e a vegetação brota Apenas para vós? E não para ele ou para ela?

7

Um corpo de homem está para ser leiloado, (Pois antes da guerra vou com freqüência ao mercado de escravos e assisto ao pregão), Ajudo o leiloeiro, pois o desleixado não conhece metade de seu ofício. Senhores, contemplai esta maravilha, Por mais altos os lances dos licitantes, não serão altos o suficiente para comprá-la, Pois para formar este corpo o globo terrestre aguardou quintilhões de anos antes mesmo de haver a possibilidade de surgir um único animal ou uma planta, Para formá-lo, desdobraram-se, genuínos e consistentes, os ciclos da evolução. Nesta cabeça, o todo habilidoso cérebro, Nela e abaixo dela a substância de que são feitos os heróis! Examinai estes membros, vermelhos, negros, ou brancos, tendões e nervos graciosos, Terão eles de ser abertos para que os enxergueis?  med.00400.119.jpg Sentidos apurados, olhos iluminados para a vida, garra, vontade, Tórax musculoso, espinha e pescoço maleáveis, carne rija, braços e pernas bem proporcionados, E lá dentro muitas outras maravilhas. Lá dentro o sangue a correr, O mesmo antigo sangue! O próprio sangue em sua vermelha jornada! Aqui o coração bate, fazendo circular o sangue, aqui residem todas as paixões, desejos, conquistas, aspirações, (Pensais que tudo isso inexiste só por não ser assunto de discursos nos auditórios e salões de conferências?) Este não é apenas um homem, é aquele que será o pai daqueles que serão pais por sua vez, Nele está a gênese de estados populosos e repúblicas prósperas, A partir dele há vidas imortais e incontáveis com incontáveis encarnações e alegrias. Como sabeis quem surgirá das gerações que surgirão das gerações deste homem pelos séculos? (De quem vós mesmos descobriríeis que descendeis, se acaso pudésseis traçar uma linha retroativa pelos séculos dos séculos?)

8

O leilão de um corpo de mulher, Ela também não é apenas ela mesma, mas a fértil mãe de tantas mães, E a portadora daqueles que hão de crescer e se tornar os pares de tantas outras mães, Já amastes o corpo de uma mulher? Já amastes o corpo de um homem? Não vedes que são exatamente os mesmos para todos em todos os tempos e nações da terra inteira? Se algo há que seja sagrado, então esse algo é o corpo humano, E a glória e a doçura de um homem é o dom de sua virilidade impoluta, E no homem ou na mulher, um corpo limpo, forte e saudável é mais belo que a mais bela das faces. Já vistes o tolo que corrompeu seu próprio corpo vivo? Ou a tola que corrompeu seu próprio corpo vivo?  med.00400.120.jpg Eles não se encontram escondidos e não podem, em verdade, esconder-se.

9

Ó meu corpo! Não ouso abandonar as tuas semelhanças em outros homens e mulheres, nem as semelhanças das tuas partes, Creio que as tuas semelhanças hão de se manter ou terminar com as semelhanças da alma (e com o fato de que elas são a alma) Creio que as tuas semelhanças devem se manter ou terminar com meus poemas e com o fato de que elas são os meus poemas, Poemas de mulheres, de crianças, de jovens, de esposas, de maridos, de mães, de pais, de moços e moças, Cabeça, pescoço, cabelo, ouvidos, diafragma e tímpano dos ouvidos, Olhos, franjas dos olhos, íris dos olhos, sobrancelhas, e o abrir e fechar das pálpebras, Boca, língua, lábios, dentes, céu da boca, maxilares, e as juntas dos maxilares, Nariz, narinas, e a divisória das narinas, Bochechas, têmporas, testa, queixo, garganta, nuca, entorno do pescoço, Ombros fortes, barba masculina, omoplata, juntas dos ombros e a ampla parte lateral da caixa torácica, Antebraço, sovaco, encaixe do cotovelo, braço, nervos dos braços, ossos dos braços, Pulso, e juntas dos pulsos, mão, palma das mãos, nós dos dedos, dedão, dedos, juntas dos dedos, unhas das mãos, Ampla frente do tórax, pêlos enrolados do peito, osso do peito, parte lateral do peito, Costelas, barriga, espinha, juntas da espinha, Quadris, encaixe dos quadris, força dos quadris, movimentos rotatórios dos quadris para dentro e para fora, testículos do homem, pênis, Força dos fêmures que tão bem suporta o tronco acima, Fibras das pernas, joelhos, cavidade do joelho, perna, Tornozelos, peito do pé, bola do pé, dedões, juntas do dedão; Tudo o que pertence ao meu ou ao teu corpo, ou o corpo de qualquer pessoa, seja um corpo feminino ou masculino, Os filamentos do pulmão, o saco do estômago, os intestinos doces e limpos, As dobras cerebrais dentro dos ossos do crânio,  med.00400.121.jpg Conexões, válvulas do coração, válvulas do palato, sexualidade, maternidade, Feminilidade, e tudo o que é uma mulher, e o homem que vem da mulher, O útero, os seios, os mamilos, leite materno, lágrimas, risada,lamentos, olhares amorosos, perturbações amorosas e ereções, A voz, a articulação, a linguagem, o sussurro, o grito, Comida, bebida, pulso, digestão, suor, sono, o ato de andar, de nadar, O equilíbrio sobre os quadris, os saltos, a reclinação, o abraço, a envergadura do braço e o aperto, As alterações contínuas do molejo da boca, e em torno dos olhos, A pele, a queimadura do sol, sardas, cabelo, A curiosa sensação de quem toca a carne nua do corpo com sua mão, O ciclo da respiração, a inspiração e a expiração, A beleza da cintura, descendo aos quadris, e desse ponto descendo para os joelhos, As geléias finas e vermelhas dentro de ti ou de mim, os ossos e o tutano que há nos ossos, A estranha consciência da saúde; Ó eu digo que esse não é apenas o poema das partes do corpo, mas também o da alma, Ó eu digo que estas partes são a alma!

Uma mulher espera por mim

Uma mulher espera por mim, ela contém tudo em si, nada lhe falta, Não obstante, tudo estaria faltando se o sexo estivesse faltando ou se a umidade do homem certo estivesse faltando. O sexo contém tudo em si, os corpos e as almas, Os significados, as provas, a pureza, a delicadeza, os resultados, as promulgações, As canções, as ordens, a saúde, o orgulho, o mistério da maternidade, o leite seminal, Todas as esperanças, os benefícios, os favores, todas as paixões, os amores, as belezas, as delícias da terra, Todos os governos, os juízos, os deuses, todas as pessoas do mundo que têm seguidores,  med.00400.122.jpg Essas estão contidos no sexo como partes de si mesmas, como justificativas de si mesmas. Sem sentir-se envergonhado, o homem de quem gosto conhece e declara as delícias de seu sexo, Sem sentir-se envergonhada, a mulher de quem gosto conhece e declara as delícias do seu. Agora me despeço das mulheres impassíveis, Ficarei com aquela que me aguarda e com aquelas mulheres de sangue quente e suficientes para mim, Vejo que elas me compreendem e não me negam, Vejo que elas me merecem, serei o marido robusto daquelas mulheres. Elas não são nem um til a menos do que sou, Elas têm seus rostos queimados pelo brilho do sol e pelo sopro dos ventos, Seus corpos são dotados de divina elasticidade e potência, Elas sabem nadar, remar, andar a cavalo, lutar, atirar, correr, golpear, recuar, avançar, resistir, defender a si mesmas, Elas são definitivas em seus direitos — são calmas, claras, seguras de si mesmas. Trago-vos para junto de mim, vós, mulheres, Não posso deixar-vos ir, eu seria bom para vós, Sou por vós e sois por mim, não apenas em nosso benefício, mas em benefício de outros, Engendrados em vós dormem grandes heróis e poetas, Eles se recusam a acordar ao toque de qualquer outro homem que não seja eu. Sou eu, mulheres, faço o meu caminho, Sou severo, ríspido, grande, indissuasivo, mas vos amo, Não vos firo mais do que julgais necessário, Derramo em vós a semente para gerar os filhos e filhas bem preparados para estes Estados, aperto-vos com músculos rudes e vagarosos, Abraço com eficácia, não dou ouvidos a exigências, Não ouso parar até que deposite em vós aquilo que por tanto tempo esteve acumulado em mim.  med.00400.123.jpg Através de vós, eu dreno os rios enclausurados de mim mesmo, Em vós envolvo mil anos de porvir, Em vós enxerto o enxerto do que é mais amado por mim e pela América, As gotas que destilo sobre vós devem gerar garotas impetuosas e atléticas, novos artistas, músicos, e cantores, Os bebês que procrio convosco se tornarão bebês procriadores por sua vez, Demandarei homens e mulheres perfeitos, saídos de meus investimentos amorosos, Espero que eles interpenetrem-se com outras, como eu e vós nos interpenetramos agora, Eu hei de contar os frutos de suas chuvas efusivas, tal como eu conto os frutos da chuva efusiva que vos dou agora, Hei de esperar pelas colheitas amorosas do nascimento, da vida, da morte, da imortalidade, que planto tão amorosamente neste momento.

O Eu espontâneo

O Eu espontâneo, a Natureza, O dia amoroso, o sol engastado, o amigo com quem estou feliz, O braço de meu amigo apoiado, preguiçosamente, sobre o meu ombro, A encosta embranquecida pelas flores da sorveira brava, À mesma altura do outono, os matizes de escarlate, amarelo, castanho, púrpura e verde claro e escuro, A colcha rica da grama, os animais, os pássaros, a margem desaprumada e isolada, as maçãs selvagens, os cristais de rocha, Os belos fragmentos gotejantes, a lista negligente de um após o outro quando os chamo ou penso sobre eles, Os poemas reais (o que chamamos poemas sendo apenas imagens), Os poemas da intimidade da noite, e de homens como eu, Este poema desfalecendo, tímido e incógnito, que carrego sempre, e que todos os homens carregam, (Que tu conheças, de uma vez por todas, o propósito declarado: onde quer que haja homens como eu, estão nossos poemas masculinos, vigorosos e secretos.) Pensamentos de amor, fluidos de amor, cheiro de amor, oferta de amor, trepadeiras de amor, seiva trepadeira,  med.00400.124.jpg Braços e mãos de amor, lábios de amor, dedão fálico de amor, seios de amor, barrigas unidas e pressionadas uma na outra com amor, Terra de casto amor, vida que é apenas a vida após o amor, O corpo de meu amor, o corpo da mulher que amo, o corpo do homem, o corpo da terra, Ares macios da manhã que sopram de sudoeste, A abelha selvagem, peluda, que zune e expressa os seus anseios subindo e descendo, que aborda a moça flor plenamente desabrochada e curva-se sobre ela com pernas firmes e amorosas, toma a sua vontade de possuí-la, e se aperta trêmula e com força até estar inteiramente saciada; A floresta orvalhada através das primeiras horas do dia, Dois que dormem à noite, deitados próximos um do outro, um com o braço oblíquo atravessado em torno e abaixo da cintura do outro, O perfume das maçãs, aromas de ramonas esmagadas, menta, cascade vidoeiro, As saudades do menino, o brilho e a tensão no momento em que ele me confessa o teor de seus sonhos, A folha seca girando em seu redemoinho e caindo paralisada e satisfeita no chão, Os espinhos disformes que se avistam, as pessoas, os objetos, com os quais me aguilhoam, O espinho furador de mim mesmo, aguilhoando-me tanto quanto se pode aguilhoar alguém, Os irmãos sensíveis, esféricos, subpostos, de quem apenas os tentáculos privilegiados podem ser íntimos no lugar em que estão, O curioso vagante tem a sua mão vagando pelo corpo inteiro, a tímida retirada da carne onde os dedos verdadeiramente param e cingem a si mesmos, O líquido límpido dentro do jovem homem, A corrosão irritada, tão reflexiva e tão dolorosa, A tormenta, a maré irritável que não se acomodará, A semelhança dos mesmos eu sinto, a semelhança do mesmo nos outros, O jovem homem que se excita e se excita, a jovem mulher que se excita e se excita, O jovem homem que desperta no meio da noite, a mão quente procurando reprimir aquilo que o dominaria, A noite amorosa do místico, a estranha angústia quase bem-vinda, as visões, o suor,  med.00400.125.jpg O pulso que bate pela palma das mãos, cujos dedos tremulam envolventes, o rapaz que tem o rosto vermelho, envergonhado, nervoso; A salmoura sobre mim vem do mar, meu amante, quando me deito desnudo e ardente, A folia dos bebês gêmeos que engatinham na grama sob o sol, a mãe em momento algum desvia seu olhar vigilante sobre ambos, O tronco da nogueira, as cascas das nozes e as nozes que amadurecem ou já maduras, as nozes graúdas, A continência dos vegetais, dos pássaros, dos animais, Minha vileza conseqüente; eu deveria esquivar-me ou achar-me indecente, enquanto os pássaros e os animais nunca se esconderam nem jamais se acharam indecentes, A grande castidade da paternidade, para equiparar-se à grande castidade da maternidade, O voto da procriação eu já fiz, minhas filhas adâmicas e novas, A cobiça que me devora dia e noite com fome roedora, até que eu me enjoe daquilo com que hei de produzir meninos para me substituir quando eu passar, O alívio por inteiro, o repouso, o contentamento, E esse bando arrancado de mim ao acaso, Já cumpriu sua missão — eu o lanço sem cuidado para cair em qualquer parte.

Uma hora para a loucura e o regozijo

Uma hora para a loucura e o regozijo! Ó furioso! Eu não me contenho! (O que é isso que me liberta de tal modo em tempestades? O que são os meus gritos em meio aos relâmpagos e aos ventos furiosos?) Ó beber o delírio místico mais profundamente do que qualquer outro homem! Ó dores selvagens e frágeis! (Eu as deixo como um legado para vós, meus filhos, Para vós eu as narro, por razões que conheço, ó noivo, ó noiva.) Ó ser entregue para ti, quem quer que sejas, e tu sendo entregue para mim, como um ato de rebeldia do mundo!  med.00400.126.jpg Ó retornar ao Paraíso! Ó tímido e feminino! Ó atrair-te para mim, colocando em ti, pela primeira vez, os lábios de um homem determinado. Ó o quebra-cabeças, ó o nó sumamente atado, ó o poço fundo e obscuro, desamarrado inteiramente e iluminado! Ó a corrida onde o espaço nos basta e onde o ar é o bastante afinal! Ser libertado de convenções e compromissos prévios, eu dos meus e tu dos teus! Encontrar um novo impensado, algo que está na indiferença, com o melhor da Natureza! Tirar a mordaça da boca de alguém! Ter o sentimento de que hoje ou em qualquer dia eu me basto a mim mesmo! Ó algo não provado! Algo em êxtase! Escapar inteiramente das garras e das âncoras do outro! Avançar livremente! Amar firmemente! Arrojar-se despreocupadamente com perigo! Cortejar a destruição com insultos, com convites! Subir, saltar para os céus do amor indicado para mim! Elevar-se mais longe com a minha alma inebriada! Perder-se, se necessário for! Alimentar o que resta da vida com uma hora de plenitude e liberdade! Com uma hora breve de loucura e de alegria.

Do encapelado oceano da multidão

Do encapelado oceano da multidão Do encapelado oceano da multidão chega, gentilmente, uma gota para mim, Sussurrando Eu te amo, bem antes de eu morrer, Percorri uma longa jornada meramente para olhar-te, tocar-te, Pois não poderia morrer antes de olhar-te. Pois temia que mais tarde poderia te perder. Agora já nos encontramos, já nos vimos, estamos seguros, Volta em paz para o oceano, meu amor, Também eu sou parte desse oceano, meu amor, não estamos assim tão separados, Observa o grande orbe, a coesão de tudo: que perfeição!  med.00400.127.jpg Mas quanto a mim e quanto a ti, o mar irresistível nos separa, Se por uma hora pode nos manter dessemelhantes, por outro lado não nos pode conservar distintos para sempre; Não sejas impaciente — um interregno — sabe tu que saúdo o ar, o oceano e a terra, Todos os dias no crepúsculo, pelo amor de ti, meu amor.

Eras e eras retornando a intervalos

Eras e eras retornando a intervalos Eras e eras retornando a intervalos, Intocadas, vagando imortalmente, Vigorosas, fálicas, com as carnes originais potentes, perfeitamente doces, Eu, cantor de canções adâmicas, Através dos novos jardins do Ocidente, as grandes cidades convocando, Delirante, preludiando assim aquilo que é gerado, oferecendo-os, oferecendo a mim mesmo, Banhando-me, banhando minhas canções com o sexo, Fruto da minha carne.

Nós também, por quanto tempo fomos enganados

Nós também, por quanto tempo fomos enganados, Agora transmutados, rapidamente escapamos, tal qual a Natureza, Somos a Natureza, por muito tempo estivemos ausentes, mas agora retornamos, Tornamo-nos plantas, troncos, folhagem, raízes, cascas, Estamos enterrados no solo, somos rochas, Somos carvalhos, crescemos ao ar livre, um ao lado do outro, Pastamos, somos duas entre as ervas selvagens, tão espontâneas quanto quaisquer outras, Somos dois peixes nadando, juntos no mar, Somos o que são as flores da acácia meleira, destilamos o aroma em torno das estradas, nas manhãs e à noitinha, Somos, também, a sujeira áspera das feras, dos vegetais, dos minerais, Somos dois falcões predadores, planamos nas alturas e olhamos para baixo,  med.00400.128.jpg Somos dois sóis resplendentes, mantemos o equilíbrio planetário e estelar de nós mesmos, somos dois cometas, Andamos a esmo com nossas garras, em nossas quatro patas, nas florestas, perseguimos as presas, Somos duas nuvens de manhã e, à tarde, avançando sobre as cabeças, Somos mares que se misturam, somos duas daquelas ondas vibrantes, rolando uma sobre a outra e nos molhando mutuamente, Somos o que a atmosfera é, transparente, receptiva, antecipada, impermeável, Somos neve, chuva, frio, escuridão, somos cada produto e influência do globo, Viemos circulando e circulando até chegarmos em casa novamente, nós dois, Anulamos tudo menos a liberdade, tudo menos a nossa própria alegria.

Ó hímen! Ó himeneu!

Ó hímen! Ó himeneu! Por que me tantalizas assim? Ó por que me acicatas neste momento fugaz? Por que não podes continuar? Por que cessas agora? Será porque se continuasses além deste momento breve, certamente haverias de matar-me?

Sou aquele que sofre por amor

Sou aquele que sofre por amor; A terra gravita? Não é fato que toda a matéria, sofrendo, atrai toda a matéria? Assim se dá com o meu corpo em relação a tudo o que encontro ou conheço.

Momentos puros

Momentos puros — quando vens sobre mim — ó estás aqui agora, Dá-me agora prazeres libidinosos tão-somente, Dá-me a poção de minhas paixões, dá-me a vida áspera e viçosa, Hoje eu me consorcio aos amores da Natureza, esta noite também,  med.00400.129.jpg Estou com aqueles que acreditam em delícias licenciosas, compartilho das orgias dos jovens à meia-noite, Danço com os dançarinos e bebo com os beberrões, Os ecos fazemos soar com nossos gritos indecentes, escolho uma pessoa rasteira para ser o meu amigo mais querido, Ele há de ser sem lei, rude, analfabeto, há de ser alguém condenado pelos outros por seus feitos, Não mais estarei apartado, por que deveria eu me exilar de meus companheiros? Ó tu, que evitas as pessoas, pelo menos eu não te evito, Avanço para o centro de onde estás, serei teu poeta, Serei mais para ti do que para qualquer outro.

Certa vez passei por uma cidade populosa

Certa vez passei por uma cidade populosa e registrei em meu cérebro, para utilização futura, os seus eventos, a sua arquitetura, os seus costumes, as suas tradições, E ainda assim, agora, de tudo o que havia naquela cidade, lembro-me apenas de uma mulher, com quem casualmente me encontrei, que me deteve por me amar, Dia após dia, noite após noite estivemos juntos — tudo o mais já esqueci há muito tempo, Lembro-me, como já disse, apenas dessa mulher que se apegou a mim apaixonadamente, E novamente vagamos, nos amamos, e nos separamos novamente, Novamente ela me segura pela mão, não devo partir, Vejo-a próxima, ao meu lado, com lábios silenciosos tristes e trêmulos.

Eu vos escutei, solenes e doces tubos do órgão

Eu vos escutei, solenes e doces tubos do órgão Eu vos escutei, solenes e doces tubos do órgão, quando, na manhã de domingo passado, passei em frente à igreja, Ventos do outono, quando andava pela floresta, no crepúsculo, ouvi os vossos suspiros alongados, lá em cima, tão lúgubres, Ouvi o perfeito tenor italiano cantando na ópera, ouvi o soprano no meio do quarteto cantando;  med.00400.130.jpg Coração do meu amor! A ti também ouvi murmurando baixinho,quando um dos pulsos se achava em torno de minha cabeça, Ouvi o teu pulsar, quando eu ainda escutava, vindo de todas as coisas, o som de pequenos sinos na noite passada, embaixo de meus ouvidos.

De frente para o oeste, no litoral da Califórnia

De frente para o oeste, no litoral da Califórnia, Inquirindo, incansavelmente, procurando o que ainda não pôde ser encontrado, Eu, uma criança, muito velha, acima das ondas, caminhando na direção da casa da maternidade, a terra das migrações, com o olhar posto na distância, Olho para além do litoral de meu mar ocidental, o círculo quase se fechando; A começar na direção do oeste, desde o Industão, dos vales da Caxemira, Da Ásia, do norte, de Deus, o sábio e o herói, Do sul, das penínsulas floridas e das ilhas de especiarias, Já tendo por longo tempo vagado, já tendo vagado em torno da Terra, Agora eu vejo minha casa novamente, com muito prazer e alegria, (Mas onde está aquilo que saí a procurar há tanto tempo? E por que ainda não pôde ser encontrado?)

Como Adão ao amanhecer

Como Adão ao amanhecer, Saio a caminhar, vindo do pavilhão do jardim, renovado pelo sono. Contempla-me no lugar em que passo, ouve minha voz, aproxima-te, Toca-me, toca a palma de tuas mãos no meu corpo enquanto passo, Não tenhas medo do meu corpo.
 med.00400.131.jpg

Cálamo

Por caminhos nunca antes trilhados

Por caminhos nunca antes trilhados, Na vegetação que cresce pelas margens das lagoas, Escapando da vida que a si mesma se exibe, De todas as regras até agora promulgadas, dos prazeres, dos lucros,das conformidades Que, por muito tempo, estive ofertando à minha alma, Claros para mim agora, os padrões que ainda não foram conhecidos, clara para mim agora a minha alma, Pois para a alma do homem eu falo, para que tenha alegrias entre os camaradas, Aqui sozinho, longe do fragor do mundo, Contando e conversando até aqui por línguas aromáticas, Não mais envergonhado (pois nesse ermo lugar posso responder de um modo em que não ousaria em qualquer outro), Forte sobre mim a vida que não se abre par em par e, contudo, contém em si tudo o mais, Decido não cantar canção alguma no presente, exceto aquelas sobre os apegos humanos, Projetando-as juntamente com a vida substancial, Oferecendo, conseqüentemente, os tipos de amor atlético, Nesta tarde do nono mês tem início o meu quadragésimo primeiro ano, Apresento-me a todos aqueles que são ou já foram jovens, Para contar os segredos de minhas noites e de meus dias, Para celebrar as necessidades de meus camaradas.
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Folhagem perfumada de meu peito

Folhagem perfumada de meu peito, Folhas tuas recolho e nelas escrevo melhor para que sejam lidas mais tarde, Folhas do sepulcro, folhas corporais crescendo sobre mim, sobre a morte, Raízes eternas, folhas altas, ó o inverno não há de congelar as tuas folhas delicadas, Todos os anos hás de florir outra vez e do mesmo ponto em que te retiraste hás de emergir uma outra vez, Ó não sei se muitos de passagem te encontrarão ou inalarão o teu tímido perfume, mas creio que ao menos alguns sim; Ó folhas esbeltas! Ó botões de meu sangue! Permito-vos falar, do vosso próprio modo, sobre o coração que mora em vosso imo, Não conheço o significado do que vai nas vossas profundezas, não sois a felicidade, Sois sempre mais amargas do que posso suportar, queimando-me e acicatando-me, E ainda assim sois maravilhosas para mim, vós, raízes tingidas e abatidas, assim me fazeis pensar na morte, A morte é maravilhosa vinda de vós (o que, de fato, é inteiramente maravilhoso além da morte e do amor?) Ó penso que não é a vida que estou aqui cantando em meu canto de amantes, penso que devo estar cantando a morte, Pois quão calmas, quão solenes elas crescem, para subir até a atmosfera dos amantes, Morte ou vida, eu sou indiferente, minha alma evita preferir, (Não estou certo mas a alma elevada dos amantes acolhe a morte acima de tudo.) De fato, ó morte, penso agora que estas folhas significam precisamente o mesmo que eu significo, Crescei mais altas, doces folhas, de modo que eu vos possa contemplar! Crescei a partir de meu peito! Arremessai-vos para longe do coração que ali se esconde! Não vos guardeis assim nas vossas raízes tingidas de cor-de-rosa, folhas tímidas! Não permanecei nessas profundezas tão envergonhadas, ervas do meu peito! Vinde, estou determinado a desnudar este meu peito vasto, pois já  med.00400.133.jpg por tempo suficiente tenho sufocado e engasgado. Lâminas emblemáticas e caprichosas, eu vos abandono, pois agora para nada mais servir-me-eis, Direi o que terei de dizer por si mesmo, Auscultarei a mim mesmo e a meus camaradas somente, jamais exprimirei um brado novamente, exceto o deles, Erguerei com ele reverberações imortais através dos Estados, Darei um exemplo para os amantes que terá forma e vontade permanente, através dos Estados, Através de mim, as palavras hão de ser ditas para fazer a morte hilariante, Dá-me o teu tom, portanto, ó morte, para que a ele eu possa harmonizar-me, Dá-me o que tu és, pois vejo que agora me pertences acima de tudo, e estão dobrados, inseparavelmente juntos, vós, amor e morte, Nem mais permitirei que me estorves com aquilo que eu chamava de vida, Pois agora sou comunicado de que és a substância essencial, Que te escondes nestas formas mutáveis da vida, por boas razões, e que elas existem, mormente para ti, Que tu para além delas avanças para ficar, a real realidade, Que atrás da máscara da materialidade esperas pacientemente, não importa por quanto tempo, Que tu irás um dia, talvez, tomar o controle de tudo, Que irás, talvez, dissipar este inteiro show de aparências, Que talvez sejas a razão de ser de tudo, ainda que não dures tanto, E todavia durarás por muito tempo.

Quem quer que me estejas agora segurando nas mãos

Quem quer que me estejas agora segurando nas mãos, Sem um certo algo tudo será inútil, Dou-te um aviso justo, antes que me tentes mais, Não sou o que supões, sou muito diferente disso. Quem é aquele que se tornaria um seguidor meu? Quem se candidataria aos meus afetos?  med.00400.134.jpg O caminho é suspeito, o resultado é incerto, destrutivo talvez, Terias de desistir de tudo o mais, eu, sozinho, esperaria ser o teu único e exclusivo modelo, O teu noviciado ainda assim seria longo e exaustivo, A inteira teoria de tua vida, e todas as relações estabelecidas com a vida ao teu redor, teriam de ser abandonadas, Assim sendo, deixa-me partir agora antes que venhas a te preocupar mais, tira a tua mão de cima de meu ombro, Abandona-me e segue o teu caminho. Ou então por uma ação furtiva em algum bosque por experiência, Ou atrás de uma pedra ao ar livre, (Pois, nos cômodos cobertos de uma casa, não apareço só nem em companhia de alguém, E, nas bibliotecas, jazo mudo, um palerma, ou não nascido, ou morto), Mas possivelmente estarei contigo sobre uma alta montanha, garantindo primeiro que nenhuma pessoa em nossa volta, a milhas de distância, se aproxime sem que saibamos, Ou possivelmente contigo navegando no mar, ou nas praias do mar, ou em alguma ilha silenciosa, Aqui permito que ponhas teus lábios sobre os meus, Com o beijo do camarada de longa convivência ou o beijo do marido novo, Pois sou o novo marido e sou o camarada. Ou se preferires, pressionando-me debaixo de tuas roupas, Onde poderei sentir as palpitações de teu coração, ou descansar sobre o teu quadril, Carrega-me quando fores adiante, em terra ou no mar, Pois assim, tocando-te apenas, é o suficiente, é o melhor, E assim, tocando-te, eu dormiria em silêncio e seria levado para sempre. Mas estas folhas, iludindo-te, colocam-te em perigo, Pois não as compreenderás, nem a mim, Elas hão de iludir-te de pronto e adiante mais ainda; certamente iludir-te-ei, Mesmo quando julgares ter me apanhado, inquestionavelmente,contempla! Já podes ver que escapei de ti.  med.00400.135.jpg Pois não foi pelo seu conteúdo que escrevi este livro, Nem será pela leitura que o assimilarás, Nem me conhecem melhor aqueles que me admiram e gloriosamente me elogiam, Nem os candidatos de meu amor (com exceção de um poucos)serão vitoriosos, Nem meus poemas farão apenas o bem, pois farão igualmente o mal, ou até mais, Pois tudo é inútil sem aquilo que podes imaginar muitas vezes sem alcançar aquilo a que me referi; Assim sendo, liberta-me e segue o teu caminho.

Por ti, ó Democracia

Vem, farei o continente indissolúvel, Criarei a mais esplêndida raça sobre a qual o sol já brilhou um dia, Farei terras magnéticas e divinas, Com o amor dos camaradas, Com o amor de longa vida dos camaradas. Plantarei companheirismo espesso como árvores ao longo de todos os rios da América, e ao longo das praias dos grandes lagos, e por todas as pradarias, Farei cidades inseparáveis, com seus braços em torno do pescoço umas das outras, Pelo amor dos camaradas, Pelo amor varonil dos camaradas. Para ti, isto de mim, ó Democracia, para servir-te, ma femme! Para ti, para ti, estou vibrando estas canções.

Estes poemas canto na primavera

Estes poemas canto na primavera, colhendo para os amantes, (Pois quem, senão eu mesmo, deveria compreender os amantes e toda a sua dor e a sua alegria? E quem, senão eu, deveria ser o poeta dos camaradas?) Colhendo, atravesso o jardim do mundo, mas logo saio pelos portões,  med.00400.136.jpg Agora, ao longo das margens do lago, agora fazendo um pouco de magia, sem sentir medo da água, Agora pelas cercas da estrada de ferro do correio, onde as velhas pedras ali jogadas, colhidas nos campos, se acumularam, (Flores silvestres e vinhas e a erva daninha sobem pelas pedras e as encobrem parcialmente, para além delas eu passo) Longe, longe na floresta, ou vagueando mais tarde no verão, antes de pensar sobre onde vou, Solitário, sentindo o cheiro da terra, parando aqui e ali em silêncio, Sozinho eu ia refletindo: contudo, bem cedo uma tropa se reúne em minha volta, Alguns andam ao meu lado e alguns vêm atrás de mim, e alguns se abraçam aos meus braços e ao pescoço, Eles, os espíritos de amigos queridos, mortos ou vivos, mais espessos vêm, uma grande multidão, e eu estou no meio deles, Colhendo, doando, cantando, vagueio por ali com eles, Arrancando algumas coisas por penhor, jogando na direção de quem quer que esteja perto de mim, Aqui, lilás, com um galho de pinheiro, Aqui, tirado do meu bolso, algum musgo vivo que puxei de um carvalho na Flórida e que estava pendurado, se arrastando pelo chão, Aqui, algumas folhas de cravo e de loureiro, e uma mão cheia de salvas, E aqui o que eu agora tiro das águas, vagueando ao redor do lago, (Ó eu vi aqui pela última vez aquele que suavemente me ama e volta novamente para nunca mais se separar de mim, E esta, ó que ela seja doravante o sinal dos camaradas, esta raiz de cálamo, Permutem-na entre si, jovens! E que ninguém a devolva!) E ramos de bordo e galhos de laranja selvagem e castanha, E talos de groselha e ameixeiras, e o cedro aromático, Estes eu cerquei com uma espessa nuvem de espíritos, Andando a esmo, apontando ou tocando quando passo, ou lançando- os frouxamente, Indicando para cada um o que deve ter, dando algo a cada um; Mas o que puxei das águas ao longo das margens do lago, aquilo que guardei, Eu o distribuirei, mas apenas para aqueles que amam tal como sou capaz de amar.
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Não tendo de meu peito estriado apenas

Não tendo de meu peito estriado apenas, Não em visões noturnas com raiva, insatisfeito comigo mesmo, Não naquelas longamente puxadas, doentiamente suprimidas visões, Não nos muitos juramentos e promessas quebrados, Não em minha volição anímica selvagem e repleta de vontade, Não na súbita nutrição do ar, Não neste batimento e nesta trituração em minhas têmporas e pulsos, Não nas curiosas sístole e diástole dentro das quais o dia cessa, Não nos muitos desejos famintos contados para os céus somente, Não em choros, risos, desafios, atirados de mim quando estou sozinho, nos bosques longínquos, Não nas pinturas vigorosas, através de dentes engastados, Não em palavras que soam e ressoam, palavras de tagarelice, ecos, palavras mortas, Não nos murmúrios de meus sonhos enquanto durmo, Nem os outros murmúrios destes sonhos incríveis do cotidiano, Nem nos membros e sentidos de meu corpo que te tomam e te largam continuamente — não lá, Nem em algum ou em todos eles, ó adesividade! Ó pulso de minha vida! Preciso que existas e que te mostres mais do que nestas canções.

Da terrível dúvida das aparências

Da terrível dúvida das aparências, Das incertezas, afinal, de que possamos estar iludidos, De que talvez a segurança e a esperança sejam apenas especulações, afinal, De que talvez a identidade além do túmulo seja apenas uma fábula bonita, Talvez as coisas que percebo, os animais, as plantas, os homens, as montanhas, as águas brilhantes e fluentes, Os céus do dia e da noite, as cores, as densidades, as formas, talvez esses sejam (apesar de não levantarem suspeitas sobre isso) apenas aparências, e aquilo que é real tenha ainda de ser conhecido, (Com que freqüência eles são arremessados de si mesmos como que para confundir-me e debochar de mim!  med.00400.138.jpg Com que freqüência penso que nem eu mesmo conheço, que homem algum conhece, nada disso.) Talvez ao aparentar-me o que são (tal como de fato eles parecem ser), de meu ponto de vista atual que poderá ser provado (tal como obviamente eles seriam), nada do que parecem ser, ou nada de qualquer modo, de pontos de vista inteiramente alterados; Para mim, eles e os que se assemelham a eles são curiosamente respondidos pelos meus amantes, meus amigos queridos, Quando aquele a quem amo viaja comigo ou se senta por um longo período segurando as minhas mãos, Quando o ar súbito, o impalpável, o sentido que escapa às palavras e à razão nos cercam e nos penetram, Então sou encarregado com uma sabedoria não dita e indizível, fico silente, não preciso de mais nada, Não posso responder à pergunta da aparência ou da identidade além do túmulo, Mas ando ou sento com indiferença, estou satisfeito, Aquele que me segura as mãos me satisfaz inteiramente.

O princípio de toda a metafísica

E agora, senhores, Dou-vos uma palavra que deve permanecer em vossas memórias e em vossas consciências, A título de princípio, mas também como conclusão, a respeito de toda a metafísica. (Isso disse o maduro professor, No encerramento de seu curso apinhado de alunos.) Tendo estudado o moderno e o clássico, os sistemas grego e germânico, Tendo estudado e dissertado sobre Kant, Fichte, Schelling e Hegel, Tendo já apresentado o conhecimento de Platão — e o de Sócrates, que é ainda maior que o de Platão, E, maior que o de Sócrates, tendo pesquisado e enunciado o conhecimento do Cristo, o divino, a quem estudei longamente, Contemplo hoje as reminiscências dos sistemas grego e germânico, Contemplo as filosofias todas — as igrejas cristãs e os dogmas contemplo,  med.00400.139.jpg E ainda assim nas bases do pensamento de Sócrates vejo claramente — e nas bases dos ensinamentos do Cristo, o divino eu constato, O terno amor entre o homem e seu semelhante — a afeição do amigo pelo amigo, Dos bem casados marido e esposa — entre as crianças e seus pais, De cidade a cidade e de nação a nação.

Registradores das idades conseqüentemente

Registradores das idades conseqüentemente Vinde, eu vos conduzirei para a profundidade das coisas, abaixo dessa superfície impassível, e dir-vos-ei o que falar a meu respeito, Publicai o meu nome e pendurai minha fotografia como se fora a do mais terno amante, O amigo do retrato do amante, a quem o seu amigo e o seu amante era o mais afetuoso, Aquele que não tinha orgulho de suas próprias canções, mas, sim, do ilimitado oceano do amor que há dentro dele e livremente derramado para adiante, Aquele que freqüentemente fazia caminhadas solitárias pensando sobre seus amigos mais queridos, seus amantes, Aquele que estando distante daquele a quem ama, pensativo, freqüentemente se deita insone e insatisfeito à noite, Aquele que conhecia bem demais os doentes, doentes medonhos, a não ser que aquele a quem ama pudesse ser, em segredo, indiferente ao seu amor, Aquele cujos dias mais alegres estiveram longe; através dos campos, nas florestas, nas montanhas, ele e outro vagando de mãos dadas, ambos apartados de outros homens, Aquele que sempre errava pelas curvas das ruas com seus braços nos ombros de seus amigos, enquanto os braços de seus amigos descansavam sobre si também.

Ouvi no fim do dia

Ouvi no fim do dia sobre o modo como meu nome foi recebido no capitólio, e ainda assim não foi uma noite feliz para mim aquela que se seguiu,  med.00400.140.jpg E mais, quando eu me diverti, ou quando meus planos foram realizados, ainda assim eu não me senti feliz, Mas no dia em que me levantei da cama, na alvorada, com perfeita saúde, renovado, cantando, inalando o maduro sopro do outono, Quando vi a lua cheia no Oeste crescer pálida e desaparecer na luz da manhã, Quando vaguei sozinho pela praia e despido me banhei, rindo com as águas frescas, e avistando o nascer do sol, E quando pensei sobre o fato de que meu amigo querido, meu amante, já estava viajando para me encontrar, ó então, senti-me feliz, Ó então, cada sopro de minha respiração tinha um gosto mais doce, e durante todo aquele dia a minha comida foi mais nutritiva e o dia maravilhoso passou tão bem, E o próximo veio com a mesma alegria, e na noite do próximo veio o meu amigo, E naquela noite, quando tudo estava em silêncio, ouvi as águas rolarem vagarosamente, continuamente, sobre o litoral, Ouvi o sibilo apressado do líquido nas areias, dirigindo-se para mim, sussurrando para me congratular, Pois aquele a quem mais amo estava dormindo ao meu lado, embaixo da mesma coberta, na noite fresca, No silêncio dos raios lunares outonais, sua face estava inclinada em minha direção, E seus braços caíam levemente em torno de meu peito — e naquela noite eu estava feliz.

És tu mais uma pessoa atraída por mim?

És tu mais uma pessoa atraída por mim? Para começar, estejas alerta, sou muito diferente do que supões; Acaso supões que encontrarás em mim os teus ideais? Pensas que é tão fácil ter-me como teu amante? Pensas que a minha amizade seria pura satisfação, Pensas que sou confiável e fiel? Não vês além dessa fachada, desses modos brandos e tolerantes que demonstro? Supões acaso que estejas avançando em solo real na direção de um homem realmente heróico? Não pensaste, ó sonhador, que tudo isso seja somente maya, ilusão?
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Raízes e folhas abandonadas a si mesmas

Raízes e folhas abandonadas a si mesmas são estas, Perfumes trazidos para homens e mulheres das florestas selvagens e dos lagos, Peito cor de canela e cor de rosa de amor, dedos que envolvem com mais força do que as vinhas, Erupções das gargantas dos pássaros escondidos na folhagem das árvores, quando o sol se levanta, Brisas da terra e do amor saídas de litorais vivos para vós no oceano vivo, para vós, ó marinheiros! Frutas vermelhas geladas e doces, e ramos do terceiro mês oferecidos aos jovens que vagueiam pelos campos quando é chegado o inverno, Brotos de amor colocados diante de vós e dentro de vós, quem quer que sejais, Brotos para serem desdobrados nos termos antigos, Se trouxerdes para eles o calor do sol, eles abrir-se-ão e trarão consigo a forma, a cor, o perfume, para vós, Se vos tornardes o alimento e a umidade, eles se tornarão flores, frutos, galhos altos e árvores.

Não as chamas que aquecem e consomem

Não as chamas que aquecem e consomem, Não as ondas do mar que correm para dentro e para fora, Não o ar delicioso e seco, o ar do verão maduro que sustenta suavemente as bolinhas descendentes, redondas e brancas de miríades de sementes, Flutuando, navegando graciosamente, para cair onde quer que seja; Não esses, ó nenhum desses é mais do que as chamas para mim, consumindo, queimando pelo amor daquele que amo, Ó ninguém mais do que eu me apressando dentro e fora; Será que a maré se apressa, à procura de algo, sem jamais desistir? Ó eu faço o mesmo, Ó nem as bolinhas descendentes, nem os perfumes, nem as nuvens altas gerando a chuva, são sustentadas pela atmosfera, Tal qual a minha alma é sustentada pela atmosfera, Flutuando em todas as direções, ó amor, por amizade, por ti.
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Gotas caídas

Gotas caídas! Saindo de minhas veias azuis! Ó gotas de mim! Vagarosas gotas caídas, Cândidas, caídas de mim, pingos, gotas de sangue, De ferimentos feitos para libertar-vos, de quando estáveis aprisionadas, De minha face, de minha testa e de meus lábios, De meus peitos, de dentro de onde eu estava escondido, pressionadas para sair, gotas vermelhas, gotas de confissão, Manchai cada página, manchai cada canção que entôo, cada palavra que digo, gotas de sangue, Deixai que o vosso calor escarlate seja delas conhecido, deixai que brilhem, Saturai-as convosco até que fiquem envergonhadas e úmidas, Resplandecei sobre tudo o que já escrevi ou escreverei ainda, gotas de sangue, Deixai que tudo seja visto em sua própria luz, gotas enrubescidas.

Cidade de orgias

Cidade de orgias, passeios e alegrias, Cidade daquele que, tendo vivido e cantando em teu seio, um dia far-te-á ilustre, Não serão os teus concursos, nem os teus quadros, nem teus espetáculos que me recompensarão, Não serão as tuas filas intermináveis de casas, nem os navios nos teus embarcadouros, Nem as procissões nas ruas, nem as vitrines brilhantes com os produtos lá dentro, Nem o diálogo com pessoas cultas, nem a minha participação em um sarau ou em uma festa; Nada disso, mas quando passo, ó Manhattan, o teu freqüente e súbito brilho no olhar a me oferecer o amor, Ofertando-me uma resposta — isso sim me recompensa, Amantes, amantes permanentes, só esses me recompensam.
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Contempla esta face morena

Contempla esta face morena, estes olhos cinzentos, Esta barba, a branca lã solta sobre o meu pescoço, Minhas mãos marrons e os meus modos silenciosos que carecem de charme; E, contudo, uma mulher de Manhattan que vive em festas me beija levemente nos lábios com amor robusto, E eu, no cruzamento da rua ou no convés do navio, dou-lhe um beijo em retorno. Nós observamos aquela saudação dos camaradas americanos na Terra e no Mar, Nós somos aquelas duas pessoas naturais e desinteressadas.

Vi, em Louisiana, um carvalho vivo crescendo

Vi, em Louisiana, um carvalho vivo crescendo, Solitário se encontrava, com um musgo pendurado em seus galhos, Sem qualquer companhia ele crescia ali e dele brotavam folhas alegres verdes escuras, E sua aparência, rude, inquebrável, vigorosa, fez-me pensar em mim mesmo, Mas eu me perguntava de que modo ele poderia fazer brotar folhas alegres, estando ali de pé, solitário, sem seu amigo por perto, pois eu sabia que não poderia fazer o mesmo, E quebrei um ramo com um certo número de folhas e entrelacei em torno dele um pequeno musgo, E trouxe-o comigo, e coloquei-o em um local visível no meu quarto, Ele não é necessário para me lembrar de meus próprios amigos, (Pois creio que ultimamente penso em muito pouca coisa além deles), Mesmo assim ele permanece para mim como uma lembrança curiosa e me faz pensar sobre o amor viril; Por essa razão, e embora o carvalho vivo brilhe lá na Louisiana, solitário, em um espaço amplo e plano, Fazendo brotar folhas alegres por toda a sua vida, sem ter um amigo ou um amante por perto, Eu bem sei que não poderia fazer o mesmo.
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A um desconhecido

Desconhecido que passa! Não sabes por quanto tempo eu tenho pensado em ti, Deves ser aquele que eu andava procurando ou aquela que estava desejando encontrar, (vens para mim como num sonho), Com certeza vivi uma vida de alegria contigo, Tudo vem à tona em minha memória quando adejamos um sobre o outro, fluidos, afeiçoados, castos, maduros, Tu cresceste comigo, foste um menino ou uma menina comigo, Comi e dormi contigo, teu corpo deixou de ser somente teu e o meu também deixou de ser só meu, Deste-me o prazer dos teus olhos, tua face, tua carne e, quando passamos, tu levaste os vestígios de minha barba, de meu peito, de minhas mãos, em troca, Não quero falar-te, quero pensar em ti quando me sento sozinho ou desperto sozinho na noite, Quero esperar, não duvido que te encontrarei novamente, Farei tudo para não te perder.

Neste momento, enternecido e reflexivo

Neste momento, em que estou sentado e sozinho, enternecido e reflexivo, A mim me parece que há homens em outras terras enternecidos e reflexivos, Parece-me que posso procurá-los e contemplá-los na Alemanha, Itália, França, Espanha, Ou longe, muito longe, na China, na Rússia ou no Japão, falando em outros dialetos, E me parece que se eu pudesse conhecer esses homens eu me apegaria a eles, tal como me apego aos homens de minha própria terra, Ó eu sei que deveríamos ser irmãos e amantes, Sei que deveria ser feliz com eles.
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Ouvi dizer que as acusações foram contra mim

Ouvi dizer que as acusações foram contra mim, de que eu tentei destruir as instituições, Mas realmente não sou nem a favor nem contra as instituições, (O que, de fato, tenho em comum com elas? Ou o que tenho com a destruição delas?) Apenas me estabelecerei em Mannahatta, e em cada cidade destes Estados, no interior e no litoral, E nos campos e nas florestas, e acima de cada quilha pequena ou grande que rasga as águas, Sem edifícios ou regras ou fiadores ou qualquer discussão, A instituição do querido amor dos camaradas.

A relva dos prados marcando a divisa

A relva dos prados marcando a divisa, sentindo seu perfume especial, Convoco o seu correspondente espiritual, Convoco a companhia mais rica e próxima dos homens, Convoco as lâminas para que se ergam em palavras, atos, seres, Convoco aqueles que vivem ao ar livre, ásperos, iluminados pelo sol, frescos, nutritivos, Aqueles que caminham no seu próprio passo, eretos, pisando com liberdade e comando, liderando e não seguindo, Aqueles que têm uma audácia nunca subjugada, aqueles com a carne doce e vigorosa, livre de corrupção, Aqueles que olham sem medo no rosto de presidentes e governadores, como quem diz Quem é você? Aqueles que têm uma paixão nascida na terra, simples, nunca constrangidos, nunca obedientes, Aqueles das terras da América.

Quando examino a fama conquistada

Quando examino a fama conquistada pelos heróis e pelas vitórias dos generais poderosos, não invejo os generais, Nem o Presidente em sua Presidência, nem o rico em sua casa grande,  med.00400.146.jpg Mas quando tive notícias da união dos amantes, quando soube o que ocorre com eles, De que modo eles, pela vida, através dos perigos e do rancor, não mudaram, por longo tempo, Pela juventude, pela meia idade e pela idade avançada, quão resolutos, quão afetuosos e fiéis foram eles, Então fico pensativo — saio apressadamente, cheio da mais amarga inveja.

Nós, dois meninos, juntos e atados um ao outro

Nós, dois meninos, juntos e atados um ao outro, Um jamais deixando o outro, Indo para lá e para cá pelas estradas, para o Norte e para o Sul excursionando, Do poder desfrutando, alongando os cotovelos, apertando os dedos, Armados e sem temor, comendo, bebendo, dormindo, amando, Ninguém mais fora da lei do que nós a possuir, a navegar, a marchar, a roubar, a ameaçar, Avaros, lacaios, sacerdotes tocando o alerta, respirando o ar, bebendo a água, na relva ou dançando na praia do mar, Desarticulando cidades, desprezando tranqüilamente, zombando dos estatutos, perseguindo a debilidade, Cumprindo a nossa fuga.

Uma promessa para a Califórnia

Uma promessa para a Califórnia, Ou, no interior, para os grandes planaltos pastoris, e para adiante, para a enseada de Puget Sound e o Oregon; Hospedando-se a leste um pouco mais, cedo eu viajo na vossa direção, para ficar, para ensinar o robusto amor americano. Pois sei muito bem que eu e o amor robusto pertencemos a vós, no interior, e ao longo do mar do Oeste; Pois estes Estados dirigem-se para o interior, na direção do mar ocidental, e eu também.
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Aqui as folhas mais delicadas de mim

Aqui as folhas mais delicadas de mim e, contudo, as que mais duram com viço, Aqui eu lanço sombras sobre meus pensamentos, e os escondo, eu mesmo não os exponho, E, todavia, eles me expõem mais do que todos os meus outros poemas.

Nenhuma máquina para economizar mão-de-obra

Nenhuma máquina para economizar mão-de-obra, Nenhuma descoberta fiz, Nem serei capaz de deixar, como legado, alguma herança milionária para fundar um hospital ou biblioteca, Nem qualquer recordação de algum feito corajoso pela América, Nem um sucesso literário ou intelectual, nenhum livro para as prateleiras, Mas uns poucos cantos alegres, vibrando ao ar livre, Pelos camaradas e amantes.

Uma visão de relance

Uma visão de relance, através de um interstício eu tive, De uma multidão de operários e condutores reunidos em um bar, em torno de um fogão, em alta noite de inverno, enquanto, sem ser percebido, eu me sentava a um canto, E um jovem que me ama e a quem amo, se aproximando em silêncio e sentando-se ao meu lado, poderia segurar-me pelas mãos, Por um longo tempo, em meio aos burburinhos dos que vinham e voltavam, dos que bebiam e blasfemavam e faziam gestos obscenos, Ali nós dois, satisfeitos, felizes por estarmos juntos, falando pouco, talvez nem mesmo uma palavra.
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Uma folha de mão em mão

Um folha de mão em mão; Vós, pessoas naturais idosas e jovens! Vós, no Mississippi e em todos os afluentes e baías do Mississippi! Vós, barqueiros amistosos e mecânicos! Vós, trabalhadores braçais! Vós, pares! E toda a procissão se movendo ao longo das ruas! Gostaria de me impregnar no meio de vós, até que andar de mãos dadas se torne comum em vosso meio.

Terra, minha imagem

Terra, minha imagem, Embora pareças tão impassível, ampla e esférica ali, Agora suspeito que isso não é tudo; Agora suspeito que há algo arrebatador em ti, algo que poderá explodir, Pois um atleta está apaixonado por mim e eu estou apaixonado por ele, Mas por ele há algo em mim arrebatador e terrível, algo que poderá explodir, Não ouso contar isso em palavras, nem mesmo nestas canções.

Sonhei em um sonho

Sonhei em um sonho que avistava uma cidade invencível aos ataques da terra inteira, Sonhei que aquela era a nova cidade de Amigos, Nada ali era maior do que a qualidade do robusto amor, tudo o mais era uma conseqüência, Podia-se notar essa qualidade, em cada hora de ação dos homens daquela cidade, E em todos os seus olhares e palavras.
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Para que achas que tenho esta pena nas mãos?

Para que achas que tenho esta pena nas mãos, o que tenho a intenção de registrar? O navio de batalha, modelo perfeito, majestoso, que vi hoje passar ao largo, a toda vela? Os esplendores do dia que se foi? Ou o esplendor da noite que me envolve? As glórias alegadas e o crescimento da grande cidade esparramada em minha volta? — não; Mas apenas os dois homens simples que vi hoje no cais, no meio da multidão, despedindo-se com a despedida dos amigos que são queridos, Um que se mantinha abraçado ao pescoço do outro, beijando-o com paixão, Enquanto aquele que partia apertava aquele que ficava em seus braços.

Para o leste e para o oeste

Para o leste e para o oeste, Para o homem do Estado litorâneo e da Pensilvânia, Para o canadense do norte, para o sulista que amo, Esses a quem dedico perfeita confiança para retratar-te como a mim mesmo, as sementes estão em todos os homens, Acredito que o mais importante sentido destes Estados é o de ter encontrado uma amizade soberba, elevada, nunca antes conhecida, Pois eu percebo que ela espera, e tem estado a esperar, latente, em todos os homens.

Algumas vez, estando com aquele a quem amo

Algumas vez, estando com aquele a quem amo, sinto-me furioso pelo medo de exalar um amor não recompensado, Mas agora penso que não existe amor sem recompensa, o pagamento é garantido de um jeito ou de outro,  med.00400.150.jpg (Eu amava uma pessoa ardentemente e meu amor não era recompensado, Contudo, foi com base nessa circunstância que escrevi estas canções.)

Para um jovem do oeste

Muitas lições ensino-te para que te tornes o meu escolhido; Contudo, sangue igual ao meu não corre em tuas veias, Se não fores silenciosamente selecionado por amantes e não selecionar amantes silenciosamente, De que servirá o fato de quereres tornar-te o meu eleito?

Âncora encalhada para sempre, ó amor!

Âncora encalhada para sempre, ó amor! Ó mulher que amo! Ó noiva! Ó esposa! Mais indefesa do que posso assegurar, a imagem que tenho de ti! Então, separa-te, tal como uma desencarnada ou como outra que nascesse, Etérea, a última realidade atlética, minha consolação, Subo, flutuo nas regiões de teu amor, ó homem, Ó aquele que compartilha de minha vida ambulante.

Em meio à multidão

Entre homens e mulheres na multidão, Percebo alguém que me escolhe por sinais secretos e divinos, Sem tomar conhecimento de qualquer outra pessoa, nem parente, nem esposa, nem marido, nem irmão, nem criança, ninguém mais próximo do que eu mesmo, Alguns se confundem, mas não aquele — aquele de fato me conhece. Ah! de igual modo amante e perfeito, Eu quis dizer que deverias me encontrar assim, por débeis despistes, E eu, quando te encontrar, pretendo descobrir-te pelo que há de semelhante em ti.
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Ó tu, para quem com freqüência e em silêncio eu acorro

Ó tu, para quem com freqüência e em silêncio eu acorro no lugar em que estás para que eu possa estar contigo, Quando ando ao teu lado, ou me sento próximo de ti, ou permaneço no mesmo quarto contigo, Pouco sabes sobre o sutil fogo elétrico que, em teu nome, está queimando dentro de mim.

Aquela sombra minha imagem

Aquela sombra minha imagem que vai para frente e para trás, procurando um meio de vida, tagarelando, gracejando, Com que freqüência me encontro de pé, observando-a no lugar em que ela adeja, Com que freqüência questiono e duvido se ela é realmente a minha imagem; Mas quando estou entre os meus amantes, cantando alegremente estas canções, Ó nunca duvido que ela seja realmente aquilo que sou.

Pleno de vida agora

Pleno de vida agora, sólido, visível, Eu, aos quarenta anos de idade e aos oitenta e três anos de Estados Unidos, A alguém, um século adiante ou muitos séculos adiante, A ti, que ainda não nasceste, me dirijo, procurando-te. Quando leres estes versos, eu, que era visível, invisível me terei tornado, Agora és tu, sólido, visível, lendo meus poemas, procurando-me, Imagino a tua felicidade se eu pudesse estar contigo e fosse teu camarada, Sê feliz como se eu estivesse contigo. (Não estejas tão certo de que não estou neste momento junto a ti.)
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Salut au monde!

1

Ó pegue minhas mãos, Walt Whitman! Que maravilhas neste vôo livre! Tais visões e sons! Tais ligações infinitas e unidas, cada qual ligado ao próximo, Cada um respondendo a tudo, cada um compartilhando a Terra com todos os demais. O que se amplia dentro de ti, Walt Whitman? Que ondas e solos gotejando? Que plagas? Que pessoas e cidades estão aqui? Quem são as crianças, algumas brincando, algumas dormindo? Quem são as meninas? Quem são as mulheres casadas? Quem são os grupos de homens andando vagarosamente com seus braços em torno dos pescoços uns dos outros? Que rios são esses? Que florestas e frutos são esses? Que nomes têm essas montanhas que se erguem tão altas em meio às brumas? Que miríades de habitações há nelas, repletas com seus moradores?

2

Dentro de mim a latitude se alarga, a longitude se alonga, Ásia, África, Europa, estão para leste — América está provida no oeste, E atando a saliência dos ventos da terra, o quente equador, Curiosamente para o norte e para o sul viram-se as pontas dos eixos, Dentro de mim está o dia mais longo, o sol gira em anéis oblíquos, e não se põe durante meses a fio, Esticado na hora certa dentro de mim, o sol da meia-noite se ergue bem acima da linha do horizonte e aparece novamente, Dentro de mim zonas, mares, cataratas, florestas, vulcões, grupos, Malásia, Polinésia e as grandes ilhas das Índias Ocidentais.

3

O que ouves, Walt Whitman? Ouço o trabalhador cantando e a esposa do fazendeiro cantando, Ouço na distância os sons das crianças e dos animais, de manhã cedo, Ouço gritos rivais dos australianos perseguindo o cavalo selvagem,  med.00400.153.jpg Ouço a dança espanhola com as castanholas na sombra da castanheira, no ritmo da rabeca e do violão, Ouço os ecos incessantes do Tâmisa, Ouço ardentes canções francesas pela liberdade, Ouço do remador italiano a recitação musical de antigos poemas, Ouço os gafanhotos na Síria quando atacam os grãos e as folhas no avanço de suas nuvens terríveis, Ouço o copta jejuar até o crepúsculo, meditativo, caindo no seio de negra, venerável e vasta mãe que é o Nilo, Ouço a voz alegre da condutora de mulas mexicana e o som dos sinos da mula, Ouço o almuadem árabe chamando do telhado da mesquita, Ouço os padres cristãos nos altares de suas igrejas e, em resposta, ouço a voz do baixo e do soprano, Ouço o grito do cossaco e a voz dos marinheiros indo para o mar em Okotsk, Ouço a respiração ofegante que vem do comboio de escravos, quando os escravos marcham em frente, quando os grupos de robustos bandidos passam em grupos de dois e três, atados uns aos outros, com correntes nos pulsos e correntes nos tornozelos, Ouço os judeus fazendo a leitura de seus relatos e salmos, Ouço os mitos rítmicos dos gregos e as poderosas lendas dos romanos, Ouço a história da vida divina e da morte sangrenta do Cristo, Deus maravilhoso, Ouço os ensinamentos do hindu ao seu discípulo dileto, os amores, as guerras, os adágios, transmitindo com segurança, nos seus dias, tudo aquilo que poetas escreveram há três milênios.

4

O que vês, Walt Whitman? Quem são esses a quem saúdas, quem são eles que — um após o outro — te saúdam também? Eu vejo um grande e circular espanto rolando pelo espaço, Vejo pequenas fazendas, fronteiras, ruínas, cemitérios, prisões, fábricas, palácios, choupanas, ocas de bárbaros, tendas de nômades, sobre a superfície, Vejo a parte sombria no lado em que os adormecidos dormem e a parte ensolarada do outro lado,  med.00400.154.jpg Vejo a curiosa e rápida mudança entre luz e sombra, Vejo terras distantes, tão reais e próximas de seus habitantes quanto as minhas terras são para mim. Vejo águas em abundância, Vejo picos de montanhas, vejo as serras dos Andes onde elas se enfileiram, Vejo claramente o Himalaia, Chian Shahs, Altays, Ghauts, Vejo os pináculos gigantes do Elbruz, Kazbek, Bazardjusi, Vejo os Alpes Estirenos e os Alpes de Karnac, Vejo os Pireneus, os Bálcãs, os Cárpatos e para o norte os Dofrafields, e em pleno mar o monte Hecla, Vejo o Vesúvio e o Etna, as montanhas da Lua e as Montanhas Vermelhas de Madagascar, Vejo os desertos da Líbia, da Arábia e o Asiático, Vejo imensos e terríveis icebergs árticos e antárticos, Vejo os oceanos superiores e os inferiores, o Atlântico e o Pacífico, o mar do México, o mar brasileiro e o mar do Peru, As águas do Industão, o mar da China e o golfo da Guiné, As águas do Japão, a bela baía de Nagasaki, de terras presas entre as montanhas, A extensão do litoral Báltico, do Cáspio, da Bothnia, da Bretanha e a baía de Biscay, O Mediterrâneo banhado pela claridade do sol, de ilha em ilha, O mar branco e o mar em torno da Groenlândia. Contemplo os marinheiros do mundo, Alguns estão em meio a tempestades, alguns estão em meio à noite fazendo a ronda, vigilantes, Alguns naufragando indefesos, alguns com doenças contagiosas. Contemplo os veleiros e os navios a vapor do mundo, alguns agrupados nos portos, alguns fazendo suas viagens, Alguns contornam o Cabo das Tormentas, alguns o Cabo Verde, outros os cabos Guardafui, Bon ou Bojador, Outras a cabeceira Dondra, outros passam pelo estreito de Sunda, outros pelo Cabo Lopatka, outros o estreito de Behring, Outros o Cabo Horn, outros navegam pelo Golfo do México, ou ao longo de Cuba ou do Haiti, outros a baía do Hudson ou a baía do Baffin,  med.00400.155.jpg Outros passam pelo estreito de Dover, outros entram pelo Wash, outros no estuário de Solway, outros circundam o Cabo Clear, outros o Land's End, Outros atravessam o Zuyder Zee ou o Scheld, Outros vêm e vão pelo Gibraltar ou pelo Dardanelo, Outros avançam asperamente através das trilhas do inverno nórdico, Outros descem ou sobem o Obi ou o Lena, Outros o Níger ou o Congo, outros o Indo, o Burampooter e Camboja, Outros aguardam, com seus barcos a vapor, prontos para zarpar dos portos da Austrália, Aguardam em Liverpool, Glasglow, Dublin, Marselha, Lisboa, Nápoles, Hamburgo, Bremen, Bordeaux, Haia, Copenhague, Aguardam em Valparaíso, Rio de Janeiro, Panamá.

5

Vejo as trilhas das estradas de ferro da Terra, Vejo-as na Grã-Bretanha, vejo-as na Europa, Vejo-as na Ásia e na África. Vejo os telégrafos elétricos da Terra, Vejo os fios que trazem as notícias de guerra, as mortes, as perdas, os ganhos, as paixões, de minha raça. Vejo as faixas longas dos rios da Terra, Vejo o Amazonas e o Paraguai, Vejo os quatro grandes rios da China, o Amour, o Rio Amarelo, o Yiang-Tse e o Pérola, Vejo por onde o Sena flui, e por onde o Danúbio, o Loire, o Ródano e o Guadalquiver fluem, Vejo as dobras do Volga, o Dnieper, o Oder, Vejo o Toscano descendo pelo Arno, e o Veneziano ao longo do Pó, Vejo o marinheiro grego descendo a baía de Egina.

6

Vejo o local em que se erguia o antigo Império Assírio, e o Persa, e o da Índia, Vejo a queda do ganges sobre a borda alta do Saukara. Vejo o lugar em que floresceu a idéia da Divindade encarnada por avatares em forma humana,  med.00400.156.jpg Vejo os lugares em que se sucederam os sacerdotes da Terra, oráculos, sacrifícios, brâmanes, sábios, lamas, monges, muftis, exortadores, Vejo por onde os druidas caminhavam nos bosques de Mona, vejo o visco e a verbena, Vejo os templos das mortes dos corpos dos deuses, vejo os antigos signatários. Vejo o Cristo comendo o pão em sua última ceia, entre os jovens e os idosos, Vejo onde o moço forte e divino, o Hércules, labuta fiel e longamente antes de morrer, Vejo o lugar da vida inocente e rica e o destino desafortunado do maravilhoso filho noturno, o Baco repleto de membros, Vejo Kneph, florescendo, vestido de azul, com a coroa de plumas em sua cabeça, Vejo Hermes, insuspeito, morrendo, bem amado, dizendo ao povo Não chorem por mim, Esta não é a minha verdadeira pátria, vivi exilado de minha pátria verdadeira, agora retorno para lá, Retorno para a esfera celestial para onde todos irão quando chegar a sua vez.

7

Vejo os campos de batalha da Terra, a relva cresce sobre eles, abrem-se botões, crescem os cereais, Vejo os rastros das expedições modernas e antigas. Vejo construções inomináveis, mensagens veneráveis de eventos desconhecidos, heróis, registros da Terra. Vejo o lugar das sagas, Vejo pinheiros e abetos destruídos por tempestades do norte, Vejo graníticos penedos e precipícios, vejo prados verdes e lagos, Vejo memoriais erigidos para guerreiros escandinavos, Vejo-os erguidos na altura, com pedras trazidas das margens de oceanos incansáveis, para que os espíritos dos mortos, quando se sentirem cansados do silêncio de seus túmulos, possam se levantar e atravessar os mundos, observando com atenção através da vagas lançadas, sentindo-se renovados pelas tempestades, imensidões, liberdade, ação.  med.00400.157.jpg Vejo as estepes da Ásia, Vejo os túmulos da Mongólia, vejo as tendas de kalmucks e baskirs, Vejo as tribos nômades com manadas de bois e vacas, Vejo os planaltos entalhados por ravinas, vejo as florestas e os desertos, Vejo o camelo, o corcel selvagem, a betarda, a ovelha de rabo gordo, o antílope e a raposa cavando sua toca. Vejo as terras altas de Abissínia, Vejo os rebanhos de cabras se alimentando e vejo as figueiras, os tamarindos, as tâmaras, E vejo os campos de trigo e os espaços de verdura e de ouro. Vejo o vaqueiro brasileiro, Vejo o boliviano subindo o monte Sorata, Vejo o wacho cruzando as planícies, vejo o seu galope incomparável sobre o cavalo levando o laço nos braços, Vejo por sobre os pampas a perseguição ao gado selvagem em seus esconderijos.

8

Vejo pequenas e grandes manchas no mar, algumas habitadas, outras desabitadas; Vejo dois navios com suas redes, flutuando no mar, à beira do litoral de Paumanok, imóveis; Vejo dez pescadores esperando — eles descobrem agora um denso cardume de savelhas — eles atiram as pontas da rede de arrastão dentro da água, Os barcos se separam — cada qual rema para uma direção distinta, cada um fazendo um círculo no sentido da praia, cercando as savelhas; A rede é conduzida para a praia por um guindaste por aqueles que ficam em terra, Alguns dos pescadores descansam nos seus barcos — outros estão com os seus pés negligentemente imersos na água, na altura dos tornozelos, equilibrados sobre pernas fortes; Os barcos estão parcialmente acima da água — a água bate contra eles; Sobre a areia, em pilhas enfileiradas, retiradas da água, jazem as savelhas com manchas verdes no dorso.
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9

Vejo o desesperançado homem de pele vermelha no Oeste, remanescente nas margens de Moingo, próximos do Lago Pepin; Ele ouviu a codorniz e contemplou a abelha fazedora de mel, e com tristeza prepara-se para partir. Vejo as regiões de neve e gelo, Vejo o homem de olhos puxados de Samoa e o Finlandês, Vejo o caçador de focas em seu barco equilibrando a sua lança, Vejo o siberiano no seu leve trenó puxado por cachorros, Vejo os caçadores de toninha, vejo as tripulações baleeiras do Pacífico Sul e do Atlântico Norte, Vejo os penhascos, as geleiras, as corredeiras, os vales da Suíça — reparo nos invernos longos e no isolamento. Vejo as cidades da terra e me lanço ao acaso para me tornar parte delas, Sou um verdadeiro parisiense, Sou um habitante de Viena, São Petersburgo, Berlim, Constantinopla, Sou de Adelaide, Sidney, Melbourne, Sou de Londres, Manchester, Bristol, Edinburgh, Lemerick, Sou de Madri, Cadiz, Barcelona, Porto, Lyon, Bruxelas, Berna, Frankfurt, Stuttgart, Turim, Florença, Pertenço a Moscou, Cracóvia, Varsóvia, e para o norte em Christiana ou Estocolmo ou na siberiana Irkutsk ou em alguma rua da Islândia, Desço sobre todas essas cidades e, a partir delas, ergo-me novamente.

10

Vejo vapores exalando de países inexplorados, Vejo tipos selvagens, o arco e flecha, a seta venenosa, o amuleto e o cinturão. Vejo as vilas africanas e asiáticas, Vejo Algel, Trípoli, Derne, Mogadore, Timbuctoo, Monróvia, Vejo os enxames de Pequim, Cantão, Benares, Delhi, Calcutá, Tóquio, Vejo o kruman em sua cabana, e o daomeano e o achanti em suas cabanas, Vejo o turco fumando ópio em Aleppo, Vejo as multidões pitorescas nas feiras de Khiva e aquelas no Herat,  med.00400.159.jpg Vejo Teerã, vejo Muscat e Medina e o deserto que as separa, vejo as caravanas sofrendo para ir em frente, Vejo o Egito e os egípcios, vejo as pirâmides e os obeliscos, Vejo as histórias entalhadas, registradas pelos reis conquistadores, pelas dinastias, cortadas em lajes de pedra de moer ou em blocos de granito, Vejo em Memphis as tumbas de múmias contendo múmias embalsamadas, embrulhadas em linho, deitadas ali por muitos séculos, Vejo o tebano caído, os olhos grandes e redondos, o pescoço pendendo para o lado, as mãos cruzadas sobre o peito. Vejo todos os lacaios da Terra, trabalhando, Vejo todos os prisioneiros nas prisões, Vejo todos os corpos humanos defeituosos, Os cegos, os surdos, os mudos, os idiotas, os corcundas, os lunáticos, Os piratas, os ladrões, os traidores, os assassinos, os escravocratas da Terra, As crianças indefesas, os homens e mulheres indefesos. Vejo os homens e as mulheres por toda a parte, Vejo as serenas fraternidades de filósofos, Vejo a engenhosidade de minha raça, Vejo os resultados da perseverança e da indústria de minha raça, Vejo classes sociais, cores, barbáries, civilizações, caminho entre elas, misturo-me a elas, indiscriminadamente, E saúdo todos os habitantes da Terra.

11

Tu, sejas quem for! Tu, filha ou filho da Inglaterra! Tu, da poderosa tribo eslava e do Império eslavo! Tu, russo na Rússia! Tu, descendente opaco, negro, alma divina africana, de cabeça bela e grande, formada nobremente, com destino soberbo, nos mesmos termos que eu! Tu, norueguês, sueco, dinamarquês, islandês! Tu, prussiano! Tu, espanhol da Espanha! Tu, português! Vós, franceses da França! Tu, belga! Tu, amante da liberdade da Holanda! (tu, reserva de onde eu mesmo descendo.)  med.00400.160.jpg Tu, resoluto austríaco! Tu, lombardo! Huno! Boêmio! Fazendeiro da Síria! Tu, vizinho do Danúbio! Tu, operário do Reno, do Elba ou do Weser! Tu, operária também! Tu, da Sardenha! Tu, da Bavária! Suábio! Saxão! Romeno! Búlgaro! Tu, romano! Napolitano! Tu, grego! Tu, pequeno matador na arena de Sevilha! Tu, montanhês residindo sem lei no Taurus ou no Cáucaso! Tu, bokh de rebanhos eqüinos assistindo a tuas éguas e teus garanhões pastando! Tu, persa de corpo modelar cavalgando em velocidade máxima em tua sela, acertando flechas no alvo! Tu, chinês, e tu, chinesa da China! Tu, tártaro da Tartária! Tu, mulher da terra, subordinada aos teus trabalhos! Tu, judeu peregrinando em tua idade avançada em meio a tantos riscos para erguer-se uma vez em solo Sírio! Tu, outro judeu, esperando em todas as terras por teu Messias! Tu, amável armênio, meditando nas margens de algum riacho do Eufrates! Tu, perscrutando em meio às ruínas de Nínive! Tu, subindo no monte Ararat! Tu, peregrino de pés feridos bendizendo o brilho longínquo dos minaretes de Meca! Vós, xeques caminhando pelo trecho que vai de Suez a Bab-el-mandeb soberanos sobre vossas famílias e tribos! Tu, cultivador de oliveiras guardando teus frutos nos campos de Nazaré, Damasco ou Lago Tiberíade! Tu, comerciante tibetano na vastidão do interior ou pechinchando nas lojas de Lassa! Tu, homem japonês, ou tu, mulher japonesa! Tu, que vives em Madagascar, Ceilão, Sumatra, Bornéu! Todos vós, dos continentes da Ásia, África, Europa, Austrália, indiferentemente de lugar! Todos vós, nas incontáveis ilhas dos arquipélagos que há no mar! E vós, dos séculos vindouros quando me ouvirdes! E vós, de cada um dos locais que não especifiquei, mas a quem incluo igualmente! Saúde para vós! Boa vontade para vós todos, enviados por mim e pela América! Cada um de nós inevitável,  med.00400.161.jpg Cada um de nós sem limites — cada um com o seu direito sobre a Terra, Cada um de nós recebendo os conteúdos eternos da Terra, Cada um de nós aqui tão divino quanto qualquer um.

12

Tu, hotentote com estalo no céu da boca! Vós, hordas com cabeleiras laníferas! Vós, escravizados gotejando, gotas doces ou gotas de sangue! Vós, formas humanas com insondável e sempre impressionante expressão de brutalidade! Vós, pobre koboo para quem os piores entre os demais olham com desdém, por toda a vossa linguagem luminescente e vossa espiritualidade! Tu, anão de Kamtschatkan, Groenlândia, Lapônia! Tu, negro austral, nu, vermelho, fuliginoso, com lábio saliente, rastejante, procurando comida! Tu, cafre, berber, sudanês! Tu, desfigurado, inculto, deseducado beduíno! Vós, vítimas aglomeradas de uma epidemia em Madras, Nanquim, Cabul, Cairo! Tu, nômade ignorante da Amazônia! Tu, patagônio! Tu, fijiano! Também não prefiro outros a ti, Não digo uma única palavra contra ti, aí no fundo onde te encontras (Tu hás de vir para frente, quando a hora chegar, para estar ao meu lado.)

13

Meu espírito compassivo e determinado circundou a Terra inteira, Procurei os meus iguais e os meus amantes e os encontrei prontos para mim em todas as terras, Creio que uma conexão divina me fez entrar em sintonia com eles. Vós, barcos a vapor, creio que me ergui convosco, e viajamos por continentes longínquos, e neles caímos; por alguma razão, creio que fui convosco carregado, ó ventos; E vós, águas, toquei os meus dedos em cada praia convosco, Corri através dos mesmos leitos pelos quais já correram todos os rios ou canais do globo, Firmei minha posição nas bases das penínsulas e no alto dos rochedos para bradar de lá:  med.00400.162.jpg Salut au monde! Cidades nas quais penetram a luz ou o calor, eu mesmo as penetro, Todas as ilhas para as quais os pássaros voam em seu roteiro, eu mesmo vôo em meu roteiro para elas. Na direção de todos vós, em nome da América, Eu ergo nas alturas a mão perpendicular, faço o sinal, Para que permaneça visível após mim, para sempre, Para todos os abrigos e lares da humanidade.

Canção da estrada aberta

1

A pé e com o coração iluminado, adentro a estrada aberta, Saudável, livre, o mundo adiante de mim, A longa senda marrom em minha frente, conduzindo-me para onde quer que eu escolha. A partir de agora não peço mais pela boa sorte, pois eu mesmo sou a boa sorte, A partir de agora abandono as lamúrias, não mais procrastino, de nada mais necessito, Estou farto de reclamações entre quatro paredes, bibliotecas, críticas conflituosas, Forte e satisfeito eu viajo pela estrada aberta. A Terra, ela é suficiente para mim, Não desejo as constelações mais próximas, Sei que estão muito bem no lugar em que estão, Sei que são suficientes para aqueles que vivem por lá. (Ainda assim, por aqui eu carrego meus velhos fardos deliciosos, Carrego-os, homens e mulheres, carrego-os comigo onde quer que eu vá, Juro que é impossível deles me livrar, Estou realizado por eles, e hei de realizá-los em troca.)

2

Tu, estrada em que adentro, olhando ao meu redor, acredito que não sejas apenas o que se vê aqui,  med.00400.163.jpg Acredito que muito do que é invisível também esteja aqui. Aqui está a profunda lição da receptividade, não a da preferência nem a da negação, O negro com sua cabeça lanífera, o criminoso, o enfermo, o analfabeto, não são discriminados, O nascimento, a procura apressada por um médico, o passo lento do mendigo, a tontura do bêbado, a festa alegre de mecânicos, O jovem foragido, a carruagem do rico, o almofadinha, o casal fugidio, O homem que madruga na feira, o carro fúnebre, a entrada da mobília na vila, o regresso da cidade, Eles passam, eu passo também, qualquer coisa passa, nada é interditado, Nada deixa de ser aceito, nada deixará de ser querido para mim.

3

Tu, ar que me serves com este ar com o qual eu falo! Vós, objetos que tirais os meus conceitos do abstrato e dais forma a eles! Tu, luz que me agasalhas e agasalhas todas as coisas em chuveiros delicados e invariáveis! Vós, caminhos desgastados nas perfurações irregulares dos acostamentos! Acredito que sejais latentes e que possuís existências insondáveis, tão queridas para mim. Vós, calçadas sinalizadas das cidades! Vós, robustas sarjetas nas beiradas, Vós, balsas! Vós, pranchas e postes dos embarcadouros! Vós, laterais de tábuas listradas! Vós, navios distantes! Vós, casas em linha! Vós, fachadas de janelas perfuradas! Vós, telhados! Vós, varandas e entradas! Vós, espigões de muralha e guaritas de aço! Vós, janelas cuja transparência poderia tanto expor! Vós, portas e degraus de subida! Vós, arcos! Vós, pedras cinzentas de intermináveis pavimentos! Vós, cruzamentos pisados! Tudo o que vos tocou, acredito que haveis compartilhado entre vós, e agora compartilharíeis o mesmo em segredo comigo, De vivos e de mortos vós haveis impregnado de pessoas a vossa impassível superfície, e os espíritos ali presentes seriam evidentes e amistosos para comigo.
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4

A Terra expandindo-se para a direita e para a esquerda, O retrato vivo, cada uma de suas partes em sua mais fulgurante luz, A música descendo sobre aqueles que a desejam e deixando de entrar nos locais em que não a desejam, A voz animada da estrada pública, o sentimento alegre, fresco das estradas. Ó estrada principal, por ti viajo, pedes-me Não me deixes? Dizes-me Não te aventures — se me deixares estarás perdido? Dizes Eu já estou madura, estou bem curtida e não fui negada,portanto junta-te a mim? Ó estrada pública, respondo-te que não tenho medo de deixar-te, e contudo te amo, Tu te expressas melhor sobre mim do que eu mesmo, Hás de ser mais para mim que meus poemas. Creio que todas as ações heróicas foram concebidas ao ar livre e também todos os poemas livres. Creio que eu poderia parar aqui mesmo e operar milagres, Creio que amarei tudo o que encontrar pela estrada, e todos os que me contemplarem hão de gostar de mim, Creio que quem quer que eu veja terá de ser feliz.

5

Desde agora ordeno que meu eu esteja livre de limites e linhas imaginárias, Posso ir a todos os lugares que imaginar, sou meu próprio mestre, total e absoluto, Ouço o que me dizem os outros, reflito bem sobre o que eles dizem, Paro, procuro, recebo, contemplo, Gentilmente, mas com uma vontade inegável, dispo-me das amarras que me limitariam. Inalo grandes correntes de ar espaciais, O leste e o oeste são meus, e o norte e o sul são meus. Sou maior e melhor do que eu pensava, Não sabia que poderia conter em mim tanta bondade.  med.00400.165.jpg Tudo me parece maravilhoso, Posso repetir e repetir para homens e mulheres: vós fizestes tanto bem a mim e eu faria o mesmo por vós, Recrutarei para mim e para vós na medida em que avanço, Derramar-me-ei entre os homens e as mulheres na medida em que avanço, Lançarei nova alegria e aspereza entre eles, E se alguém me negar, isso não me incomodará, Quem quer que me aceite, ele ou ela, há de ser abençoado e há de abençoar-me.

6

Agora, se mil homens perfeitos tivessem de aparecer, isso não me espantaria, Agora, se mil formas maravilhosas de mulher aparecessem, isso não me assombraria. Agora vejo o segredo de como produzir as melhores pessoas, É o de crescer ao ar livre e de comer e de dormir com a terra. Aqui um feito pessoal tem espaço (Tal realização se apodera dos corações de toda a raça humana, Sua efusão de força e vontade subjuga a lei e debocha de toda autoridade e de todo argumento que se lance contra ela.) Aqui está o teste da sabedoria, O teste final da sabedoria não se dá nas escolas, A sabedoria não pode ser transmitida por alguém que a tem para alguém que não a possui, A sabedoria pertence à alma, não é susceptível de provas, ela é a prova de si mesma, Ela se aplica a todos os estágios e objetos e qualidades e seus conteúdos, É a certeza da realidade e da imortalidade das coisas, e a excelência das coisas; Algo que está nela, está na superfície e na visão das coisas, de tal modo a provocar que venha para fora da alma. Agora eu reexamino as filosofias e as religiões, Elas podem ser eficazes nos salões de conferência e, contudo, não  med.00400.166.jpg funcionar em absoluto abaixo da vastidão das nuvens e ao longo das paisagens e das correntes que fluem. Aqui está a concepção, Aqui está um homem contado — ele concebe aqui o que está nele, O passado, o futuro, a majestade, o amor — se eles estão vazios de ti, estás vazio deles. Apenas o núcleo de cada objeto pode nutrir; Onde está ele, que remove as cascas por ti e por mim? Onde está ele, que desfaz estratagemas e envelopes por ti e por mim? Aqui está a adesividade, ela não foi talhada previamente, ela é oportuna. Sabes o que significa ser amado por estranhos? Sabes o que dizem aqueles olhos que se voltam para ti?

7

Aqui está a emanação da alma, A emanação da alma vem de dentro, por meio de portões sombreados, que sempre provocam polêmica, Esses anelos, por que existem? Esses pensamentos na escuridão, por que existem? Por que há homens e mulheres que enquanto estão próximos de mim fazem-me sentir a luz do sol a expandir meu sangue? Por que quando eles me deixam minhas flâmulas de alegria se abatem murchas? Por que há árvores sob as quais nunca caminho e, contudo, fazem descer sobre mim grandes e melodiosos pensamentos? (Creio que eles estão postos ali no inverno e no verão e sempre fazem com que os frutos caiam quando passo.) O que é isso que permuto tão de repente com estranhos? O que se dá com um condutor quando me sento ao seu lado? O que se dá com um pescador, puxando a sua rede na praia, quando passo e paro por ali? O que me permite estar livre para a boa vontade de uma mulher ou de um homem? O que dá a eles a sensação de liberdade?

8

A emanação da alma é a felicidade, aqui está a felicidade, Creio que ela se infiltra no ar livre, esperando em todas as eras,  med.00400.167.jpg Agora ela flui para nós, estamos dela carregados certamente. Aqui se ergue o fluido e o caráter que se prende a nós, O fluido e o caráter que se prende a nós dão o frescor e a doçura do homem e da mulher (As ervas da manhã não germinam mais frescas e doces todos os dias, a partir de suas raízes, do que eles germinam frescos e doces continuamente de si mesmos.) Em direção ao fluido e ao caráter que se prende a nós, aparece o suor do amor dos jovens e dos idosos, Deles cai destilado o charme que ri da beleza e de tudo o que se obtém, Na direção deles as náuseas fazem estremecer com saudades do contato.

9

Allons! Quem quer que sejas, vem viajar comigo! Viajando comigo encontrarás o que nunca faz cansar. A terra jamais se cansa, A terra é rude, silenciosa, incompreensível à primeira vista, a natureza é rude e incompreensível à primeira vista, Não desanimes, persevera, há segredos divinos bem guardados, Juro-te que há segredos divinos mais belos do que as palavras podem jamais descrever. Allons! Não devemos parar aqui, Por mais doces que sejam os bem armazenados, por mais convenientes que sejam estas moradas, não devemos permanecer por aqui, Por mais aconchegante que seja este porto e por mais calmas que sejam estas águas não devemos ancorar aqui, Por mais convidativa que seja a hospitalidade que nos cerca, não se nos permite recebê-la além de alguns momentos.

10

Allons! As seduções hão de ser maiores, Navegaremos sem rumo por mares bravios, Iremos até onde os ventos podem soprar, até onde as ondas se arrojam e o veloz cavalo ianque pode correr a toda vela.  med.00400.168.jpg Allons! Com poder, liberdade, a terra, os elementos, Saúde, desafio, alegria, auto-estima, curiosidade; Allons! De todas as fórmulas! De vossas fórmulas, ó padres materialistas com olhos de morcego. O cadáver bolorento bloqueia a passagem — o enterro não pode mais esperar. Allons! Contudo esteja alerta! Aquele que viaja comigo precisa do melhor sangue, tendões,resistência, Ninguém pode vir ao tribunal até que tenha plena coragem e saúde, Não venhas para cá se já usaste o melhor de ti, Só podem vir os que tenham seus corpos doces e determinados. Ninguém que esteja doente, nenhum bebedor de rum ou portador de doença venérea pode entrar aqui. (Eu e o meu não convencemos por argumentos, sorrisos, rimas, Convencemos pela nossa presença.)

11

Ouve! Serei honesto contigo, Não ofereço os velhos prêmios amáveis, contudo ofereço prêmios novos e ásperos, Estes são os dias que devem ocorrer para ti: Não deverás acumular aquilo que é chamado de riqueza, Terás de distribuir com mãos pródigas tudo o que ganhar ou alcançar, Quando acabares de chegar à cidade para a qual estavas destinado, e tiveres mal te assentado com satisfação, logo serás chamado irresistivelmente para partir, Serás tratado com sorrisos irônicos e deboche por aqueles que estiverem atrás de ti, Aos acenos de amor que receberes terás de responder apenas com os beijos apaixonados da partida, Não deverás permitir o abraço daqueles que estenderem suas mãos para alcançar-te.

12

Allons! Atrás dos grandes Companheiros, para pertencer a eles! Eles também estão na estrada — eles são homens rápidos e  med.00400.169.jpg majestosos — são as mais grandiosas mulheres, Desfrutadores das calmarias marítimas e das tempestades marítimas, Marinheiros de muitos navios, andarilhos de muitas milhas em terra, Habituès de muitos países distantes, Habituès de moradias distantes, Confiantes nos homens e nas mulheres, observadores das cidades, trabalhadores solitários, Aqueles que param para contemplar os topetes, os botões, as conchas do mar, Dançarinos de festas de casamento, beijadores de noivas, carinhosos ajudantes de crianças, condutores de crianças, Soldados de revoltas, guardadores de túmulos abertos, abaixadores de caixão, Viajantes de estações consecutivas, através dos anos, os anos curiosos, cada um emergindo daquele que o precedeu, Viajantes com seus companheiros, a saber suas próprias etapas diversas, Cavalos marchadores para adiante desde os dias primevos latentes e não imaginados, Viajantes alegres com sua própria juventude, viajantes com sua masculinidade de barba bem feita, Viajantes com sua feminilidade, ampla, insuperável, satisfeita, Viajantes com sua própria masculinidade ou feminilidade de idade avançada e sublime, Idade avançada, calma, expandida, ampla com a orgulhosa largura do universo, Idade avançada, fluindo livremente com a deliciosa liberdade da morte que se aproxima.

13

Allons! Para aquilo que não tem fim tal como não teve início, Vivenciando muito: caminhadas durante o dia e o repouso à noite, Fundindo tudo na viagem que realizam, e os dias e noites que realizam, Novamente para fundi-los na partida de jornadas superiores, Vendo nada em lugar algum, a não ser aquilo que podes alcançar e ultrapassar, Não concebendo tempo algum, embora distante, mas apenas aquilo que possas alcançar e ultrapassar, Não vendo a estrada de um lado ao outro, mas sua extensão e a sua espera por ti, Não vendo ser algum, nem mesmo o de Deus ou qualquer outro, mas também tu que avanças para o outro lado,  med.00400.170.jpg Não vendo possessão alguma, mas sendo capaz de possuir tudo, desfrutando de tudo sem labuta ou investimento, abstraindo a festa e, contudo, sem abstrair uma única partícula dela, Tomando o melhor da fazenda do fazendeiro e da elegante vila do homem rico, e das castas bênçãos do casal recém-casado, e dos frutos dos pomares e das flores dos jardins, Tomando para teu uso aquilo que há nas pequenas cidades quando passas por elas, Carregando prédios e ruas contigo, mais tarde, onde quer que vás, Colhendo os gênios dos homens em seus cérebros à medida que os encontre, colhendo o amor de seus corações, Conduzindo teus amantes contigo pela estrada, por tudo aquilo que os deixas para trás de ti, Conhecendo o próprio universo como uma estrada, tantas quantas sejam as estradas, como estradas para as almas viajantes. Tudo se fraciona pelo progresso das almas, Toda a religião, tudo o que é sólido, as artes, os governos — tudo o que era ou é aparente sobre o globo ou qualquer globo, cai em nichos ou esquinas perante a procissão das almas ao longo das grandes estradas do universo. Do progresso das almas dos homens e das mulheres, ao longo das grandes estradas do universo, todo o outro progresso é o símbolo e a sustentação necessários. Para sempre vivas, para sempre adiante, Altivas, solenes, tristes, retiradas, confusas, loucas, turbulentas, frágeis, insatisfeitas, Desesperadas, orgulhosas, amorosas, doentes, aceitas pelos homens, rejeitadas pelos homens, Elas vão! Elas vão! Eu sei que elas vão! Mas não sei para onde vão, Mas eu sei que elas vão na direção do melhor — na direção de algo grandioso. Quem quer que sejas, avança! Sejas homem ou mulher, avança! Não deves ficar dormindo e brincando aí em tua casa, ainda que a tenhas construído para ti. Fora do confinamento na escuridão! Fora de detrás das cortinas!  med.00400.171.jpg É inútil protestar, tudo conheço e exponho! Olho através de ti e vejo-te tão mal como todos os outros, Através do riso, da dança, do jantar, da ceia, das pessoas, Dentro dos vestidos e dos ornamentos, dentro daquelas faces lavadas e aparadas, Contemplo um segredo silencioso de abominação e desespero. Em nenhum marido, em nenhuma esposa, em nenhum amigo pode- se confiar para ouvir a confissão, Outro ser, um duplo de cada um, se esquiva e se esconde sempre mais, Sem forma e sem palavras através das ruas das cidades, polidos e afáveis nas salas de estar, Nos vagões das estradas de ferro, em barcos a vapor, nas assembléias públicas, Lares para as casas dos homens e mulheres, nas mesas, no quarto de dormir, em toda parte, Espertamente enfeitados, com a fisionomia sorridente, eretos, com a morte debaixo das costelas, com o inferno debaixo do crânio, Debaixo da casimira fina e das luvas, debaixo dos laços e das flores artificiais, Mantendo-se dentro dos costumes, não falando uma única sílaba de si mesmo, Falando de qualquer outra coisa, mas jamais de si mesmo.

14

Allons! Através de lutas e guerras! Ao objetivo que foi estabelecido não se pode retroceder. As contendas do passado alcançaram sucesso? O que logrou sucesso? Tu? Tua nação? A natureza? Agora me compreendes bem — está dado na essência das coisas que para qualquer fruição de sucesso, não importa o que seja, algo mais virá à tona para fazer necessários novos esforços. Minha chamada é a chamada da batalha, eu nutro a rebelião ativa, Aquele que caminha comigo deve estar bem armado, Aquele que caminha comigo enfrenta uma dieta espartana, escassez, inimigos coléricos, deserções.
 med.00400.172.jpg

15

Allons! A estrada está adiante de nós! Ela é segura — eu já a provei — com meus próprios pés eu a experimentei bastante — não te detenhas! Deixa que o papel permaneça sobre a mesa, em branco, e o livro fechado na prateleira! Deixa que as ferramentas jazam na oficina! Deixa que o dinheiro fique sem ser ganho! Deixa que a escola espere! Não te importes com o chamado do professor! Deixa que o pregador pregue no seu púlpito! Deixa que o advogado defenda a causa na corte e que o juiz interprete a lei. Camarada, dou-te a minha mão! Dou-te meu amor mais precioso que dinheiro, Dou-te o meu ser antes de pregar ou legislar; Dar-me-ás o teu ser? Viajarás comigo? Seremos unidos um ao outro enquanto vivos estivermos?

Atravessando a balsa do Brooklyn

1

A maré transborda sob mim! Vejo-te face a face! Nuvens para o oeste — o sol está lá nascido há apenas meia hora — vejo-te também face a face! Multidões de homens e mulheres enfeitados em seus figurinos usuais; quão interessantes sois para mim! Nas balsas, as centenas e centenas que fazem a travessia, voltando para casa, são mais interessantes para mim do que supões, E vós que cruzareis estas águas, de uma margem à outra, dentro de muitos anos, sois mais importantes para mim, e estão mais presentes em minhas meditações, do que podereis supor.

2

O meu imponderável alimento que vem de todas as coisas, a cada hora do dia, O simples, pequeno, bem articulado esquema, meu ego desintegrado,  med.00400.173.jpg cada um desintegrado e, contudo, sendo parte do esquema, As similaridades do passado e aquelas similaridades do futuro, As glórias penduradas como contas nas minhas menores visões e em tudo o que ouço, na calçada das ruas e nas pontes sobre os rios, A corrente descendo tão rapidamente, levando-me a nado para longe, Os outros que devem me seguir, os laços que existem entre eu e eles, A certeza dos outros, a vida, o amor, a visão, o ato de ouvir os outros. Outros entrarão pelos portões da balsa e cruzarão de margem a margem, Outros assistirão a rapidez do transbordamento da maré, Outros verão os navios de Manhattan ao norte e a oeste e as elevações do Brooklyn para o sul e para o leste, Outros verão as ilhas grandes e pequenas; Dentro de cinqüenta anos, outros vão ter essa visão quando fizerem a travessia, o sol nascido há meia hora, Dentro de cem anos, ou mesmo dentro de centenas de anos, outros vão ter essa visão, Desfrutarão o pôr-do-sol, a água que entra pelo transbordamento da maré, o retorno do mar no refluxo da maré.

3

Não faz diferença, nem a hora nem o lugar — a distância não faz diferença, Estou convosco, homens e mulheres de uma geração, ou mesmo tantas gerações a partir de então, Tal como sentistes quando olhastes para o rio e para o céu, assim eu me senti, Tal como qualquer um de vós é apenas um na multidão, eu também fui um na multidão, Tal como vos sentistes renovados pelo regozijo do rio e pelo brilho da água, eu me renovei, Tal como vós estais de pé, encostados no corrimão e, contudo, vos moveis rapidamente graças à força da correnteza, eu também me encostei assim e me movi com rapidez, Tal como vós olhastes para os mastros inumeráveis dos navios e para as espessas chaminés que se erguem nos barcos a vapor, também olhei. Muitas e muitas vezes também atravessei o velho rio,  med.00400.174.jpg Contemplei as gaivotas de doze meses, vi-as nas alturas, flutuando com asas imóveis, oscilando seus corpos, Vi como o amarelo reluzente acendia uma parte de seus corpos,deixando o resto na sombra mais completa, Vi como voavam em círculos, vagarosamente, bordejando gradualmente o continente para o sul, Vi o reflexo do céu de verão nas águas, Senti meus olhos deslumbrarem-se com a beleza do percurso dos raios de sol, Olhei para os finos raios centrífugos de luz, que incidiam como círculos em minha cabeça, refletidos na água iluminada pelo sol, Olhei para a névoa nas montanhas em direção ao sul e ao sudoeste, Olhei para o vapor esvoaçante como lã tingida de violeta, Olhei na direção da baía inferior para observar as naus que chegavam, Vi sua chegada, vi que estavam a bordo aqueles que estavam próximos de mim, Vi as velas brancas das escunas e corvetas, vi os barcos nos ancoradouros, Os marinheiros manejando o cordame ou pendurados nos mastros, Os mastros cilíndricos, o movimento pendular das armações, as bandeiras esguias a serpentear, Os grandes e os pequenos barcos a vapor, os pilotos em suas cabinas, A esteira branca deixada pela passagem do navio, a rapidez trêmula do giro do timão, As bandeiras de todas as nações, o seu arriamento ao pôr-do-sol, As projeções curvilíneas na borda das ondas ao crepúsculo, as conchas, a crista brincalhona e brilhante das ondas, A linha do horizonte cada vez mais imersa na escuridão, as paredes cinzentas dos prédios de granito dos armazéns nas docas, Pelo rio, vultos sombrios, o grande rebocador a vapor tendo um batel de cada lado, o barco de feno, as barcaças morosas, Na margem próxima os fogos das chaminés das fundições queimando nas alturas e fulgurantes noite adentro, Lançando seu estalido de preto, contrastado com vermelho selvagem, e a luz amarela sobre o telhado das casas, e nos corredores das ruas.

4

Isso e tudo o mais foram para mim o mesmo que são para vós, Amei muito aquelas cidades, amei muito o rio rápido e altivo,  med.00400.175.jpg Os homens e mulheres que vi estavam todos próximos de mim, Outros também — outros que se viraram para me ver porque olhei para frente para vê-los (Esse tempo virá, embora eu pare por aqui neste dia e nesta noite.)

5

O que há, então, entre nós? O que há na conta dos sinais de centenas de anos entre nós? Haja o que houver, não faz diferença — a distância não faz diferença, e o espaço não faz diferença, Eu também vivi, o Brooklyn de amplas montanhas foi meu, Eu também andei pelas ruas da ilha de Manhattan, e me banhei nas águas que há ao redor, Eu também senti as dúvidas que surgiram curiosas e abruptas, agitando-se em mim, Nos dias em que andei através de multidões, algumas vezes elas me assaltaram, Em minhas caminhadas para casa, tarde da noite, ou nas horas em que eu estava deitado em minha cama, elas me assaltaram, Eu também fui golpeado com essa dança eterna que nos priva de solução, Eu também recebi uma identidade a partir de meu corpo, Aquela identidade procedia de meu corpo, e o que eu deveria ser eu sabia que deveria proceder de meu corpo.

6

Não é apenas sobre ti que as vestes da escuridão se despencam, A escuridão também lançou sobre mim as suas vestes, O melhor de tudo o que eu já fizera pareceu-me vazio e suspeito, As grandes luzes intelectuais que eu julgava possuir, não eram elas na verdade escassas? Não és o único que sabe o que é ser mau, Eu sou aquele que sabia o que é ser mau, Eu também atei o velho nó da contrariedade, Segredei, ruborizei, ressenti-me, menti, roubei, senti rancor, Fui malicioso, tive raiva, entreguei-me à luxúria, senti desejos ardentes dos quais não ouso falar, Fui teimoso, vão, ganancioso, raso, astuto, covarde, maligno, Fui a raposa, a serpente, o suíno, sem querer ter sido,  med.00400.176.jpg Em mim o olhar de traição, a palavra frívola, o desejo adúltero, sem que eu os quisesse, Em mim rejeições, ódios, adiamentos, maldade, preguiça, sem que eu os quisesse, Fui um com os demais, com os dias e a sorte dos demais, Fui chamado pelo meu nome mais íntimo, por vozes altas e claras de jovens homens, quando eles me viram chegando ou passando por eles, Senti seus braços em meu pescoço quando parei, ou o contato de seus corpos que se deixaram cair, sobre mim quando me sentei, Vi muitos que amei nas ruas ou nas balsas ou nas assembléias públicas e, contudo, nunca lhes disse uma única palavra, Vivi a mesma vida com os demais, dei as mesmas velhas gargalhadas, atormentado, dormindo, Participei da peça que ainda procura, no passado, o ator ou a atriz, O mesmo velho papel, o papel que é aquele que fazemos existir, tão grandioso quanto o desejamos, Ou tão pequeno quanto o queremos, ou ambos: grandioso e pequeno.

7

Aproximai-me ainda mais de ti, O que pensas de mim agora, eu também estive contigo — adiantei o depósito de meus estoques, Refleti longamente e seriamente sobre ti antes de teu nascimento. Quem saberia dizer o que eu traria comigo para casa? Quem sabe que estou gostando disso? Quem saberia, tendo em vista uma tal distância que nos separa, que estou tão bem, olhando para ti agora, embora não possas me enxergar?

8

Ah, o que pode ser mais altivo e mais admirável para mim do que o mastro banhado em Manhattan? Rio e pôr-do-sol e projeções curvilíneas na borda das ondas da maré que inunda? As gaivotas oscilando seus corpos, o barco de feno no crepúsculo e a barcaça morosa? Que deuses podem exceder esses que me pegam pelas mãos e, com vozes que eu amo, chamam-me prontamente e em alto som pelo meu nome mais íntimo quando me aproximo?  med.00400.177.jpg O que pode ser mais sutil do que isso que me ata à mulher ou ao homem que olham para mim? O que me funde em ti neste momento e derrama o meu significado em ti? Nós os compreendemos, não é verdade?! Aceitaste aquilo que te prometi sem questionar, não é verdade? Aquilo que o estudo não levaria a aprender — aquilo que a pregação não poderia conseguir é conseguido, não é verdade?!

9

Desce, rio! Desce com a inundação da maré e reflui com o refluxo! Brincai, projeções curvilíneas nas bordas das cristas das ondas! Nuvens formosas do crepúsculo! Encharcai-me com vosso esplendor ou às gerações de homens e mulheres que virão após mim! Levai, de uma margem à outra, incontáveis multidões de passageiros! De pé, altos mastros de Mannahatta! De pé, lindas montanhas do Brooklyn! Palpita, cérebro, confuso e curioso! Lança de ti perguntas e respostas! Suspende aqui e em toda parte a eterna dança das soluções! Olhai fixamente, olhos amorosos e sedentos, na casa ou na rua ou na assembléia pública! Soai, vozes, vozes de rapazes! Altas e musicais, chamai-me pelo meu nome mais íntimo! Vive, vida antiga! Participa da peça que procura o passado do ator ou da atriz! Assume o papel antigo, o papel que é grande ou pequeno, de acordo com o que cada um deles faz! Considera, tu que me lê com atenção, se posso estar por caminhos desconhecidos pensando em ti; Sê firme, corrimão acima do rio, para suportares aqueles que se apóiam em ti preguiçosamente e, contudo, se movem rapidamente com a velocidade da correnteza; Voai, pássaros marítimos! Voai para os lados ou fazei grandes círculos nas alturas; Reflete o céu de verão, tu, água, e lealmente o segura até que todos os olhos voltados para a tua superfície tenham tempo de vê-lo! Dispersai-vos, finos raios de luz saídos da silhueta de minha cabeça, ou da cabeça de qualquer outra pessoa, refletidos na água iluminada pelo sol!  med.00400.178.jpg Avante, navios da baía inferior! Passai para cima ou para baixo, escunas de velas brancas, corvetas, barcaças! Ostentai-vos, bandeiras de todas as nações! Arriai-vos pontualmente no pôr-do-sol! Queimai os vossos fogos, chaminés das fundições! Lançai sombras negras sobre o anoitecer! Lançai luzes vermelhas e amarelas sobre os telhados das casas! As aparências, agora ou de agora em diante, indicam o que és, Tu, necessário filme, continua envolvendo a alma, Sobre o meu corpo por mim, e sobre o teu corpo por ti, pendurai- vos, aromas divinos, Prosperai, cidades — trazei vosso frete, trazei os vossos espetáculos, rios amplos e suficientes, Expandi-vos, tornando-se talvez aquilo que nada pode superar em espiritualidade, Guardai os vossos lugares, objetos que não encontrarão nada mais duradouro do que si. Já esperastes, sempre esperastes, vós, mudos, maravilhosos ministros, Nós vos recebemos com um senso de liberdade, finalmente, e nos tornamos insaciáveis de agora em diante, Não mais sereis capazes de nos despistar ou de negar-vos a nós, Usamo-vos e não vos lançamos fora — plantamo-vos permanentemente dentro de nós, Não nos aprofundamos em vós — amamo-vos — também há perfeição em vós, Forneceis vossas partes rumo à eternidade, Grandes ou pequenas, vós ofereceis vossas partes para a alma.

Canção do Respondente

1

Agora na lista de minha romanza matinal, narro os sinais do Respondente, Às cidades e fazendas aceno, quando as vejo na amplitude da luz solar perante mim. Um jovem vem a mim trazendo uma mensagem de seu irmão, Como poderá o jovem conhecer as condições e o tempo de seu irmão?  med.00400.179.jpg Diga-lhe que me envie os sinais. E eu paro diante do jovem face a face e pego a sua mão direita na minha mão esquerda e sua mão esquerda na minha mão direita, E respondo para o seu irmão e para os homens, e respondo para aquele que responde por todos, e envio estes sinais. A ele que todos aguardam, a ele a quem todos cedem, sua palavra é decisiva e final, A ele a quem eles aceitam, nele se banharam, nele se percebem em meio à luz, A ele que é submergido por eles e que os submerge. Mulheres maravilhosas, as nações mais justas, as leis, as paisagens, o povo, os animais, A terra profunda e seus atributos e o oceano inquieto (assim eu narro a minha romanza matinal.) Todos os prazeres e as propriedades e dinheiro, e tudo aquilo que o dinheiro comprará, Nas melhores fazendas, são outros os que labutam e plantam e é ele que, inevitavelmente, colhe, Nas cidades mais nobres e mais caras, são outros os que preparam o terreno e constroem e é ele quem lá reside, Nada é por alguém que não seja para ele, próximos e distantes os navios em alto mar são para ele, As perpétuas demonstrações e as marchas em terra são para ele, se são de fato para alguém. Ele acrescenta algo na atitude deles, Ele tira o hoje de si mesmo com plasticidade e amor, Ele estabelece seus próprios tempos, reminiscências, parentes, irmãos e irmãs, associações, empregos, políticos, de modo que os demais nunca o envergonham mais tarde, nem ele julga que os comanda. Ele é o Respondente, Tudo o que pode ser respondido ele responde, e o que não pode ser respondido ele mostra como não pode ser respondido. Um homem é um chamado e um desafio,  med.00400.180.jpg (É em vão que se esquiva — ouves a chacota e o riso? Ouves os ecos irônicos?) Livros, amigos, filósofos, padres, ação, prazer, orgulho, palpitações altas e baixas na busca de dar satisfação, Ele indica a satisfação e indica a eles também aquele ritmo de palpitações. Qualquer que seja o sexo, qualquer que seja a estação ou o lugar, ele pode continuar, renovado e gentil, e seguro de dia e à noite, Ele possui a senha dos corações, para ele a resposta das mãos que se intrometem a girar a maçaneta. Seu acolhimento é universal, o fluxo da beleza não é mais bem-vindo ou universal do que ele é, A pessoa a quem ele favorece durante o dia ou com quem ele dorme à noite é abençoada. Toda existência tem a sua linguagem, tudo tem um idioma e uma língua, Ele inclui todas as línguas na sua e a entrega aos homens, e qualquer homem traduz, e qualquer homem igualmente se traduz, Uma parte não se contrapõe à outra, ele é o elo entre ambas, ele pode compreender de que modo elas se unem. Ele fala sem diferenciar-se e de modo semelhante Como estás amigo?, ao Presidente em sua recepção, E diz Adeus, meu irmão, ao bóia-fria que capina no campo de açúcar, E ambos o compreendem e sabem que seu discurso está correto. Ele se move com perfeita agilidade nos corredores do Capitólio, Anda entre os congressistas, e um deputado diz ao outro, Ali vai um de nossos novos pares . Então os mecânicos tomam-no por um mecânico, E os soldados supõem que ele seja um soldado, e os marinheiros acreditam que ele singrou os mares, E os escritores tomam-no por um escritor, e os artistas por um artista, E os operários percebem que ele poderia trabalhar com eles e amá-los,  med.00400.181.jpg Não importa qual seja a profissão, ele é potencialmente adequado a ela ou nela já atuou, Não importa de que nação falemos, ele há de encontrar ali os seus irmãos e suas irmãs. Os ingleses acreditam que ele vem para a colônia Britânica, Ao judeu ele aparenta ser um judeu, um russo para o russo, costumeiro e próximo, saído do nada. Todos para os quais ele olha na cafeteria dos viajantes atribuem a ele a sua própria nacionalidade, Os italianos e os franceses têm certeza, o alemão tem certeza, o espanhol tem certeza, o cidadão cubano tem certeza que ele é seu concidadão, O engenheiro, o taifeiro dos grandes lagos, ou no Mississippi ou em St. Lawrence ou em Sacramento, ou ao som do Hudson ou do Paumanok, todos o reconhecem como igual. Os cavalheiros de sangue perfeito reconhecem o seu sangue perfeito, Aquele que insulta, a prostituta, a pessoa com raiva, o pedinte, se vêem projetados nele e ele estranhamente se transforma neles, Eles não são piores, eles mal conhecem a grandeza que existe dentro de si.

2

As indicações e a contagem das horas, O que tem perfeita sanidade se faz mestre entre os filósofos, O tempo, sempre sem brechas, se apresenta em fragmentos, O que sempre indica o poeta são as multidões de companhias agradáveis dos cantores e suas palavras, As palavras dos cantores são as horas e os minutos da luz ou da escuridão, mas as palavras do autor de poemas são a própria luz e a escuridão, O autor de poemas estabelece a justiça, a realidade, a imortalidade, Sua luz interior e seu poder envolve as coisas e a raça humana, Ele é a glória e o extrato longínquo das coisas e da raça humana. Os cantores não criam, apenas os Poetas criam, Os cantores são bem-vindos, compreendidos, aparecem com bastante freqüência, mas são raros os dias ou as oportunidades de nascimento dos autores de poemas, os Respondentes,  med.00400.182.jpg (Nem todo o século, nem mesmo o intervalo de cada cinco séculos contém esse dia, com todos os seus nomes.) Os cantores das horas sucessivas dos séculos podem ter nomes ostensivos, mas o nome de cada um deles é de um dos cantores, O nome de cada um é: olho cantor, ouvido cantor, cabeça cantora, doce cantor, cantor da noite, cantor de salão, cantor do amor, cantor do destino ou de algo mais. Todo esse tempo e em todos os tempos, espere pelas palavras dos poemas verdadeiros, As palavras dos poemas verdadeiros não são aquelas que simplesmente agradam, Os verdadeiros poetas não são os seguidores da beleza, mas os augustos mestres da beleza; A grandeza dos filhos é a exsudação da grandeza das mães e dos pais, As palavras dos poemas verdadeiros são a coroa e o aplauso final da ciência. Instinto divino, amplitude da visão, a lei da razão, saúde, rudeza do corpo, capacidade de se retirar, Alegria, pele morena, doçura do ar, essas são algumas das palavras dos poemas. Os marinheiros e os viajantes subjazem aos autores de poemas, os Respondentes, O construtor, o geômetra, o químico, o anatomista, o frenologista, o artista, todos esses subjazem ao autor de poemas, o Respondente. As palavras dos verdadeiros poemas dão-te mais do que poemas, Elas são a matéria-prima para que possas fazer tu mesmo poemas, religiões, política, guerra, paz, comportamento, história, ensaios, vida diária e tudo o mais, Elas põem em equilíbrio as categorias, as cores, as raças, os credos, e os sexos, Elas não procuram a beleza, elas são procuradas, Para sempre as tocando, ou próxima delas, segue a beleza, cheia de desejos, ansiosa, doente de amor.  med.00400.183.jpg Elas preparam para a morte e, contudo, não são o fim, ao contrário, a partida, Elas não conduzem ninguém ao seu término ou para a sua satisfação e contentamento, Aqueles que são conduzidos por elas são conduzidos para o espaço, de modo que assistam ao nascimento das estrelas, para que aprendam os seus significados, Para lançá-los com fé absoluta, para arrebatar os anéis intermináveis e nunca mais se aquietarem.

Nossa antiga feuillage

Sempre a nossa antiga feuillage! Sempre a península verde da Flórida — sempre o inestimável delta da Louisiana — sempre os campos de algodão do Alabama e do Texas, Sempre as montanhas douradas da Califórnia e as depressões, e as montanhas prateadas do Novo México — sempre o hálito macio de Cuba, Sempre a vasta falda drenada pelo mar do sul, inseparável das faldas drenadas pelos mares do leste e do oeste, A área deste octogésimo terceiro aniversário destes Estados, os três milhões e meio de milhas quadradas, As dezoito mil milhas de costa marítima e de baías continentais, as trinta mil milhas de navegação fluvial, Os sete milhões de famílias distintas e o mesmo número de moradias — sempre essas e mais se ramificando em ramos sem número, Sempre o espaço livre e a diversidade — sempre o continente da Democracia; Sempre as pradarias, pastos, florestas, cidades amplas, viajantes, Canadá, as neves; Sempre essas terras firmes atadas aos quadris, com aquele cinturão que amarra os imensos lagos ovais; Sempre o Oeste com pessoas nativas, vigorosas, o destino do crescimento de lá, os habitantes, amigáveis, ameaçadores, irônicos, invasores desprezados; Todas as vistas, Sul, Norte, Leste — todos os feitos, promiscuamente realizados em todos os tempos,  med.00400.184.jpg Todos os personagens, movimentos, crescimentos, uns poucos notados, miríades não observadas, Através das ruas de Mannahatta eu ando, reunindo essas coisas, Em rios interiores, à noite, na superfície lustrosa dos nós do pinho, no abastecimento de madeira em barcos a vapor, Luz solar durante o dia no vale do Susquehanna, e no vale do Potomac e Rappahannock, e nos vales de Roanoke e Delaware, Nas florestas selvagens do norte, feras predadoras assombrando as montanhas Adirondack, ou contornando as águas do rio Saginaw para beber, Numa enseada solitária, um merganso perdido do bando pousa na água balançando-se em silêncio, Nos celeiros das fazendas, os bois nos estábulos, seu trabalho de colheita completado, descansando de pé, muito cansados, Bem longe, no gelo ártico, a morsa deita-se preguiçosamente enquanto seus filhotes brincam ao redor, O falcão navegando por onde homem algum já navegou, o mais longínquo oceano polar, cristalino, aberto, além das massas de gelo, Montanha branca flutuante colhendo tudo o que está à sua frente, onde o navio se arroja na tempestade, Em terra firme, o que se faz nas cidades quando os sinos tocam juntos à meia-noite, Os sons também alcançam florestas primitivas, o uivo do lobo, o grito da pantera, e a rouquidão do alce, No inverno, embaixo da superfície de gelo azul do lago Moosehead, e no verão, visível, através das águas claras, a truta grande nada. Nas latitudes mais baixas, em ares mais quentes, nas Carolinas, o grande urubu negro circula vagarosamente no alto, acima dos topos das árvores, Abaixo, o cedro vermelho abarrotado de tylandria, os pinhos e ciprestes crescendo na areia branca que se espalha ao longe e é plana, Barcos repentinos descendo o grande Pedee, trepadeiras, parasitas com suas flores coloridas e frutas vermelhas envolvendo árvores imensas, A folhagem longa e ondulante derramando-se sobre o carvalho americano até o chão, balançando sem ruídos pela ação do vento, O acampamento dos carroceiros da Geórgia ao anoitecer, as fogueiras gigantes em torno das quais brancos e negros cozinham e comem,  med.00400.185.jpg Trinta ou quarenta grandes carroças, mulas, gado, cavalos, alimentando-se no cocho, As sombras, os brilhos, sob as folhas do velho Sicômoro, as chamas com fumaça negra de madeira escura que sobe em espiral; Pescadores do sul pescando, os estuários e as angras da costa da Carolina do Norte, a pescaria de sável, a pescaria de arenque, as grandes redes de arrastão, nas praias, as máquinas de reboque movidas a cavalo, as casas onde se limpam, curam e empacotam os peixes, No interior da floresta repleta de pinheiros, o gotejar da terebintina das incisões feitas nas árvores, aqueles que trabalham com a terebintina, Há os negros trabalhando com boa saúde, em todas as direções, a terra está coberta com a palha dos pinheiros; No Tennessee e no Kentucky, escravos ocupados no abastecimento de carvão na forja, ao lado do brilho da fornalha, ou na remoção das cascas do milho, Na Virgínia, o filho do plantador retorna depois de um longo tempo de ausência, acolhido alegremente e beijado pela idosa ama de leite mulata, Nos rios, os barqueiros ancorados firmemente na caída da noite, em seus barcos, debaixo do abrigo das margens elevadas, Alguns dos homens mais jovens dançam ao som do banjo ou da rabeca, outros sentam-se nas amuradas fumando e conversando; No final da tarde o pássaro-das-cem-línguas, o mímico americano, cantando no Grande Pântano Desolador, Há as águas esverdeadas, o cheiro resinoso, a alga abundante, o cipreste, o zimbro; Para o Norte, jovens soldados de Mannahatta que, à noite, retornam para casa, vindos de uma excursão, e na boca do cano de suas espingardas estão flores e mais flores que lhes foram ofertadas por mulheres; Crianças a brincar ou, no colo de seu pai, um menino que cai no sono (como seus lábios se movem! Quanto sorriso há em seu sono!) O batedor cavalga seu cavalo nos planaltos, a oeste do Mississippi, ele sobe num outeiro e lança um olhar ao redor, Vida da Califórnia, o mineiro barbado, vestido em seus trajes rudes, a leal amizade da Califórnia, o ar doce, os túmulos que aqueles que passam solitários encontram à margem da estrada;  med.00400.186.jpg Para o sul, no Texas, o campo de algodão, as cabanas dos negros, condutores conduzindo mulas, os fardos de algodão empilhados nas margens e nos embarcadouros; Tudo abraçando, arremessando ao longe e na amplidão, a Alma da América, Com iguais hemisférios, um Amor, uma Dilação ou Orgulho; Em arriere, o diálogo de paz com os aborígines iroqueses, o cachimbo sagrado, o cachimbo da paz, a arbitragem, e o endosso, O cacique soprando a fumaça primeiramente em direção ao sol e depois em direção à terra, O drama da dança do escalpelo ordenada com faces pintadas e exclamações guturais, A exibição da festividade guerreira, a marcha longa e dissimulada, A fila indiana, o vaivém das engenhocas, o ataque surpresa e o massacre dos inimigos; Todos os atos, cenas, pessoas, atitudes destes Estados, reminiscências, instituições, Todos estes Estados sólidos, cada milha quadrada do território destes Estados sem a exceção de uma única partícula; Eu satisfeito, perambulando por alamedas e campos do interior, campos de Paumanok, Observando o vôo em espiral de duas borboletas amarelas embaralhando-se, subindo alto no ar, A andorinha que se arremessa, o destruidor de insetos, o viajante do outono indo para o sul, mas retornando para o norte no início da primavera, O rapaz ao fim do dia conduzindo o rebanho bovino e gritando para que as vacas não se retardem para pastar na beira da estrada, O cais da cidade em Boston, Filadélfia, Baltimore, Charleston, New Orleans, San Francisco, A partida dos navios quando os marinheiros se erguem no cabrestante; Fim do dia — eu em meu quarto — o pôr-do-sol, O sol de verão que se põe, brilhando pela abertura de minha janela, mostrando o enxame de moscas, suspenso, balançando-se no ar no centro do quarto, arremessando-se de lado a lado, subindo e descendo, lançando sombras ligeiras como se fossem manchas na parede oposta ao brilho do sol; A atlética matrona americana falando em público para multidões de ouvintes,  med.00400.187.jpg Machos, fêmeas, imigrantes, mestiços, a abundância, a individualidade dos Estados, cada um com suas qualidades — os fazedores de dinheiro, Fábricas, máquinas, as forças mecânicas, o guindaste, a alavanca, a roldana, todas as certezas, A certeza de espaço, aumento, liberdade, futuro, No espaço as espórades, as ilhas espalhadas, as estrelas — em solo firme, as terras, minhas terras, Ó terras! Todas tão amadas por mim — o que sois (independentemente do que sois), eu as cito ao acaso nestas canções, integro-as a elas, o que quer que sejam, Caminhando para o sul, eu grito, com asas que se agitam morosamente, ao lado de miríades de gaivotas preparando-se para o inverno, ao longo da costa da Flórida, Em outras paragens excitantes, as margens do Rio Arkansas, o Rio Grande, o Nueces, o Brazos, o Tombigbee, o Rio Vermelho, o Saskatchawan ou o Osage, eu com as águas da fonte rindo, pulando e correndo, Para o Norte, nas areias, em alguma baía rasa do Paumanok, eu com grupos de garças brancas andando sobre as poças d'agua para encontrar minhocas e plantas aquáticas, Retirando-me, cantando em triunfo, o rei das aves, superando o anúncio do corvo, por diversão — e eu cantando em triunfo. O bando migrante de patos selvagens descendo no outono para se refrescar, o bando se alimentando, as sentinelas externas do bando fazendo seu turno com cabeças eretas, vigiando, revezadas por outras sentinelas de tempos em tempos — e eu revezando com os outros, Nas florestas canadenses o alce, grande como um boi, encurralado por caçadores, erguendo-se desesperadamente em suas patas traseiras e mergulhando com suas patas dianteiras, os cascos afiados como facas — e eu, mergulhando sobre os caçadores, encurralado e desesperado, Em Mannahatta, ruas, cais, navios, armazéns e os incontáveis operários trabalhando nas oficinas, E eu também de Mannahatta, cantando isso — e não menos em mim do que no todo de Mannahatta, Cantando a canção Desses, de minhas terras sempre unidas — meu corpo não é mais inevitavelmente unido do que elas, parte a parte, e composto de mil contribuições distintas numa só  med.00400.188.jpg identidade, não mais do que as minhas terras estão inevitavelmente unidas e feitas NUMA IDENTIDADE; Nascimentos, climas, a relva das grandes planícies pastoris, Cidades, empregos, morte, animais, produtos, guerra, bem e mal — esses sou eu, Esses fornecendo, em todas as suas particularidades, a velha feuillage para mim e para a América, como posso fazer menos que passar-lhes a chave da união, de passar-te o mesmo? Quem quer que sejas! Como posso oferecer-te algo além de folhas divinas, para que tu te tornes aceitável como eu sou? O que posso fazer senão, como aqui cantando, convidar-te para que colhas os incomparáveis buquês da feuillage destes Estados?

Uma canção de alegrias

Ó compor a mais jubilosa canção! Repleta de música — repleta de virilidade, de feminilidade, de infância! Repleta de operários em seus empregos comuns, repleta de grãos e de árvores. Ó pelas vozes dos animais — Ó pela agilidade e pelo equilíbrio dos peixes! Ó pelo gotejar da chuva em uma canção! Ó pelo brilho do sol e o movimento das ondas em uma canção! Ó alegria de meu espírito — que está livre — ele se lança como um raio! Não é o suficiente possuir este globo e algum tempo, Possuirei milhares de globos e todo o tempo. Ó as alegrias do engenheiro! De ir com a locomotiva! De ouvir o sopro do vapor, o apito alegre, o assobio do vapor, a locomotiva ridente! Avançando sem resistência pelo trilho, em alta velocidade na distância. Ó jubiloso passeio sobre os campos e as montanhas! As folhas e as flores da mais comum das ervas daninhas, a tranqüilidade fresca e úmida da floresta,  med.00400.189.jpg O odor intenso da terra ao amanhecer e durante toda a tarde. Ó prazeres dos cavaleiros e das amazonas! A sela, o galope, a pressão sobre o assento, o sereno acariciando os ouvidos e os cabelos. Ó alegrias do bombeiro! Ouço as sirenes na calada da noite, Ouço os sinos, os gritos, passo pela multidão, corro! A visão das chamas enlouqueceu-me de prazer. Ó alegria do lutador forte e moreno, sobressaindo-se bem no centro da arena em perfeitas condições, consciente de sua força, sedento por encontrar seu oponente. Ó alegria daquela vasta e poderosa compaixão que apenas a alma humana é capaz de gerar e oferecer em fluxos contínuos e ilimitados. Ó alegria da mãe! A atenção, a resistência, o amor precioso, a angústia, a vida cedida pacientemente. Ó alegria do aumento, do crescimento, da recuperação, A alegria de acalmar e pacificar, a alegria do acordo e da harmonia. Ó retornar ao lugar em que nasci, Ouvir os pássaros cantarem uma vez mais, Perambular em volta da casa e pelo celeiro e cruzando os campos mais uma vez, E através do pomar e ao longo das picadas antigas mais uma vez. Ó ter sido criado nas baías, lagoas, riachos ou ao longo da costa, Continuar ali e trabalhar ali toda a minha vida, O cheiro salgado e a maresia, a praia, as ervas marítimas expostas na água rasa, O trabalho do pescador, o daquele que pesca enguias e do que pesca mariscos; Eu venho com meu ancinho e minha pá de marisco, venho com meu arpão de enguia, Está na hora da vazante da maré? Reúno-me ao grupo de cavadores de marisco nos pântanos, Eu me divirto e trabalho com eles, brinco no meu trabalho com a índole de um jovem;  med.00400.190.jpg No inverno, levo meu balde de enguia e minha lança de enguia e viajo a pé sobre o gelo — tenho um pequeno machado com o qual faço buracos no gelo, Contempla-me bem vestido indo adiante alegremente ou retornando à tarde, com a minha descendência de rapazes fortes me acompanhando, Minha descendência de rapazes crescidos e não tão crescidos, que não adoram estar com outras pessoas tanto quanto adoram estar comigo, De dia trabalham comigo e à noite dormem comigo. Em outra ocasião, quando o clima está quente, em um barco, recolho as armadilhas de lagosta que estavam submergidas com o peso de pedras pesadas, (sei onde ficam as bóias,) Ó doçura da manhã do quinto mês sobre as águas quando estou remando pouco antes do amanhecer em direção às bóias, Puxo obliquamente as armadilhas de vime, as lagostas verde-escuras estão desesperadas, mexendo suas garras, e quando eu as tiro da água, coloco cavilhas de madeira nas juntas de suas pinças, Vou para todos os lugares, uns após os outros, e depois remo de volta para a praia, Lá, dentro de um enorme caldeirão com água fervente, as lagostas deverão ser fervidas até que sua coloração se torne escarlate. Outras vezes, pescando cavalas, Vorazes, loucas pelo anzol, próximas da superfície, elas parecem povoar as águas, milhas afora; Outra vez pescando bodião na baía de Chesapeake, é minha uma das faces morenas da tripulação; Outra vez puxando para fora da água a enchova em Paumanok, apóio-me no peso de meu corpo, Meu pé esquerdo está sobre a amurada, meu braço direito lança para longe os rolos de corda fina, Sob os meus olhos o movimento rápido e o arrojo de cinqüenta outros barcos leves, meus companheiros. Ó navegando nos rios, A viagem de descida pelo St. Lawrence, o cenário soberbo, os barcos a vapor, A navegação dos navios, as Mil Ilhas, as balsas de madeira ocasionais e os balseiros com seus longos e pesados remos de impulsão,  med.00400.191.jpg As pequenas cabanas sobre as balsas, e as nuvens de fumaça que delas sobem quando os balseiros cozinham o jantar à noite. (Ó algo pernicioso e medonho! Algo distante de uma vida frágil e respeitosa! Algo não testado! Algo em um transe! Algo que se desatou das âncoras e vai avançando livremente.) Ó trabalhar nas minas ou forjando o aço, Na fundição de peças, a fundição ela mesma, o teto rude e alto, o espaço amplo e sombrio, A fornalha, o líquido quente entornado e corrente. Ó recapitular as alegrias do soldado! Sentir a presença de um corajoso oficial de comando — sentir a sua compaixão! Testemunhar a sua calma — ser aquecido pelos raios de seu sorriso! Ir para a batalha — ouvir o toque das cornetas e a batida dos tambores! Ouvir o som da artilharia — enxergar o brilho das baionetas e os canos dos mosquetes sob o sol! Contemplar os homens que caem e morrem sem reclamar! Sentir o gosto selvagem do sangue — ser tão diabólico! Tripudiar sobre os ferimentos e as mortes do inimigo. Ó alegrias do baleeiro! Eu faço meu velho cruzeiro novamente! Sinto o movimento do navio sob mim, sinto as brisas do Oceano Atlântico a me refrescar, Ouço uma vez mais o grito que desce do mastro central, baleia à vista! Novamente jogo o cordame e vou observar com os outros — nós descemos, loucos de excitação, Salto para dentro do bote baixado, remamos na direção de nossa presa, Aproximamo-nos dissimulados e em silêncio, vejo a massa montanhosa, letárgica, se aquecendo, Vejo o arpoador de pé, vejo a arma lançada de seu braço vigoroso; Ó de repente uma vez mais em alto mar a baleia ferida pára, depois nada para barlavento, reboca-me, Novamente eu a vejo subir para respirar, remamos para perto dela outra vez, Vejo quando uma lança atirada atravessa a sua lateral, acertando-a com profundidade, sendo virada dentro do ferimento,  med.00400.192.jpg Novamente nós nos afastamos, vejo-a remexer-se outra vez, a vida a está deixando rapidamente, Quando ela se ergue, espirra sangue, vejo-a nadar em círculos cada vez menores, cortando a água com movimentos ligeiros, vejo-a morrer, Ela dá um salto convulsivo no centro do círculo e então cai estirada na espuma sangrenta. Ó antiga virilidade em mim, minha mais nobre alegria! Meus filhos e netos, meus cabelos brancos e minha barba, Minha largueza, minha calma, minha majestade, nessa longa jornada de minha vida. Ó amadurecida alegria da feminilidade! Ó felicidade afinal! Tenho mais de oitenta anos de idade, sou a mãe mais venerável, Como a minha mente é lúcida — como todas as pessoas querem se aproximar de mim, Que atrações há maiores do que essas? O que floresce mais do que a juventude? Que beleza é essa que desce sobre mim e se ergue de meu ser? Ó alegrias do orador! Encher o peito, fazer soar o trovão da própria voz de seu tórax e sua garganta, Fazer com que as pessoas se enfureçam, chorem, odeiem, tenham desejos, conheçam a si mesmas, Liderar a América — subjugar a América com uma grande língua. Ó alegria de minha alma apoiando-se em si mesma, recebendo identidade por meio da matéria e amando-a, observando suas características e absorvendo-as, Minha alma refletida de volta para mim a partir delas, da visão, da audição, do tato, da razão, da articulação, da comparação, da memória, e tudo o mais, A vida real dos meus sentidos e da minha carne transcendendo os meus sentidos e a minha carne, Meu corpo feito de elementos materiais, minha visão dada através de meus olhos materiais, Está provado para mim, muito além de qualquer sofisma, que não são meus olhos materiais que finalmente enxergam,  med.00400.193.jpg Nem é meu corpo material que finalmente ama, anda, ri, grita, abraça, procria. Ó alegrias do fazendeiro! O de Ohio, o de Illinois, o de Wisconsin, o do Canadá, o de Iwoa, o de Kansas, o de Missouri, o de Oregon, as alegrias de todos eles! Erguer-se no raiar do dia e avançar lepidamente para trabalhar, Arar a terra no outono para que haja colheitas no inverno, Arar a terra na primavera para a plantação do milho, Preparar os pomares, enxertar as árvores, juntar as maçãs no outono. Ó banhar-me na piscina ou num bom lugar do litoral. Espirrar a água! Andar com os tornozelos dentro da água, ou correr nu pela praia. Ó perceber o espaço! A plenitude de todas as coisas, a inexistência das fronteiras, Emergir e ser do céu, do sol e da lua e das nuvens que voam, ser um com eles. Ó a alegria de ser homem! De não me submeter servilmente a ninguém, não acatar a ninguém, a nenhum tirano conhecido ou desconhecido, Andar com uma postura ereta, com um passo elástico e cadenciado, Lançar olhares intensamente calmos ou com olhos faiscantes, Falar com uma voz sonora e cheia, de dentro de um peito largo, Confrontar com a sua personalidade todas as outras personalidades da terra. Conheces acaso as excelentes alegrias da juventude? Alegrias dos companheiros queridos que têm palavras agradáveis e faces sorridentes? Alegria do dia do raio de luz feliz, alegria das brincadeiras amplas e arejadas? Alegria da música suave, alegria do salão de festas e dos dançarinos? Alegria do banquete farto, da bebedeira homérica? E ainda assim, ó minha alma suprema! Conheces acaso os prazeres da reflexão? Alegrias do coração livre e solitário, do coração brando e desalentado?  med.00400.194.jpg Alegrias da caminhada solitária, do espírito humilde e contudo orgulhoso, o sofrimento e a luta, Os momentos de agonia, os de êxtase, alegrias dos solenes devaneios de dia e de noite? Alegrias do pensamento sobre a Morte, sobre as grandes dimensões de Tempo e Espaço? Alegrias proféticas de melhores e mais elevados ideais de amor, a esposa divina, o companheiro doce, eterno e perfeito? Alegrias todas tuas, ser imortal, alegrias que são dignas de ti, ó alma. Ó enquanto eu viver para reinar sobre a vida e não para ser um escravo, Para abraçar a vida como um poderoso conquistador, Sem fumos, sem tédio, sem novas reclamações ou críticas desdenhosas, Para essas leis orgulhosas do ar, da água e do solo que atestam que minha alma interior é impregnável, E que nada que esteja fora de minha consciência jamais poderá me comandar. Pois não canto apenas pelas alegrias da vida, repito — mas também pela alegria da morte! O belo toque da Morte, que acalma e entorpece por alguns momentos, por tantas razões, Descarto o meu corpo como se fosse um excremento para que seja queimado ou para que se torne pó, ou seja enterrado, O meu corpo verdadeiro, sem dúvida, fica comigo para a vida que se dá em outras esferas, Meu corpo evacuado, nada mais dele é meu, retorna para a purificação, para outras cerimônias, no eterno ciclo da terra. Ó atrair mais do que pela atração! Como isso funciona não sei — ainda assim contemplo! Esse algo que não obedece a coisa qualquer, Ele é ofensivo, nunca defensivo — e contudo que estupendo magnetismo. Ó luta contra grandes disparidades, o enfrentamento de inimigos sem temor! Estar totalmente só perante eles e compreender o quanto se é capaz de suportar!  med.00400.195.jpg Estar face a face com a rivalidade, a tortura, a prisão, o ódio popular! Subir ao cadafalso, avançar para a mordaça das armas com perfeita indiferença! Ser, realmente, um Deus! Ó navegar para o mar em um navio! Deixar para trás esta terra firme insuportável, Deixar essa mesmice cansativa das ruas, das calçadas e das casas, Deixar-te, ó terra sólida e inamovível, e ingressar em um navio, E navegar, navegar, navegar! Ó transformar a vida daqui em diante em um poema de novas alegrias! Dançar, bater palmas, exultar, bradar, pular, saltar, rolar, flutuar! Ser um marinheiro do mundo, preso a todos os portos, Ser um navio eu mesmo (enxergar de fato essas velas que abro para o sol e para o vento), Um barco ligeiro e dilatado, cheio de ricas palavras, cheio de alegrias.

Canção do grande machado

1

Tem forma de uma arma nua e descorada, Sua cabeça foi tirada das entranhas maternas, Sua carne é de madeira, seus ossos de metal, com um único membro e um lábio somente, Folha azul acinzentada, dilatada no fogo da forja, e o cabo produzido do que já foi semente, Está posto sobre a relva e, bem ao meio, Descansa, como também serve de esteio. Formas poderosas e atributos de formas poderosas, permutas masculinas, visões e sons, Longo e sortido comboio de um emblema, afago musical, Dedos de um organista pulando em staccato sobre as teclas de um grande órgão.
 med.00400.196.jpg

2

Bem-vindas são todas as terras do planeta, cada uma com seu tipo, Bem-vindas são as terras dos pinheiros e dos carvalhos, Bem-vindas são as terras dos limões e dos figos, Bem-vindas são as terras do ouro, Bem-vindas são as terras do trigo e do milho, bem-vindas as terras das uvas, Bem-vindas as terras do açúcar e do arroz, Bem-vindas as terras do algodão, bem-vindas aquelas da batata- branca e da batata-doce, Bem-vindos são as montanhas, os vales, as areias, as florestas, os prados, Bem-vindos as ricas margens dos rios, os planaltos, as clareiras, Bem-vindas as imensuráveis terras de pastagem, bem-vindos os solos férteis dos pomares, a fibra do linho, o mel, o cânhamo; Bem-vindas, com o mesmo entusiasmo, as terras menos produtivas, Terras ricas tal como as do ouro ou as do trigo e as das frutas, Terras das minas, terras de metais viris e bem ocultos, Terras de carvão, cobre, chumbo, estanho, zinco, Terras do ferro — terras onde se forja o machado.

3

A tora na pilha de madeira, o machado sobre ela, A cabana selvática, a videira sobre o portão, o espaço limpo para o plantio de um jardim, O gotejar irregular da água caída das folhas depois que a tempestade se acalma, Os gemidos a intervalos, o pensamento no mar, O pensamento nos navios atingidos pela tempestade que faz com que o timão vire ao extremo e com que os mastros sejam arrancados, A afeição pelas madeiras imensas com que são feitas as casas e os celeiros antigos, A lembrança de uma história publicada ou narrada, a viagem de um empreendimento de homens, famílias, bens, O desembarque e a fundação de uma nova cidade, A viagem daqueles que encontraram a Nova Inglaterra e a fundaram, o início que se deu em qualquer lugar, As colonizações do Arkansas, do Colorado, de Ottawa, de Willamette, O progresso lento, a comida escassa, o machado, o rifle, os sacos carregados; A beleza de todas as pessoas aventureiras e ousadas,  med.00400.197.jpg A beleza dos jovens lenhadores e dos lenhadores maduros, com suas faces claras e barbadas, A beleza da independência, a partida, ações que perduram, O desprezo da América por estátuas e cerimônias, a impaciência sem limites para com as restrições, O afrouxamento do caráter, a insinuação por meio de tipos aleatórios, a solidificação; O açougueiro no matadouro, as mãos a bordo das escunas e corvetas, o balseiro, o pioneiro, Os lenhadores no seu campo de inverno, o amanhecer na floresta, listras de neve nos galhos das árvores, a quebra de um deles de quando em quando. O som alegre e claro da voz de alguém, a canção feliz, a vida natural nas florestas, o dia de trabalho forte, O brilho da fogueira à noite, o gosto doce do jantar, a conversa, a cama feita de ramos de árvores e de pele de urso; O construtor de casas trabalhando nas cidades ou em qualquer parte, A preparação da madeira: ajustar, riscar, serrar, entalhar, O levantamento das vigas, o encaixe em suas posições, a sua regularização, A colocação dos caibros verticais pelas cavilhas nos encaixes, de acordo com a preparação, As batidas de marreta e de martelo, a postura dos trabalhadores, seus membros curvados, Dobrando-se, levantando-se, montando sobre as vigas, espetando alfinetes, presos aos postes com fivelas, Um braço em torno da placa de madeira, o outro braço esgrimindo o machado, Os homens no chão pressionando as tábuas para que sejam pregadas, Suas posturas fazendo com que suas armas desçam em seus coldres, Os ecos soando através dos prédios vazios; O imenso armazém sendo construído na cidade, em estágio adiantado, Os seis homens responsáveis pelo vigamento, dois no meio e dois em cada ponta, carregando com cuidado em seus ombros uma pesada treliça para montar um sistema de vigas entrelaçadas, A enorme fila de pedreiros com espátulas em suas mãos direitas, erguendo rapidamente a comprida parede lateral, duzentos pés de um lado a outro, A subida e descida das costas flexíveis, o ruído contínuo das espátulas batendo nos tijolos,  med.00400.198.jpg Um após o outro, cada tijolo é colocado mecanicamente pelos homens em seus devidos lugares e assentado com um soco do cabo das espátulas, As pilhas de materiais, a argamassa nas tábuas de argamassa e o constante abastecimento feito pelo responsável do cocho; Os marceneiros fazendo longarinas no pátio da obra, as filas lotadas de bem crescidos aprendizes, O balanço de seus machados, que vão tirando pequenos quadrados de um tronco, até que ele assuma a forma de um mastro, O estalo rápido e enérgico do metal que atinge obliquamente o pinheiro, Os pedacinhos de madeira que voam em grandes flocos e lascas, O movimento dos jovens braços morenos e dos quadris em suas roupas frouxas, O construtor de embarcadouros, pontes, cais, sacadas, flutuadores, diques de proteção contra as águas do mar; O bombeiro da cidade, o fogo que irrompe subitamente no quarteirão próximo e repleto de gente, Os carros de bombeiro chegando, os gritos roucos, os passos ágei e arriscados, O comando forte por meio dos megafones, as quedas na linha de incêndio, os braços que sobem e descem forçando a água, Os jatos azuis e brancos, finos, espasmódicos, a aproximação difícil dos ganchos e das escadas para o seu trabalho, A queda e o corte dos materiais condutores, ou através do próprio chão de tábuas quando o fogo arde embaixo dele, A multidão com seus rostos brilhantes assistindo a tudo, o clarão e as sombras densas que se seguem; O forjador em sua fornalha e aquele que manipula o ferro logo após, Aquele que faz os machados grandes e pequenos, e o soldador e o montador, O selecionador assoprando o metal frio e testando a qualidade de corte da lâmina com seu dedão, Aquele que faz o acabamento no cabo e o prende firmemente ao bocal; As procissões sombrias dos retratos dos usuários do passado também, Os primeiros mecânicos, os pacientes, os arquitetos e engenheiros, Os longínquos edifícios assírios e os edifícios de Mizra, Os litores romanos precedendo os cônsules, Os antigos guerreiros europeus com o seu machado em combate, O braço erguido, o barulho das pancadas nas cabeças com capacete,  med.00400.199.jpg O lamento de morte, a queda de um corpo flácido, a correria dos amigos e inimigos para o local da queda, O cerco aos vassalos revoltosos determinados a obter sua liberdade, As ameaças para que se rendam, as baterias sobre os portões do castelo, o armistício e as negociações, O saque de uma antiga cidade em seu tempo, O estouro dos mercenários e fanáticos entrando, desordenadamente e em tumulto, O bramido, as chamas, o sangue, a embriaguez, a loucura, Os bens livremente roubados das casas e dos templos, os gritos das mulheres agarradas por bandidos, A malícia e a gatunagem dos agregados do exército, homens correndo, idosos desaparecendo, O inferno da guerra, as crueldades das religiões, A lista de todos os feitos executivos e as palavras justas e injustas, O poder da personalidade justa ou injusta.

4

Músculo e coragem para sempre! Aquilo que dá vigor à vida dá vigor também à morte, E a morte faz avançar tanto quanto a vida faz avançar, E o futuro não é mais incerto do que o presente, Pois a aspereza da terra e do homem encerra o mesmo tanto de delicadeza da terra e do homem, E nada perdura, senão as qualidades pessoais. O que pensas que resiste ao tempo? Julgas que uma grande cidade dura para sempre? Ou um Estado industrial produtivo? Ou uma bem elaborada constituição? Ou os navios mais bem construídos? Ou os hotéis de granito e ferro? Ou qualquer chef-d'oeuvres da engenharia, fortes, armamentos? Fora! Nada disso deve ser cultivado com afeto, Eles cumprem o seu momento, os dançarinos dançam, os músicos tocam para eles, O espetáculo passa, que tudo tenha a sua performance boa o suficiente, é claro, Tudo vai muito bem até que surge um clarão de desafio.  med.00400.200.jpg Uma grande cidade é aquela que contém os melhores homens e mulheres, Se ela só tiver algumas cabanas rotas ainda assim é ela a maior cidade do mundo inteiro.

5

Uma grande cidade não está situada onde estão instalados ancoradouros, docas, indústrias, depósitos de produção apenas, Nem é o lugar em que a todo momento se dá boas-vindas aos novos moradores ou onde se levanta a âncora dos que se vão, Nem é o lugar dos mais altos e mais caros edifícios ou das lojas em que se vendem os produtos do resto do mundo, Nem é o lugar das melhores livrarias e escolas, nem o lugar em que há muito dinheiro, Nem o local de maior concentração populacional. Onde a cidade se ergue com a raça mais vigorosa de oradores e bardos, Onde a cidade se ergue sendo amada por eles e os ama em retorno e os compreende, Onde não há monumentos erigidos para heróis, mas para homenagear as palavras e os feitos comuns, Onde a frugalidade predomina e onde a prudência está em seu lugar, Onde os homens e as mulheres pensam com tranqüilidade sobre as leis, Onde não há escravos, nem mestres de escravos, Onde a populaça se ergue de uma vez contra a audácia infinita das autoridades eleitas, Onde homens e mulheres furiosos se derramam como o assobio da morte derrama as suas ondas arrebatadoras e incontroláveis, Onde a autoridade externa vem depois da autoridade interna que a precede, Onde os cidadãos são sempre a cabeça e o ideal, e Presidente, Prefeito, Governador e tudo mais, são agentes de cobrança, Onde as crianças aprendem a ser a lei para si mesmas e depender de si mesmas, Onde a equanimidade é ilustrada em obras, Onde as especulações sobre a alma são encorajadas, Onde as mulheres andam nos passeios públicos e nas ruas com os mesmos direitos que os homens, Onde elas entram na assembléia pública e se sentam nos mesmos lugares que os homens;  med.00400.201.jpg Onde a cidade dos amigos mais leais se ergue, Onde a cidade da castidade dos sexos se ergue, Onde a cidade dos pais mais saudáveis se ergue, Onde a cidade das mães com os melhores corpos se ergue, Ali se ergue a maior das cidades.

6

Quão miseráveis são os argumentos perante um feito desafiador! Como a florescência dos materiais da cidade murcha se comparada com o olhar de um homem ou de uma mulher! Tudo espera e passa automaticamente até que um ser forte apareça; Um ser forte é a prova da raça e da habilidade do universo, Quando ele ou ela aparecem o que é material se intimida, Cessa a disputa na alma, Os velhos costumes e as frases são confrontados, rejeitados ou descartados. O que são agora os teus ganhos financeiros? O que podem eles fazer agora? O que é agora a tua respeitabilidade? O que é a tua teologia, instrução, sociedade, tradições, estatutos, agora? Onde estão agora as tuas zombarias sobre o ser? Onde estão as tuas críticas sobre a alma agora?

7

Uma terra estéril cobre os minérios, ali estão os que são tão quanto os demais, por todas as aparências proibidas, Há as minas, há os mineiros, A fornalha da forja está lá, a fundição está sendo feita, os ferreiros estão a postos com suas tenazes e marretas, Aquilo que sempre serviu e serve sempre está à mão. Então esse nada serviu melhor, serviu a tudo, Serviu ao grego sensível de linguajar fluente, e serviu àqueles que vieram muito antes dos gregos, Serviu para construir os edifícios que duraram muito mais que todos os demais, Serviu aos hebreus, aos persas e aos mais antigos industaneses, Serviu à construção da barragem no Mississippi, serviu àqueles  med.00400.202.jpg cujas relíquias permanecem na América Central, Serviu aos Templos álbicos, nas florestas ou nos planaltos, com colunas não entalhadas e os druidas, Serviu às rachas artificiais, vastas, altas, silenciosas, nas montanhas cobertas de neve da Escandinávia, Serviu àqueles que, em tempo imemorial, fizeram em paredes de granito pinturas primitivas do sol, da lua, das estrelas, dos navios, das ondas do oceano, Serviu aos caminhos de ataque dos godos, serviu às tribos pastoris e aos nômades, Serviu ao distante celta, serviu aos intrépidos piratas do Báltico, Serviu, antes que a quaisquer daqueles, aos homens veneráveis e inofensivos da Etiópia, Serviu para a fabricação dos lemes das galés do prazer e das galés de guerra, Serviu a todas as grandes obras na terra e a todas as grandes obras no mar, Para as idades medievais e antes das idades medievais, Serviu não apenas aos vivos daqueles dias e aos de agora, mas serviu também aos mortos.

8

Vejo o carrasco europeu, Ele está imóvel com sua máscara, tem pernas enormes e braços fortes e nus, Sustentando-se sobre um pesado machado. (Quem foi tua vítima mais recente, carrasco europeu? De quem é o sangue que está sobre ti, tão líquido e pegajoso?) Contemplo o claro pôr-do-sol dos mártires, Vejo pelos patíbulos os fantasmas que descem, Fantasmas de senhores mortos, damas nunca coroadas, ministros depostos, reis rejeitados, Rivais, traidores, chefes que caíram em desgraça e os demais. Vejo aqueles que em quaisquer terras morreram pela boa causa, A semente é escassa e, contudo, a plantação jamais há de ter fim (Penso em vós, ó reis estrangeiros! Ó padres, a plantação jamais há de ter fim.)  med.00400.203.jpg Vejo o sangue do machado sendo inteiramente lavado, Ambos, a lâmina e o cabo estão limpos, Eles não mais fazem jorrar o sangue dos nobres europeus, eles não mais pressionam os pescoços das rainhas. Vejo o carrasco retirar-se e tornar-se inútil, Vejo o patíbulo vazio e bolorento, não vejo mais qualquer machado sobre ele, Vejo o brasão poderoso e amigo do poder de minha própria raça, a mais nova, a mais ampla raça.

9

(América! Não ostento o meu amor por ti, Tenho o que tenho.) O machado salta! As florestas sólidas derramam seiva de expressões vocais, Elas caem, elas se erguem e criam a forma, Cabana, tenda, desembarcadouro, mapa, Mangual, charrua, alvião, pé-de-cabra, enxadão, Sarrafo, balaustrada, escora, lambril, batente, ripa, painel, espigão, Cidadela, forro, taverna, academia, órgão, casa de exposições, biblioteca, Sanefa de cortina, pilastra, sacada, janela, torre, varanda, Enxada, ancinho, forquilha, lápis, vagão, bastão, serra, plaina, marreta, cunha, manilha, Cadeira, barril, aro, mesa, portinhola, ventoinha, corrediço, chão, Caixa de ferramentas, baú, instrumento de corda, barco, moldura e o tudo o mais, Capitólio dos Estados e capitólio da nação dos Estados, Alas imponentes e longas nas avenidas, hospitais para órfãos ou para os pobres ou doentes, Barcos a vapor de Manhattan e veleiros velozes mapeando todos o mares. As formas surgem! Formas do uso dos machados de qualquer maneira e dos que os usam e de seus vizinhos, Cortadores de madeira e rebocadores dela para o Penobscot ou Kennebec,  med.00400.204.jpg Residentes em cabanas entre as montanhas californianas ou pelos pequenos lagos, ou em Colúmbia, Residentes do sul nas margens do Gila ou Rio Grande, encontros amigáveis, os personagens e a diversão, Residentes ao longo do St. Lawrence, ou no norte do Canadá, ou abaixo em Yellowstone, residentes das costas e do interior, Pescadores de foca, baleeiros, marinheiros do ártico rompendo as passagens através do gelo. As formas surgem! Formas de fábricas, arsenais, fundições, mercados, Formas de trilhos duplos das estradas de ferro, Formas dos dormentes das pontes, amplas estruturas, vigas mestras, arcos, Formas das frotas de barcaças, reboques, embarcações de lagos e canais, embarcações de rios, Estaleiros e diques secos ao longo dos mares do leste e do oeste e em muitas baías e aldeias, As sobrequilhas feitas de carvalho americano, as pranchas de pinho, os mastros, as raízes de lariço para os joelhos, Os navios singrando a seus destinos, as bancadas dos patíbulos, o trabalho dos homens ocupados fora e dentro da embarcação, As ferramentas esparramadas, a grande sonda e a pequena sonda, enxó, cavilha, linha, esquadro, cinzel, e plaina.

10

As formas surgem! A forma medida, serrada, içada, unida, manchada, A forma de caixão para que o morto ali jaza em seu sudário, A forma se manifestou nas cabeceiras, nas cabeceiras da cama, na cabeceira da cama da noiva, A forma da pequena gamela, a forma da parte debaixo das cadeiras de balanço, a forma do berço do bebê, A forma das tábuas do chão, o chão de tábuas para os pés dos dançarinos, A forma das tábuas da casa de família, a casa dos pais amigáveis e de seus filhos, A forma do telhado da casa do jovem feliz e sua esposa, o telhado sobre o jovem homem e a jovem mulher recém-casados, O telhado sobre o jantar feito com prazer pela esposa casta e  med.00400.205.jpg comido prazerosamente pelo casto marido, satisfeito após o seu dia de trabalho. As formas surgem! A forma do assento do prisioneiro na sala da corte e a dele ou a dela que se senta ali, A forma do balcão de bar no qual se apóiam o jovem bebedor de rum e o velho bebedor de rum, A forma dos degraus envergonhados e nervosos, pisados pelos passos sorrateiros, A forma do sofá dissimulado e o do insalubre casal adúltero, A forma da mesa de jogo com seu poder diabólico de ganhos e perdas, A forma do patíbulo para o assassino condenado e sentenciado, o assassino com a face desfigurada e braços manietados, O delegado próximo com seus assistentes, a multidão silenciosa de lábios brancos, a oscilação da corda. As formas surgem! Formas de portas concedendo muitas saídas e entradas, A porta que dá passagem ao amigo prejudicado, vermelho e apressado, A porta que admite boas e más notícias, A porta por onde o filho saiu de casa confiante e vaidoso, ausência, doente, alquebrado, com a inocência perdida, sem meios.

11

A forma dela surge, Ela menos protegida do que nunca e, contudo, mais bem protegida do que nunca, Os obscenos e sujos em meio aos quais ela anda não fazem dela obscena e suja, Ela conhece os pensamentos dos outros enquanto passa, nada está oculto para ela, Ela não é a menos atenciosa ou amigável para esse fim, Ela é a mais amada, não há exceção, ela não tem razões para temer e não teme, Juramentos, brigas, canções repletas de soluços, expressões obscenas, são inúteis para ela quando passa, Ela está em silêncio, tem o domínio de si, eles não a ofendem,  med.00400.206.jpg Ela os recebe tal qual a lei da Natureza os recebe, ela é forte, Ela também é uma lei da Natureza — não há lei mais forte do que ela.

12

Surgem as formas principais! Formas de Democracia total, resultado de séculos, Formas sempre projetando outras formas, Formas de cidades turbulentas de homens, Formas dos amigos e de anfitriões da terra inteira, Formas abraçando a terra e abraçadas à terra inteira.

Canção à exposição

1

(Ah, o pouco caso que se faz do trabalhador, Quão próximo de Deus o seu trabalho o mantém, O amoroso trabalhador através do espaço e do tempo.) Afinal, não se trata apenas de criar ou de fundar algo, Mas, talvez, seja o ato de trazer de longe aquilo que já foi fundado, Dar a ele nossa própria identidade, mediana, sem limite, livre, Contagiar a maioria bruta e apática com o fogo religioso vital, Não para repelir ou destruir tanto quanto para aceitar, fundir, reabilitar, Obedecer tanto quanto dirigir, seguir mais do que liderar, Essas também são as lições de nosso Mundo Novo; E se vê quão pouco há de Novo afinal, e quanto do Velho, Velho Mundo! Por muito e muito tempo a relva tem crescido, Por muito e muito tempo a chuva tem caído, Por muito e muito tempo a Terra tem girado.

2

Vem, Musa, emigra da Grécia e da Jônia, Cancela, por favor, aquelas imensas dívidas já tão pagas, Aquela questão de Tróia e a da ira de Aquiles, e Enéas, as andanças de Odisseu, Nos rochedos de teu níveo Parnaso está anunciado "mudamos" e "aluga-se", Repete-o em Jerusalém, coloca um sinal bem alto no portão de Jafa e no Monte Moriá,  med.00400.207.jpg Faze o mesmo nas paredes dos teus castelos alemães, franceses e espanhóis e nas coleções italianas, Para que se possa conhecer uma esfera melhor, mais nova e mais dinâmica, um domínio amplo, não experimentado te espera, e pede por ti.

3

Respondendo ao nosso apelo, Ou ainda mais à sua própria inclinação, longamente alimentada, Unida a uma força gravitacional irresistível, natural, Ela vem! Ouço o som produzido pelo roçar das suas vestes, Sinto o perfume da fragrância deliciosa de seu hálito, Registro o seu passo divino, seus olhos curiosos que se voltam, agitando-se, Nesta cena específica. A dama das damas! Posso crer, então, Que aqueles templos antigos e as esculturas clássicas não poderiam retê-la? Nem as sombras de Virgílio e de Dante, nem miríades de recordações, poemas, velhas associações que se magnetizam e a ela aderem? Mas que ela a todos abandonou — e aqui? Sim, se assim me permitirdes dizer, Eu, meus amigos, caso vós não o façais, posso vê-la em sua totalidade, A mesma alma imortal da expressão da terra, da atividade, da beleza, do heroísmo, Desde as suas evoluções até aqui, consolidando as camadas de seus temas antigos, Escondida e ocultada pelo hoje, mas alicerce do hoje, Acabada, finada através do tempo, sua voz pela fonte da inspiração, Silenciosa está a Esfinge egípcia de lábio quebrado; silenciosas estão as tumbas de séculos desconcertantes, Terminados para sempre os épicos dos soldados de capacete da Ásia, da Europa, encerrados os chamados primitivos pelas musas, O brado de Calíope para sempre abafado, Clio, Melpomene, Talia mortas, Acabados os ritmos faustosos de Una e Oriana, finda a busca pelo Santo Graal, Jerusalém? — um punhado de cinzas soprado pelo vento, extinta,  med.00400.208.jpg As linhas das tropas sombrias dos Cruzados à meia-noite, aceleradas ao amanhecer, Amadis, Tancredo, absolutamente terminados, Carlos Magno, Rolando, Oliver, findos, Palmerin, ogro, se foram, desapareceram as torres que as águas do Usk refletiam, Arthur desaparecido com todos os seus cavaleiros, Merlin e Lancelot e Galahad, todos terminados, dissolvidos inteiramente como uma exalação; Passados! Passados! Para nós, para sempre passado, aquele mundo que foi um dia tão poderoso, agora nulo, inanimado, mundo fantasmagórico, Mundo de encantos bordado, mundo estranho, com todas as suas lendas deslumbrantes, seus mitos, Seus reis e castelos orgulhosos, seus sacerdotes e senhores bélicos e damas elegantes, Passaram para a abóbada de sua câmara mortuária, enterrados com coroa e armadura, Proclamados nas páginas púrpuras de Shakespeare, E cantados nas rimas doces de Tennyson. Digo que vejo, meus amigos, se não vedes, a ilustre emigrante (embora a mesma de seus dias, transformada durante a considerável jornada percorrida), Vinda diretamente para este encontro, com vigor, abrindo um caminho para si mesma, avançando através da confusão, Pela batida surda das máquinas e pelo apito estridente e incessante do vapor, Nem um pouco engolida pelo cano de escoamento, gasômetros, fertilizantes artificiais, Sorrindo e contente com a intenção palpável de permanecer, Ela está aqui, instalada em meio aos utensílios da cozinha!

4

Mas esperai — será que me esqueço dos bons modos? É preciso apresentar a estranha (de fato, o que mais vivo para cantar?) para ti, Colúmbia; Em nome da liberdade, bem-vinda, imortal! Batei palmas, E, doravante, que sejam ambas minhas queridas irmãs.  med.00400.209.jpg Não temas, ó Musa! Pois recebes novos caminhos e novos dias em torno de ti, Confesso candidamente uma falsificação: falsa raça, de um novo aspecto, E contudo é ainda a mesma antiga raça humana, a mesma por dentro e por fora, As faces e os corações são os mesmos, os sentimentos são os mesmos, os mesmos anelos, O mesmo antigo amor, a beleza e o uso dos mesmos.

5

Não te culpamos, mundo antigo, nem de fato nos apartamos de ti, (Poderia o filho apartar-se de seu pai?) Voltando-nos para ver-te, vendo-te no cumprimento de teus deveres, de tuas grandezas, inclinando-te através das eras passadas, construindo, Construímos no dia de hoje. Mais poderosa do que as tumbas egípcias, Mais bela que os templos da Grécia e de Roma, Mais orgulhosa que a catedral espiralada de Milão com suas estátuas, Mais pitoresca que as relíquias dos Castelos do Reno, Planejamos hoje nos erguer para além de tudo isso, Nessa grande catedral de sagrada indústria, não no interior de uma tumba, Uma relíquia da vida por prática invenção. Como num sonho de olhos abertos, Enquanto canto, vejo-o levantar-se, examino-o minuciosamente e profetizo por fora e por dentro, Sua diversidade enfeixada na unidade. Em sua volta, um palácio mais alto, mais belo, maior que qualquer outro até então, Maravilha moderna da Terra, deixando para trás as sete maravilhas históricas, Subindo alto, andar sobre andar, com fachadas de aço e vidro, Embelezando o sol e o céu, colorido com as cores mais vivas, Bronze, lilás, ovo de pisco-de-peito-ruivo, marinho e carmesim, Sobre o telhado dourado de quem há de ostentar, abaixo do teu pendão de liberdade,  med.00400.210.jpg As bandeiras dos Estados e de todas as terras, Uma geração de altivos, belos, contudo inferiores palácios que há de se reunir. Em algum lugar no interior de seus muros há de surgir tudo aquilo que faz evoluir a vida humana para a perfeição, Testado, ensinado, avançado, visivelmente exibido. Não apenas todo o mundo das profissões, do comércio, dos produtos, Mas cada um dos trabalhadores do mundo aqui para ser representado. Aqui hás de registrar em uma operação graciosa, Em cada estado no movimento prático da turba, os rios da civilização, Os materiais aqui hão de ter suas formas alteradas diante de teus olhos como que por mágica, O algodão há de ser colhido em quase todos os campos, Há de ser seco, limpo, descaroçado, embalado, fiado e transformado em tecido diante de ti, Hás de ver mãos no trabalho em todos os antigos processos e em todos os novos processos, Hás de ver os diversos grãos e que a farinha é produzida e, então, o pão é cozido por padeiros, Hás de ver os metais brutos da Califórnia e de Nevada sendo processados repetidamente até tornarem-se barras preciosas, Hás de assistir ao impressor preparando os tipos, e aprender o que é um componedor, Hás de registrar, deslumbrado, a máquina impressora com seus cilindros girando, emitindo as folhas impressas rápida e consistentemente, A fotografia, o fac-símile, o relógio, o alfinete, o prego, hão de ser fabricados diante de ti. Dentro de um salão vasto e silencioso, um museu faustoso há de ensinar-te as lições infinitas dos minérios, Em outro, as plantas, as vegetações, hão de ser ilustradas — e, em outro, animais, a vida animal e sua evolução. Uma construção faustosa há de ser a casa da música, Outras haverá para outras artes — aprendendo as ciências, todas hão de estar aqui,  med.00400.211.jpg Nenhuma delas há de ser desprezada, todas hão de estar aqui honradas, apoiadas, exemplificadas.

6

(Essa, essa e mais essas, América, hão de ser tuas pirâmides e obeliscos, Teu Farol de Alexandria, jardins da Babilônia, Teu Templo de Olímpia.) O macho e a fêmea, muitos sem trabalhar, Hão de sempre confrontar aqui os muitos que trabalham, Com preciosos benefícios para ambos, glória para todos, Para ti, América, e para ti, Musa eterna. E aqui vós haveis de morar, poderosas Matronas! Nos vossos vastos estados, mais vastos que todo o mundo antigo, Ecoados por muito tempo, longos séculos por vir, Para o som de diferentes e mais orgulhosas canções, com temas mais fortes, Vida prática, pacífica, a vida do povo, as próprias pessoas, Soerguidas, iluminadas, banhadas no amor — elevadas, seguras na paz.

7

Fora com os temas de guerra! Fora com a própria guerra! Que ela saia de minha visão horrorizada para nunca mais retornar com aquele espetáculo de corpos apodrecidos e mutilados! Aquele inferno inacabado e o sangue a escorrer, adequados para os tigres selvagens ou para os lobos de língua de fora, não para os homens racionais, E nas campanhas regulares e rápidas da indústria, Com teus destemidos exércitos, engenharia, Tuas bandeiras de labor, tremulando com a brisa, Tuas cornetas soando altas e claras. Fora com o romance antigo! Fora com as novelas, as tramas e as peças teatrais de cortes estrangeiras, Fora com os versos de amor adocicados pela rima, as intrigas, os amores dos diletantes, Adequados somente para os banquetes noturnos em que dançarinos deslizam ao som de música tarde demais,  med.00400.212.jpg Os prazeres insalubres, as dissipações extravagantes de uns poucos, Com perfumes, calor e vinho, debaixo dos candeeiros estonteantes. Para vós, irmãs reverentes e sãs, Ergo uma voz por temas muito mais esplêndidos, por poetas e pela arte, Para exaltar o presente e o real, Para ensinar ao homem comum a glória de sua caminhada cotidiana e de seus negócios, Para cantar em canções que o exercício e a vida química jamais devem ser confundidos, Para o trabalho manual de cada um e de todos: arar, capinar, cavar, Plantar e cultivar a árvore, a amora, os vegetais, as flores, Garantindo que todo homem realmente faça algo e toda mulher também; Usar o martelo e a serra (serrar em direção ao veio ou com o corte transversal), Cultivar um turno para a carpintaria, o reboco, a pintura, Trabalhar como alfaiate, costureira, enfermeira, cavalariço, carregador, Inventar um pouco, algo engenhoso, para facilitar o trabalho de lavar roupas, a culinária, a limpeza, E não considerar que seja uma desgraça colocar a mão na massa nessas tarefas. Digo que te trago, Musa, para o aqui e para o agora, Todas as ocupações, deveres longínquos e próximos, Faina, faina salutar e suor, infinita, incessante, O antigo, os fardos de afazeres antigos, interesses, prazeres, A família, os parentes, as crianças, marido e esposa, Os confortos da casa, a casa em si e todos os seus pertences, A comida e os preparativos para preservá-la, a química usada para esse fim, Homens e mulheres de quaisquer tipos, médios, fortes, completos, de sangue doce, a personalidade perfeita e longeva, E o auxílio à sua vida presente, para que tenham saúde e felicidade e a preparação de sua alma, Para a vida eterna que virá. Com as conexões mais recentes, as obras, as interfaces do transporte mundial, A força do vapor, as grandes linhas expressas, o gás, o petróleo,  med.00400.213.jpg Esses triunfos de nosso tempo, o cabo delicado que atravessa o Atlântico, A estrada de ferro do Pacífico, o canal de Suez, o Monte Cenis e os túneis Gothard e Hoosac, a ponte do Brooklyn, Essa terra toda riscada de trilhos de aço, com as linhas dos navios a vapor cortando todos os mares, Nosso próprio traçado circular, o globo que eu mesmo trago.

8

E tu, América, Tua geração se elevando tão alto, e mais alta ainda estás tu, sobre todas as coisas, Com a vitória à tua esquerda e, à tua direita, a Lei; Tua União a tudo abraçando, fundindo, absorvendo, tolerando tudo, A ti, sempre a ti, eu canto. Tu, também tu, Mundo, Com toda a tua vasta geografia, múltipla, diferente, distante, Unida em tua redondeza, uma única e comum linguagem orbital, Um único indivisível destino para Todos. E pelos feitiços que tu outorgaste àqueles teus minis cuidadosamente, Eu aqui personifico e invoco meus temas, para fazê-los passar perante tu. Contempla, América! (e tu, inefável convidada e irmã!) Por ti vêm se agrupando as tuas águas e as tuas terras; Contempla! Teus campos e fazendas, tuas florestas e montanhas distantes, Como numa procissão se aproximam. Contempla o próprio mar, E no seio erguido de suas dimensões ilimitadas, os navios; Vê onde suas velas brancas, estufadas pelo vento, salpicam o verde e o azul, Vê os navios a vapor que vêm e vão, atracando ou deixando os portos, Vê, escurecidas e ondulantes, as compridas flâmulas feitas de fumaça. Contempla, no Oregon, ao longe, no norte e no oeste, Ou no Maine, ao longe no norte e no leste, teus alegres lenhadores,  med.00400.214.jpg Esgrimindo o dia inteiro seus machados. Contempla, nos lagos, teus timoneiros em seus postos, teus remadores, E como o pó se estorce sob aqueles braços musculosos! Ali, aos pés da fornalha, e ali, aos pés da bigorna, Contempla os teus robustos ferreiros manejando seus malhos, Com o braço erguido tão sólido, com o braço erguido que se vira e cai com prazeroso estrépito, Qual comoção de risos. Registra o espírito da invenção em toda parte, tuas patentes repentinas, Tuas oficinas incessantes, fundições, erguidas ou se erguendo, Contempla, das chaminés, o modo como o fluxo das altas chamas sobe. Registra tuas fazendas intermináveis, norte, sul, Teus estados que são teus filhos ricos, no leste e no oeste, Os produtos variados de Ohio, da Pensilvânia, do Missouri, da Geórgia, do Texas e dos demais Estados, Tuas plantações ilimitadas, a relva, o trigo, o açúcar, o óleo, o milho, o arroz, o cânhamo e o lúpulo. Todos os teus celeiros repletos, o infinito trem de carga e o armazém transbordante, Tuas uvas amadurecidas em tuas vinhas, as maçãs em teus pomares, Tua madeira incalculável, carne bovina, carne suína, batatas, carvão, ouro e prata, O inexaurível ferro de tuas minas. Tudo teu, ó sagrada União! Navios, fazendas, lojas, celeiros, fábricas, minas, Cidade e Estado, Norte, Sul, cada item e o acúmulo deles, A ti dedicamos, Mãe respeitável! Protetora absoluta, tu! Bastião de tudo! Bem sabemos que enquanto tu concedes a cada um e a todos generosa como Deus), Sem ti, nem todos nem cada um, nem terra, nem casa, Nem navio, nem mina, nem este dia pode ser garantido, Nem coisa alguma, nem dia algum pode ser garantido.
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9

E tu, Emblema que tremula sobre tudo! Beleza delicada, uma palavra para ti (poderá ser salutar), Recorda que nem sempre estiveste aqui, tal como agora, tão confortavelmente soberana, Em circunstâncias outras, diferentes, já te encontrei, ó Bandeira, Não tão bem aprumada e inteira, renovadamente viçosa em tuas dobras de seda, sem mancha qualquer, Já te vi em pano grosseiro, em farrapos e pendente de uma haste lascada, Ou abraçada ao peito de pelos negros de algum jovem cujas mãos denunciam desespero, No centro de uma luta selvagem, de vida e morte, luta travada por longo período, Ao som das trovoadas dos canhões e das imprecações e dos gemidos e brados, e o estampido agudo das salvas de tiros de rifles, E as massas de soldados que avançam como demônios selvagens emergentes e as vidas arriscadas como se fossem nada, E teus poucos sobreviventes horrendos pela sujeira, a fumaça e o sangue coagulado, Em teu nome, minha bela, e para que agora pudesses brincar em segurança cá em cima, Vi muitos homens bons que entregaram suas vidas. Agora e aqui são estes, doravante em paz, todos teus, ó Bandeira! E aqui e doravante por ti, ó Musa universal! E tu por eles! E aqui e doravante, ó União, todo o trabalho e todos os trabalhadores são teus! Nenhum separado de ti — de agora em diante apenas um, nós e tu, (Pois o sangue dos filhos, o que é senão o próprio sangue da mãe? E vidas e trabalhos, o que são afinal senão as estradas para a fé e para a morte?) Quando ensaiamos nossa riqueza imensurável, é por ti, querida Mãe, Que possuímos tudo isso, e muito disso hoje é indissolúvel em ti; Não enxergues nosso canto, nosso espetáculo, apenas como uma forma de faturamento bruto ou lucro — é tudo por ti, a alma que está em ti, elétrica, espiritual! Nossas fazendas, invenções, plantações, nós as possuímos em ti! Cidades e Estados em ti! Nossa liberdade toda está em ti, nossas próprias vidas estão em ti!
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Canção da sequóia

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Uma canção da Califórnia, Uma profecia e uma dissimulação, um pensamento imponderável para se respirar como se respira o ar, Um coro de Dríades desvanecendo, partindo, ou Hamadríades partindo, Uma voz gigante, decisiva, murmurante, fora da terra e do céu, Voz da poderosa árvore moribunda na densa floresta de sequóias. Adeus, meus irmãos! Adeus, ó terra e céu, adeus, águas próximas, Meu tempo chegou ao fim, meu término está aqui. Ao longo da costa do norte, Logo ao sair do litoral repleto de rochedos e cavernas, No ar salino do mar no interior de Mendocino, Tendo o marulho das ondas por acompanhamento baixo e rouco, Com o estampido dos golpes dos machados, como se estivessem sendo musicalmente dirigidos por braços fortes, Rasgada em profundidade pelas lâminas afiadas dos machados, lá na floresta densa das sequóias, Ouvi a árvore poderosa cantar o seu canto de morte. Os lenhadores não ouviram, as barracas do acampamento não ecoaram, Os condutores de ouvido aguçado e os maquinistas não ouviram Quando os espíritos da floresta vieram de seu refúgio de mil anos para também cantar o refrão, Mas em minha alma a tudo ouvi. O murmúrio que se eleva de suas milhares de folhas, E a partir de sua copa, elevando-se a duzentos pés de altura, De seu tronco firme e de seus galhos, de sua casca com um pé de espessura, Aquele canto das estações e do tempo, canto que não era apenas do passado, mas do futuro. Tu, vida não revelada de mim, E todos vós, prazeres inocentes e veneráveis,  med.00400.217.jpg Vida perene e robusta de mim com seus prazeres, em meio à chuva e sob muitos sóis de verão, E as neves brancas e a noite e os ventos selvagens; Ó grandes, pacientes e ásperas alegrias, os prazeres fortes de minha alma desprezados pelo homem (Pois sabei que carrego uma alma adequada a mim, também tenho consciência, identidade, E todas as rochas e montanhas têm, e toda a Terra.) Alegrias da vida se adequando a mim e aos meus irmãos, Nosso tempo chegou ao fim. Não nos rendemos com pesar, irmãos majestosos, Nós que de modo grandioso vivemos nosso tempo; Com o calmo contentamento da Natureza, com imenso e tácito deleite, Acolhemos com alegria aqueles que forjamos no passado, E entregamo-lhes o campo. Por eles predissemos longamente, Por uma raça mais esplêndida, eles também, grandiosamente, vivem o seu tempo, Por eles renunciamos, neles seremos os reis da floresta! Neles estarão esses céus e esses ares, os picos dessas montanhas, Shasta, Nevadas, Esses imensos precipícios, essa amplitude, esses vales, o longínquo Yosemite, Para estarmos neles absorvidos, assimilados. Então, para um esforço mais elevado, Ainda mais orgulhoso, mais extático se ergueu o canto, Como se os herdeiros, as divindades do Oeste, Unindo-se à língua mestra, tomassem parte do coro. Não abatida em virtude dos fetiches da Ásia, Nem vermelha pelo antigo matadouro dinástico da Europa, (Área de assassinatos e tramóias dos tronos que ainda guarda o cheiro da guerra e dos patíbulos por toda parte.) Mas vindo das longas e inofensivas agonias da Natureza, construídas pacificamente desde então, Estas terras virgens, terras do litoral Ocidental, Para o novo o homem culminando, para ti, o novo império,  med.00400.218.jpg Tu, que por longo tempo foste prometido, a ti nós juramos, a ti homenageamos. Vós, volições profundas e ocultas, Tu, virilidade espiritual, propósito de tudo, equilibrada em ti está a lei que manda dar e não receber, Tu, feminilidade divina, amante e fonte de tudo, procedência da vida e do amor e de tudo o que deriva da vida e do amor, Tu, essência moral invisível de todos os vastos elementos da América, (era após era trabalhando para a morte tanto quanto para a vida.) Tu, que algumas vezes conhecida, quase sempre anônima, de fato moldou e deu forma ao Novo Mundo, ajustando-o ao Tempo e ao Espaço, Tu, vontade nacional camuflada jazendo em teus abismos, recôndita mas sempre alerta, Tu, propósitos do presente e do passado, persistentemente perseguidos, talvez inconscientes de si mesmos, Inamovível perante todos os erros do passado, que para ti são apenas perturbações da superfície; Vós, germens vitais, universais, imorredouros, subjacentes a todos os credos e às artes e aos estatutos e às literaturas, Erguei aqui vossos lares para sempre, estabelecei-vos aqui, nessas áreas inteiras, terras do litoral Ocidental, Nós juramos por ti e te homenageamos. Quanto ao homem de ti, de tua raça característica, Que ele possa aqui crescer robusto, doce, gigantesco, que se eleve a uma altura proporcional à da Natureza, Possa ele aqui escalar os espaços vastos, puros e abertos, não cercados por paredes ou telhados, Que ele possa, aqui, rir com a tempestade ou com o sol, ser alegre, habituar-se pacientemente, Possa ele aqui concentrar-se em si mesmo, desdobrar-se (não se espelhar em fórmulas alheias), e aqui sentir o seu tempo, Cair na hora devida, socorrer, esquecido ao final, Desaparecer, servir. Assim, no litoral norte, Ao eco do chamado do condutor e do tinido das correntes, ao som  med.00400.219.jpg da música dos machados dos lenhadores, A queda do tronco e dos galhos, o estrondo, o grito agudo abafado, o gemido, Tais palavras articuladas pela sequóia, como vozes extáticas, antigas e sussurrantes. Os cem anos de duração, as dríades invisíveis, cantando, retirando-se, Deixando todos os seus esconderijos nas florestas e nas montanhas Dos limites da cachoeira até Wahsatch, ou de longe, em Idaho ou Utah, Até às divindades modernas, de agora em diante cedendo seu lugar, O coral e as indicações, a visão da humanidade vindoura, as colonizações, tudo isso aparecendo, Nas florestas de Mendocino percebi.

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O carro alegórico cintilante e dourado da Califórnia, O repentino e deslumbrante drama, as terras amplas e ensolaradas, O longo e diversificado avanço do som de Puget até o sul do Colorado, Terras banhadas por um ar mais doce, mais raro, mais saudável, vales e despenhadeiros de montanhas, Os campos da natureza preparados longamente e sem cultivo, a química silenciosa e cíclica, As vagarosas e estáticas eras laboriosas, a superfície desocupada dando frutos, a riqueza dos minérios se formando por baixo; Finalmente, o Novo chegando, assumindo, tomando posse, Uma raça populosa e dinâmica colonizando e se organizando por toda parte, Navios atracando, vindos de todas as regiões do mundo, e partindo para o mundo todo, Para a Índia e a China e a Austrália e mil ilhas paradisíacas do Oceano Pacífico, Cidades populosas, as mais recentes invenções, os barcos a vapor nos rios, as estradas de ferro, passando pelas muitas fazendas florescentes, com suas máquinas, E a lã e o trigo e a uva, e as escavações de ouro amarelo.

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Mas há mais em ti do que isso, terras do litoral oeste, (Esses são apenas os meios, os implementos, o solo de sustentação.) Vejo em ti, certo de que virá, a promessa de mil anos, até agora deferida,  med.00400.220.jpg Promessa para ser cumprida, nosso tipo comum, a raça. A nova sociedade afinal, harmonizada à natureza, No homem teu, mais do que nos picos de tuas montanhas ou nas firmes árvores imperiais, Na mulher tua, mais, muito mais do que em todo o teu ouro ou em tuas vinhas, e até mesmo no teu ar vital. Renovação que chega, para um novo mundo de fato, mas que por muito tempo foi preparado, Vejo o gênio da modernidade, filho do real e do ideal, Limpando o solo para a ampla humanidade, a América verdadeira, herdeira de um passado tão grandioso, Para edificar um futuro ainda maior.

Uma canção para as profissões

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Uma canção para as profissões! No trabalho dos motores e no comércio e nas labutas dos campos, encontro os desenvolvimentos, E encontro os significados eternos, Operários e operárias! Se todos os aprendizados práticos e ornamentais que há em mim fossem bem apresentados, qual seria o resultado de sua soma? Se eu fosse como o professor-mentor, o proprietário caridoso, o sábio estadista, qual seria a síntese de meus conhecimentos? Se eu fosse como o patrão que te emprega e te paga, ficarias satisfeito? O erudito, o virtuoso, o benevolente e o que se utiliza dos termos costumeiros, Um homem como eu jamais se utiliza deles. Não sou servo nem sou mestre, Meu preço não é tão alto nem tão pequeno, terei o que é meu, independentemente daqueles que gostarem de mim, Estarei igualado a ti e tu estarás igualado a mim. Se trabalhares em uma oficina, trabalharei próximo de ti, serei o mais próximo de ti na mesma oficina,  med.00400.221.jpg Se deres presentes para teu irmão ou para teu amigo mais querido, quererei presentes tão bons quanto os de teu irmão ou eu amigo mais caro, Se teu amante, marido, esposa, for acolhido de dia ou à noite, também devo receber pessoalmente o mesmo acolhimento, Se te tornares um degenerado, criminoso, doente, tornar-me-ei o mesmo por amor a ti, Se te lembrares de teus feitos estúpidos e ilegais, pensas que não poderei me lembrar de meus próprios feitos estúpidos e ilegais? Se à mesa farreares, farrearei no lado oposto da mesa, Se encontrares um estranho nas ruas e o amares ou a amares, sabe que também me encontro com estranhos na rua com freqüência e os amo. Por que pensas assim sobre ti mesmo? És tu aquele que ao pensar sobre si mesmo se diminui? Acaso consideras o Presidente alguém maior do que tu és? Ou pensas que o rico seja alguém melhor do que tu? Ou que o erudito é mais sábio que tu? (Porque tens os cabelos grisalhos ou espinhas no rosto, ou porque certa vez te embriagaste ou agiste como um ladrão, Ou pelo fato de estares doente ou reumático, ou por seres uma prostituta, Ou porque és frígida ou impotente, ou porque não és acadêmico e nunca viste teu nome impresso, Pensas, então, que és de algum modo menos imortal?)

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Almas de homens e mulheres! Não vos chamo de invisíveis, inaudíveis, intocáveis e incapazes de tocar, Não sois vós aqueles sobre quem vou debater pró e contra, não procuro estabelecer se estais vivas ou não, Só eu possuo a revelação de quem sois, se ninguém mais possui. Adulto, adolescente e bebê, deste país e de todos os países, dentro de habitações ou vivendo ao ar livre, vejo um tanto quanto o outro, E tudo o mais que esteja por trás ou através deles. A esposa, e ela não é em nada menor do que o marido,  med.00400.222.jpg A filha, e ela é tão boa quanto o filho. A mãe, e ela é exatamente tal qual o pai. Geração de ignorantes e pobres, garotos aprendizes de negócios, Jovens camaradas trabalhando em fazendas e velhos camaradas trabalhando em fazendas, Marinheiros, mercadores, guardas costeiros, imigrantes, Todos esses vejo, porém mais próximos e mais distantes vejo, Ninguém há de me escapar e ninguém há de querer me escapar. Trago o que muito necessitas e, contudo, sempre tens, Não o dinheiro, namorados, roupa, comida, erudição, mas algo igualmente bom, Não envio um agente ou um médium, não ofereço representações de valor, mas ofereço o próprio valor. Há algo que vem agora e perpetuamente, Não é aquilo que está impresso, preconizado, discutido, pois se trata de algo que se furta à discussão e à impressão, Não é algo para ser colocado em um livro, não está neste livro, É para ti, não importando quem sejas, não está mais distante de ti do que a tua capacidade de escutar e de ver, Está indicado pelos mais próximos, os mais comuns, os mais prontos, é sempre provocado por eles. Talvez leias em muitas línguas e nada tenhas lido sobre isso, Talvez leias a mensagem presidencial e nada leias sobre isso ali, Nada há sobre isso nos relatórios do Departamento de Estado ou do Tesouro Nacional, ou nos jornais diários ou semanais, Ou no censo ou nos dados do imposto de renda, nos preços em circulação, ou em quaisquer contas de aplicação em ações.

3

O Sol e os astros que flutuam no espaço, O planeta Terra com sua forma de maçã e nós sobre a sua superfície, com certeza a força que está neles é algo grandioso, Desconheço o poder que está neles, sei apenas que é grandioso e que é a própria felicidade, E que o significado implícito de estarmos aqui não é uma especulação ou uma frase de efeito ou reconnoissance,  med.00400.223.jpg E não é algo que possa por sorte terminar bem para nós, e pela falta de sorte terá de ser um fracasso para nós, E não é algo que possa ser ainda retratado em uma determinada contingência. A luz e a sombra, o curioso sentido do corpo e da identidade, a ganância que com perfeita complacência devora todas as coisas, O infinito orgulho e a expansão do homem, alegrias e tristezas indizíveis, O assombro que está implícito na vida de cada outro ser que se admira, e o assombro que enche cada minuto do tempo para sempre, O que tens considerado sobre tudo isso, companheiro? Tens reconhecido tudo isso para os teus negócios ou para o teu trabalho no campo? Ou para os lucros de tua loja? Ou para que alcances uma posição social? Ou para preencher a necessidade de lazer de um cavalheiro ou de uma dama? Já percebeste que a paisagem tomou substância e forma para que pudesse ser pintada em um quadro? Ou que os homens e as mulheres poderiam se tornar tema de um livro ou ser cantados em uma canção? Ou que a atração da gravidade e as grandes leis e harmoniosas combinações e os fluidos do ar são os sujeitos das savanas? Ou a terra marrom e o mar azul para os mapas e cartas de navegação? Ou as estrelas para que sejam inseridas em constelações e recebam nomes elegantes? Ou que o crescimento das sementes se dá para os gráficos evolutivos da agricultura, ou a própria agricultura existe para esse fim? Velhas instituições, estas artes, bibliotecas, lendas, coleções e as práticas desenvolvidas nas manufaturas, iremos nós cotá-las tão alto? Iremos cotar o nosso dinheiro e os nossos negócios tão alto? Não faço objeção, Atribuo a eles os mais altos valores — mas então, a uma criança nascida de uma mulher e de um homem atribuo um valor que vai além de toda a atribuição de valor. Julgamos ser grande a nossa União e que a nossa Constituição é grandiosa, Não digo que não sejam grandes e boas, pois são,  med.00400.224.jpg Passo os meus dias a amá-las tanto quanto tu as amas, Então estou apaixonado por ti e por todos os meus companheiros sobre a face da terra. Consideramos as bíblias e as religiões divinas — não digo que não sejam, Digo que todas elas cresceram a partir de ti e que ainda podem surgir de ti, Não são elas que geram a vida, tu és aquele que gera a vida, As folhas não nascem mais a partir das árvores (nem as árvores a partir da terra) do que as religiões nascem de ti.

4

A soma de toda a reverência conhecida coloco sobre ti, a despeito de quem sejas, O Presidente está lá na Casa Branca por ti; não estás aqui por ele, Os Secretários agem em seus Departamentos de Estado por ti, não ages tu aqui por eles, O Congresso se reúne a cada décimo segundo mês por ti, Leis, cortes, a formação dos Estados, as cartas constitucionais das cidades, a ida e a vinda do comércio e da correspondência, é tudo por ti. Inclinai-vos para ouvir, meus queridos catedráticos, Doutrinas, políticas e civilização emergem de vós, Esculturas e monumentos e qualquer coisa inscrita em qualquer parte é contada em vós, O âmago das histórias e das estatísticas por mais antigos que sejam seus registros está em vós neste momento e os mitos e as lendas também, Se não estivésseis respirando e andando aqui, onde esses registros estariam? Os mais famosos poemas seriam cinzas, orações e peças teatrais seriam vácuo. A arquitetura se resume naquilo que fazes a ela quando a observas, (Pensas que ela está nas pedras brancas ou cinzas? Ou que seja o resultado das linhas dos arcos e cornijas?) A música é aquilo que desperta de ti quando és estimulado por instrumentos,  med.00400.225.jpg Não são os violinos e as cornetas, não é o oboé e a percussão, nem a pauta musical do cantor barítono que canta sua doce romanza, nem a do coro masculino, nem a do coro feminino, Ela é mais próxima e mais distante do que todos eles.

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O conjunto reviverá? Poderá cada um ver os sinais do que é melhor ao se olhar no espelho? Haverá algo maior ou a mais? Sentam-se todos lá, contigo, com a alma mística e invisível? Estranha e dura é a verdade paradoxal que ofereço, Os objetos brutos e a alma invisível são um. Construção de casas, mensuração, serração de tábuas, Fundição de ferro, sopro de vidro, manufatura de pregos, moldagem do cobre, montagem de telhados de folhas-de-flandres, revestimento de paredes com sarrafos, Acoplamento de navios, construção de docas, preparação de peixes, pavimentação de calçadas feita por lajeadores, A bomba, o empilhador, o grande guincho, o forno de carvão e o forno de tijolos, As minas de carvão e tudo o que há lá embaixo, as lâmpadas na escuridão, os ecos, as canções, e que meditações, e que vastos pensamentos nativos olham através de faces enegrecidas, Trabalhos em ferro, fogos da forja nas montanhas ou ao longo dos rios, homens em torno sentindo a fundição com seus imensos pés-de-cabra, amálgama de metais preciosos, a bem-feita combinação dos metais preciosos, calcário, carvão, A fornalha explosiva e a fornalha de barro, o amálgama que salta do fundo da fundição no final, o engenho giratório, as barras troncudas de ferro-gusa, a forte e bem moldada barra de trilho para as estradas de ferro, Os trabalhos com óleo, os trabalhos com seda, os trabalhos com chumbo branco, as usinas de açúcar, as serras a vapor, os grandes moinhos e fábricas, O corte da pedra, a ornamentação bem-feita para as fachadas ou janelas ou a verga da porta, o malho, o cinzel dentado, o dedal para proteger o dedão,  med.00400.226.jpg A calafetagem de ferro, a caldeira de cimento fervente e o fogo sob a caldeira, O fardo de algodão, o gancho do estivador, a serra e o cavalete do serrador, o molde do moldador, a faca do açougueiro, a serra de gelo, e todo o trabalho feito com gelo, O trabalho e as ferramentas do armador, o fabricante de chave, o fabricante de velas, o fabricante de blocos, Mercadorias de gutta-percha, papel machê, tinturas, escovas, a fabricação de pincéis, implementos de vidraceiro, A caldeira para derreter cola e folhear, os ornamentos do estilista, o vaso de decantação e os vidros, as guias de torno e o ferro liso, O furador e a correia de cotovelo, a medida de quartilho e a de quarto, o balcão e o banquinho, a caneta de pena ou de metal, a fabricação de todos os tipos de ferramentas cortantes, A cervejaria, a fermentação, o malte, as tinas, tudo o que é feito pelos fermentadores, os fabricantes de vinho, os fabricantes de vinagre, As roupas de couro, a fabricação de carruagens, a fabricação de caldeiras, a ação de torcer as cordas, a destilação, a pintura de sinais, a queima da cal, a colheita do algodão, a galvanização, a ação de estereotipar, As máquinas de aduela, as máquinas de aplainar, as máquinas de colher, as máquinas de arar, as máquinas de aparar, os vagões do vapor, O carreto do carreteiro, o ônibus, o pesado carroção, A pirotecnia, a queima de fogos de artifício coloridos à noite, as figuras decorativas no céu e os jorros, O bife e a banca do açougueiro, o matadouro do açougueiro, o açougueiro em suas roupas de abate, O cercado de porcos vivos, o martelo de abate, o gancho de porco, a banheira de escaldo, o ato de estripar, o cutelo de açougueiro, o malho do embalador e a grande quantidade de trabalho no inverno para embalar a carne de porco, Os esforços para obter farinha, a moagem do trigo, do centeio, do milho, do arroz, os barris e as metades do barril e os quartos de barril, as barcaças lotadas, as pilhas altas nos embarcadouros e nos cais, Os homens e o trabalho dos homens nas balsas, nos trilhos de trem, a guarda costeira, os barcos pesqueiros, os canais;  med.00400.227.jpg A rotina das horas de tua vida ou da vida de qualquer homem, a oficina, o quintal, a loja, a fábrica, Essas demonstrações, todas próximas de ti durante o dia e à noite — homens trabalhando! Não importa quem sejas, és a vida diária! Nisso e neles, a parte dos mais pesados — nisso e neles muito mais do que estimaste (e muito menos também), Neles as realidades para ti e para mim, neles os poemas para ti para mim, Neles, tu não estás — tu e tua alma contêm todas as coisas, além das estimativas, Neles o bom desenvolvimento — neles todos os temas, sinais, possibilidades. Não afirmo que aquilo que enxergas além seja fútil, não te aconselho a parar, Não digo que as lideranças que julgaste grandes não o sejam, Mas afirmo que nenhuma delas conduz para algo maior do que esses aqui.

6

Procurarás na distância? Certamente retornarás, ao final, Nas coisas mais próximas de ti encontras o melhor, ou algo tão bom quanto o melhor, Nas pessoas mais próximas de ti acharás as mais doces, as mais fortes, as mais amáveis, Felicidade, conhecimento, não em outras paragens, mas aqui, nã no futuro, mas hoje, No primeiro homem que vês ou em que tocas, sempre no amigo, no irmão, no vizinho mais próximo — e na mulher, na mãe, na irmã, na esposa, Os gostos populares e os empregos ganhando a precedência nos poemas e em toda parte, Vós, operárias e operários destes Estados, tendo a vossa própria vida forte e divina, E tudo o mais dando lugar a homens e mulheres como vós. Quando os salmos cantam em vez do cantor, Quando o texto prega em vez do pregador, Quando o púlpito desce e avança em vez do cinzelador que cinzelou  med.00400.228.jpg o móvel de apoio, Quando posso tocar o corpo dos livros de dia e de noite e quando eles também tocam meu corpo, Quando uma universidade convence tanto quanto uma mulher e uma criança sonolentas convencem, Quando o ouro cunhado na câmara mortuária sorri como a filha do vigia, Quando as procurações estão jogadas em cadeiras da oposição e se tornam minhas companheiras amistosas, Tenciono alcançá-las com minha mão e fazer delas o que faço de homens e mulheres como vós.

Uma canção sobre a Terra que gira

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Uma canção sobre a Terra que gira e sobre as palavras que estão nela, Julgavas que as palavras fossem aquelas? Aquelas linhas retas? Aquelas curvas, ângulos, pontos? Não, aquelas não são as palavras, as palavras substanciais estão no solo e no mar, Estão no ar, estão em ti. Pensavas que aquelas eram as palavras, aqueles sons deliciosos que saem das bocas de teus amigos? Não, as palavras reais são mais deliciosas que as deles. Corpos humanos são palavras, miríades de palavras, bem formado, natural, feliz, Todas as partes habilitadas, ativas, receptivas, sem demonstrar vergonha e sem a necessidade da vergonha.) Ar, terra, água, fogo — essas são palavras, Eu mesmo sou uma palavra junto delas — minhas qualidades se interpenetram com as delas — meu nome não significa nada para elas, Ainda que ele fosse pronunciado em três mil línguas, o que o ar, a terra, a água, o fogo podem saber sobre o meu nome?  med.00400.229.jpg Uma presença saudável, um gesto amistoso ou de comando, são palavras, ditados, significados, O charme que está nos simples olhares de certos homens e mulheres são ditos e significados também. A engenhosidade das almas está nessas inaudíveis pal do que as palavras audíveis. Aperfeiçoamento é uma das palavras da Terra, A Terra não se atrasa nem se apressa, Ela tem latentes em si todos os atributos, o potencial de crescimento, os efeitos, desde o princípio, Ela não tem apenas metade da beleza, defeitos e excrescência aparecem tanto quanto a perfeição. A Terra não segura seus dons, ela é generosa o bastante, As verdades da Terra estão guardadas para sempre, mas tampouco se encontram escondidas, Elas são calmas, sutis, não podem ser transmitidas por meio de impressos, Elas se encontram saturadas em todas as coisas, transmitindo-se com vontade impulsiva, Transmitindo um sentimento e um convite, eu me expresso e me expresso ainda mais, Não falo, contudo se não me ouves para que sirvo? Para suportar, para aperfeiçoar; na ausência disso, que utilidade tenho? (Nasce tu, nascei vós! Acaso apodrecereis o fruto que está aí, dentro de vós? Agachar-vos-eis e asfixiar-vos-eis aí dentro?) A Terra não discute, Não é patética, não cria tramas, Não grita, não se apressa, não procura persuadir, não ameaça, não faz promessas, Não discrimina, não comete falha concebível, Nada fecha, nada recusa, a ninguém exclui, Faz conta de todos os poderes, objetos, estados, não exclui ninguém.  med.00400.230.jpg A Terra não se expõe, nem recusa se expor, mostrar o que possui em suas entranhas, Nas entranhas estão os sons ostensivos, o coro augusto dos heróis, o gemido dos escravos, A persuasão dos amantes, as maldições, a palpitação dos moribundos, o riso dos jovens, o sotaque dos vendedores, Nas entranhas, essas palavras possessivas que nunca falham. Para os filhos da terra as palavras da grande mãe emudecida e eloqüente nunca falham, As palavras verdadeiras não falham, para o movimento elas não falham, para a reflexão elas não falham, Também o dia e a noite não falham, e a jornada que fazemos não falha. Das irmãs intermináveis, Dos incessantes cotilhões de irmãs, Das irmãs centrípetas e centrífugas, as irmãs mais velhas e as mais novas, A bela irmã que conhecemos dança com as demais. Com suas costas largas na direção de todos os que a contemplam, Com o fascínio da juventude e o fascínio da idade, Senta-se ela, aquela a quem amo tal como às demais, senta- seus olhos voltam-se para trás, Observa-a rapidamente quando se senta, sem convidar ninguém, sem negar ninguém, Segurando um espelho dia e noite, incansavelmente, diante de sua própria face. Vistas de perto ou vistas a distância, Aparecendo devidamente em público as vinte e quatro horas de cada dia, Devidamente se aproximam e passam com seus companheiros o companheiro, Não olham com uma expressão própria, mas com a expressão daqueles que estão com elas, Das expressões das crianças ou das mulheres ou dos homens,  med.00400.231.jpg Da expressão aberta dos animais ou das coisas inanimadas, Das paisagens ou das águas ou das refinadas aparições no céu, Das nossas expressões, minha e tua, retribuindo-as com fidelidade, Todos os dias aparecendo em público, sem falha, mas jamais duas vezes com as mesmas companhias. Abraçando o homem, abraçando todos, continua a Terra nos trezentos e sessenta e cinco dias sem oferecer resistência, girando em torno do Sol; Abraçando todos, acalmando-os, oferecendo auxílio, seguindo de perto os trezentos e sessenta e cinco que sucedem os primeiros, tão certos e necessários quanto eles. Tropeçando continuamente, nada temendo, Brilho do Sol, tempestade, frio, calor, para sempre resistindo, passando, carregando, Herdando ainda a realização e a determinação da alma, Penetrando e dividindo ainda o fluido vácuo que a circunda e se sobrepõe a ela, Nenhuma dificuldade retarda o seu avanço, nenhuma âncora a ancora, em rocha alguma se afia, Rápida, alegre, satisfeita, não despojada, nada perdendo, Pronta para prestar contas estritas a todos, a qualquer momento, O navio divino navega pelo mar divino.

2

Quem quer que sejas! Movimento e reflexão são especialmente por ti, O navio divino navega pelo mar divino por ti. Quem quer que sejas! És ele ou ela por quem a terra é sólida e líquida, Tu és ele ou ela por quem o sol e a lua penduram-se no céu, Para ninguém além de ti são o presente e o passado, Para ninguém além de ti é a imortalidade. Cada homem para si e cada mulher para si, é a palavra do passado e do presente e a verdadeira palavra da imortalidade; Ninguém pode aprender pelo outro — ninguém, Ninguém pode crescer pelo outro — ninguém. A canção é para o cantor, e retorna principalmente para ele,  med.00400.232.jpg O ensinamento é para o professor e retorna principalmente para ele, O assassinato é para o assassino e retorna principalmente para ele, O roubo é para o ladrão e retorna principalmente para ele, O amor é para o amante e retorna principalmente para ele, O presente é para aquele que dá e retorna principalmente para ele — isso não pode falhar, A oração é para aquele que ora, a performance é para o ator e para a atriz, não para a audiência, E homem algum compreende qualquer grandeza ou bondade, exceto a sua própria ou as indicações delas.

3

Juro que a Terra será certamente completa para ele ou para ela que será completo, A Terra permanece carcomida ou alquebrada apenas para ele ou para ela que permanece alquebrado ou quebrado. Juro que não há grandeza ou poder que não possa emular aqueles que são da Terra, Não pode haver teoria de qualquer explicação, a não ser que ela corrobore com a teoria da Terra, Nenhuma política, canção, religião, comportamento e tudo o mais podem ser explicados, exceto se comparados à amplitude da Terra, A menos que encare a exatidão, a vitalidade, a imparcialidade, a retitude da Terra. Juro que começo a ver o amor com espasmos mais doces do que aqueles que reagem ao amor, É aquilo que contém a si mesmo, que nunca convida e nunca renega. Juro que começo a ver pouco ou nada nas palavras audíveis, Tudo se funde na direção da exibição dos significados não ditos da Terra, Rumo àquele que canta as canções do corpo e das verdades da Terra, Rumo àquele que elabora os dicionários das palavras que a impressão não pode tocar. Juro que vejo o que é melhor do que contar o melhor, É sempre melhor deixar o melhor sem ser dito.  med.00400.233.jpg Quando decido contar o melhor, descubro que não posso, Minha língua é ineficaz em suas articulações, Minha respiração não será obediente aos seus órgãos, Torno-me um homem mudo. O melhor da Terra não pode ser dito de qualquer forma, tudo ou qualquer coisa é o melhor, Não é aquilo que imaginaste, é algo mais barato, mais fácil, mais próximo, As coisas não são soltas de onde estavam presas anteriormente, A Terra é tão positiva e direta quanto era antes, Fatos, religiões, aperfeiçoamentos, políticas, negócios são tão reais quanto antes, Mas a alma também é real, ela também é positiva e direta, Não foi a racionalidade, nem as provas que a estabeleceram, Um crescimento inegável a estabeleceu.

4

Esses também ecoam os tons da alma e as frases das almas, (Se eles não ecoaram as frases das almas, o que foram eles então? Se não fizeram referência a ti, em especial, o que foram eles?) Juro que nunca mais, de agora em diante, terei algo a ver com a fé que revela o melhor, Terei a ver apenas com aquela fé que deixa o melhor em segredo. Continuai a falar, faladores! Continuai a cantar, cantores! Cavai, moldai, empilhai as palavras da terra! Continuai a trabalhar, era após era, nada se perderá, Talvez ele tenha de esperar por longo tempo, mas certamente virá a ser usado. Quando os materiais estiverem todos preparados, os arquitetos hão de aparecer. Juro-te que os arquitetos hão de aparecer sem falta, Juro que te entenderão e te justificarão, O maior entre eles há de ser aquele que melhor te conhece e contém todos e é fiel a todos, Ele e os demais não te esquecerão, eles perceberão que tu não és nada menos do que eles, Hás de ser totalmente glorificado neles.
 med.00400.234.jpg

Juventude, dia, velhice e noite

Juventude, grande, vigorosa, amante — juventude cheia de graça, força, fascinação, Sabes que a Velhice pode vir após ti com a mesma graça, força e fascinação? Dia maduro e esplêndido — dia do sol imenso, ação, ambição, risada, A Noite vem a seguir com milhões de sóis, com o sono e a escuridão renovadora.
 med.00400.235.jpg

Aves de arribação

Canção do universal

1

Vem, disse a Musa, Canta para mim uma canção que poeta algum tenha cantado até hoje, Canta-me o universal. Nesta nossa terra vasta, Em meio à densidade imensurável e à escória, Guardado e seguro dentro do coração central, Aninha-se a semente da perfeição. Para cada vida uma porção, ou mais ou menos, Ninguém nasce sem que ela nasça, recôndita ou exposta, a semente está à espreita.

2

Contempla! A elevada ciência de olhos agudos, Como se de altos cumes, vigiando a modernidade, Emitisse sucessivas ordens absolutas. Contudo, mais uma vez contempla! A alma, acima de toda a ciência, Pois ela traz a história fundida como uma casca que envolve o globo, Para ela, todas as constelações rolam através do espaço. Em rotas espirais por entre longos desvios, (Como um navio que segue sempre alinhavando as águas do mar), Por ela o fluxo que vai de parcial a permanente, Por ela o real tende ao ideal.  med.00400.236.jpg Por ela a mística evolução, Não apenas a justificação do bem, o que chamamos de mal também se justifica. Saindo de trás de suas máscaras, não importando as conseqüências, Do enorme caule que se inflama, da arte e da malícia e das lágrimas, Emerge a saúde e a alegria, a alegria universal. Saindo do corpo volumoso, o mórbido e o superficial, Saindo da maioria ruim, as diversificadas, incontáveis fraudes dos homens e dos Estados, Elétrico, anti-séptico também, clivando e inundando tudo, Apenas o bom é universal.

3

Sobre a protuberância das montanhas, doença e tristeza, Um pássaro livre está sempre pairando, pairando, Alto no ar mais puro, no ar mais feliz. Das imperfeições das nuvens mais escuras, Atira sempre um raio de perfeita luz, Um brilho da glória celeste. Para o que pertence à moda, para a discórdia dos figurinos, Para o doido alarido da Babel, para as orgias ensurdecedoras, Ao final de cada bonança, uma explosão é ouvida, apenas ouvida, Vindos de alguma praia longínqua, os sons do coro derradeiro. Ó os olhos abençoados, os corações felizes, Que vêm, que conhecem o finíssimo fio condutor, Através do longo labirinto.

4

E tu, América, Pela culminação do esquema, pelo pensamento e pela realidade, Por esses (não por ti mesma) tu vieste. Tu também envolveste todos, Abraçando e conduzindo e acolhendo a todos, tu também caminhas por estradas largas e novas,  med.00400.237.jpg Tendendo ao ideal. As fés conhecidas de outras terras, as grandezas do passado, Não são para ti, pois são grandezas de ti mesma, Fés divinas e amplitudes, absorvendo compreendendo tudo, Todas apropriadas a todas. Todas, todas pela imortalidade, O amor, tal como a luz, silenciosamente envolve todos, Os aperfeiçoamentos da natureza abençoando todos, Os botões, frutos das eras, pomares divinos e certos, Formas, objetos, crescimentos, humanidades, amadurecendo para as imagens espirituais. Concede-me, ó Deus, que eu cante aquele pensamento, Dá-me, dá a ele ou a ela a quem amo essa fé insaciável, Em Tua imagem, tudo quanto guardares, não o negues a nós, A crença nos teus planos guardada no Tempo e no Espaço, Saúde, paz, salvação universal. Será um sonho? Não, mas a ausência dele é o sonho, E se ele falha o conhecimento e a riqueza da vida são apenas um sonho, E o mundo inteiro é apenas um sonho.

Pioneiros! Ó pioneiros!

Vinde, meus filhos de face corada, Segui unidos em fila, preparai as vossas armas, Tendes convosco as vossas pistolas? Tendes vós os machados de lâmina afiada? Pioneiros! Ó pioneiros! Não podemos nos demorar aqui, Devemos marchar, meus queridos, precisamos suportar o impacto do perigo, Somos de raças vigorosas, cheios de juventude, e todos os demais dependem de nós, Pioneiros! Ó pioneiros!  med.00400.238.jpg Ó vós, jovens, jovens do Oeste, Tão impacientes, tão ativos, cheios de orgulho viril e amizade, Vejo-vos claramente, jovens do Oeste, vejo-vos avançar com os que vão à frente, Pioneiros! Ó pioneiros! As raças antigas estancaram? Elas definham e terminam seu treinamento, cautelosamente, em terras de além-mar? Nós assumimos a tarefa eterna e o fardo e a lição, Pioneiros! Ó pioneiros! Todo o passado deixamos para trás, Nós emergimos sobre um mundo mais novo e poderoso, mundo variado, O mundo que capturamos é novo e forte, mundo de trabalho e de marcha, Pioneiros! Ó pioneiros! Nossos determinados destacamentos enviamos, Descendo os precipícios, através das gargantas, para o alto das íngremes montanhas, Conquistando, tomando posse, ousando, aventurando-nos na medida em que avançamos para o desconhecido, Pioneiros, ó pioneiros! Derrubamos florestas primitivas, Alcançamos as nascentes dos rios, incomodamos e perfuramos profundamente a entranha das minas, Pesquisamos a vasta superfÍcie, sublevamos os solos virgens, Pioneiros, ó pioneiros! Somos os homens do Colorado, Dos gigantescos picos, das grandes serras e dos altos platôs, Da mina e da ravina, das trilhas de caça chegamos, Pioneiros! Ó pioneiros! De Nebraska, de Arkansas, Raça do centro do país nós somos, do Missouri, com o sangue continental em nossas veias,  med.00400.239.jpg Todas as mãos dos companheiros aplaudindo, todos os do Sul, todos os do Norte, Pioneiros! Ó pioneiros! Ó raça incansável e irresistível! Ó amada raça em tudo! Ó meu peito arde de terno amor por todos! Ó eu choro e contudo exulto, estou embevecido de amor por todos, Pioneiros! Ó pioneiros! Ergue a poderosa mãe soberana, Agitando no alto a delicada senhora, sobre todas as senhoras estreladas (curvem-se todas as cabeças) Ergue a senhora guerreira e cheia de garras, inflexível, impassível, armada soberana, Pioneiros! Ó pioneiros! Vede, filhos meus, filhos resolutos, Aqueles enxames que avançam sobre a nossa retaguarda, jamais devemos ceder-lhes a vez ou hesitar, Eras passadas, fantasmagoricamente em milhões de rostos franzidos, às nossas costas urgindo, Pioneiros! Ó pioneiros! Avançam mais e mais as formações robustas, Sempre prontas para as conquistas, com as vagas dos mortos rapidamente preenchidas, Através da batalha, através da derrota, movendo-se ainda assim e nunca parando, Pioneiros! Ó pioneiros! Ó morrer em meio ao avanço! Há alguns entre nós que possam cair e morrer? A hora é chegada? Então, no calor da marcha nós, os mais capazes, morremos, e logo e com certeza somos substituídos, Pioneiros! Ó pioneiros! Todos os pulsos do mundo, Ao cair batem por nós, com a batida do movimento do Oeste, Solitários ou unidos, avançando constantemente para o front, tudo por nós,  med.00400.240.jpg Pioneiros! Ó pioneiros! Carros alegóricos variados com tudo o que a vida contém, Todas as formas e espetáculos, todos os operários em seu trabalho, Todos os homens do mar e os homens da terra, todos os mestres com seus escravos, Pioneiros! Ó pioneiros! Todos os infelizes que amam em silêncio, Todos os prisioneiros nas prisões, todos os bons e todos os maus, Todos os que se alegram, todos os que se entristecem, todos os que vivem, todos os que morrem, Pioneiros! Ó pioneiros! Eu também com minha alma e meu corpo, Nós, esse trio curioso, colhendo, andando sem rumo em nossa jornada, Através dessas praias, entre as sombras, com as aparições que nos apertam, Pioneiros! Ó pioneiros! Contemplai! O orbe que se atira como bola de boliche! Contemplai, os orbes irmãos em sua volta, todos esses sóis e planetas agrupados, Todos os dias fascinantes, todas as noites místicas com sonhos, Pioneiros! Ó pioneiros! Esses são nossos, eles estão conosco, Todos pelo trabalho primário de que se necessita, enquanto os seguidores embrionários aguardam mais atrás, Seguimos nós no rumo da procissão hodierna, abrindo as rotas para a jornada, Pioneiros! Ó pioneiros! Ó vós, filhas do Oeste! Ó vós, filhas jovens e mais velhas! Ó vós, mães, e vós, esposas! Nunca tereis de vos dividir, em nossas fileiras mover-vos-eis unidas, Pioneiros! Ó pioneiros! Trovadores latentes nas pradarias!  med.00400.241.jpg (Bardos amortalhados de outras terras, podeis descansar, fizestes vosso trabalho.) Logo ouço vossos gorjeios, logo vos levantareis e caminhareis no meio de nós, Pioneiros! Ó pioneiros! Não aos doces deleites, Não às almofadas e aos chinelos, não ao pacífico e ao estudioso, Não às amizades por interesses financeiros, não, para nós, a diversão dos domesticados, Pioneiros! Ó pioneiros! Os glutões festejadores festejam? Os corpulentos dorminhocos dormem? Eles trancam suas portas e passam o ferrolho? Ainda assim seja nossa a dieta dura, e o cobertor sobre o chão duro, Pioneiros! Ó pioneiros! A noite já caiu? Foi a viagem há pouco terminada muito fatigante? Paramos desencorajados balançando nossas cabeças na jornada? Contudo na hora que passou deixei-vos em vossas picadas para que pudésseis parar um pouco distraídos. Pioneiros! Ó pioneiros! Até ao som da trombeta, Ao longe, ao longe a alvorada chama! — ouvi! Quão alto e claro ouço-a soprar, Depressa! Para a vanguarda do exército! — depressa! Lançai-vospara os vossos postos, Pioneiros! Ó pioneiros!

Para ti

Quem quer que sejas, temo que estejas caminhando pelos caminhos dos sonhos, Temo que essas supostas realidades estão para derreter debaixo de teus pés e de tuas mãos, Agora mesmo os teus traços, alegrias, discurso, casa, negócios, maneiras,  med.00400.242.jpg problemas, loucuras, trajes, crimes se dissipam e fogem de ti, Teus verdadeiros corpo e alma aparecem diante de mim, Eles se destacam, além dos afazeres, além do comércio, oficinas, trabalho, fazendas, roupas, a casa, compras, vendas, refeições, bebidas, sofrimento, morte. Quem quer que sejas, agora eu imponho as minhas mãos sobre ti para que sejas meu poema, Sussurro com meus lábios, próximo ao teu ouvido, Tenho amado muitas mulheres e homens, mas amo-te mais do que qualquer um. Ó tenho sido demorado e bobo, Deveria ter ido diretamente ao teu encontro, há muito tempo, Não deveria ter segredado nada além de ti, não deveria ter cantado nada além de ti. Deixarei tudo para trás e virei e farei os hinos de ti, Ninguém te compreendeu até agora, mas eu te compreendi, Ninguém até agora fez justiça contigo, nem mesmo tu foste j imperfeição em ti, Todos querem te subjugar, sou o único que jamais consentirá em subjugar-te, Sou o único que não impõe sobre ti qualquer mestre, dono, apostador, Deus, a não ser aquele Deus que aguarda implícito em ti mesmo. Pintores pintam seus grupos numerosos, destacando entre todos a figura central, Da cabeça da figura central sai uma auréola de luz dourada, Mas pinto miríades de cabeças e nenhuma delas fica sem a sua auréola de luz dourada, De minhas mãos, do cérebro de todos os homens e mulheres ela brota, num eterno fluxo radiante. Ó eu poderia cantar tantas grandezas e glórias a teu respeito! Não sabes quem és, dormes sobre ti mesmo durante tua vida inteira, Tuas pálpebras têm estado fechadas a maior parte do tempo, Tudo o que fizeste já retorna em forma de escárnio, (Tua frugalidade, conhecimento, orações, se não retornam na forma de escárnio, que retorno eles têm?)  med.00400.243.jpg Tu não és o escárnio, Por trás dele e dentro dele vejo-te escondido, Procuro-te no lugar em que ninguém mais te procura, O silêncio, a escrivaninha, a noite, a rotina com que te acostumas, se esses te escondem de ti mesmo e dos outros, não te escondem de mim, O rosto barbeado, o olho inconstante, a compleição impura, se esses são obstáculos para os outros, não são obstáculos para mim, O adorno atrevido, a atitude deformada, a bebedeira, a cobiça, a morte prematura, tudo isso ponho de lado. Não há qualquer dom nos homens e nas mulheres que não se apresente em ti, Não há qualquer virtude, qualquer beleza no homem ou na mulher, que não seja tão boa quanto as que estão em ti, Não há garra nem resistência nos outros, que não sejam as mesmas que estão em ti, Nenhum prazer aguarda os demais que não seja igual ao prazer que te aguarda. Quanto a mim, nada concedo a ninguém exceto aquilo que cuidadosamente concedo a ti, Não canto as canções da glória de ninguém, nem a de Deus, antes de cantar as canções de tua glória. Quem quer que sejas! Reclame o que é teu a qualquer risco! Esses espetáculos do Leste e do Oeste são mansos comparados contigo, Esses imensos prados, esses rios intermináveis, tu és tão imenso e interminável quanto eles, Essas fúrias, elementos, tempestades, fenômenos da natureza, agonias de aparente dissolução, tu és o mestre ou a mestra sobre todos eles. No teu direito implícito de ser mestre ou mestra da natureza, dos elementos, da dor, da paixão, da dissolução. Os que não podem voar caem de teus tornozelos, encontras uma auto-suficiência infalível, Velho ou jovem, macho ou fêmea, rude, baixo, rejeitado pelos outros, o que quer que sejas proclama-o, Através do nascimento, da vida, da morte, do funeral, os meios são fornecidos, nada é escasso,  med.00400.244.jpg Através da raiva, das perdas, da ambição, da ignorância, do tédio, aquilo o que és toma sua forma.

França,

O 18º ano destes Estados

Um grande ano e local, Um áspero nativo rebelde dá um grito que se ouve na amplidão, para tocar o coração de sua mãe com maior intimidade do que ninguém jamais o fez. Caminhei pelas praias do meu mar do Leste, Ouvi sobre as ondas a pequena voz, Vi a criança divina que despertou tristemente gemendo, em meio ao troar do canhão, das imprecações, gritos, o barulho da queda dos edifícios, Não estava tão enojada com o sangue que corria pelas sarjetas, nem por causa dos corpos solitários, nem por aqueles que estavam empilhados, nem aqueles levados embora em carros de munição, Não estava tão desesperada em virtude da carnificina da morte — não estava tão chocada com a repetição de sons da artilharia. Pálido, silencioso, duro, o que poderia eu dizer àquela antiga retribuição? Poderia eu desejar que a humanidade fosse diferente? Poderia eu desejar que as pessoas fossem feitas de madeira e pedra? Ou que não houvesse justiça no destino e no tempo? Ó Liberdade! Consorte minha! Aqui também o esplendor, a metralha e o machado, ao reverso, para alcançá-los se houver necessidade, Aqui também o que, embora tenha sido por muito tempo sufocado, jamais poderá ser destruído, Aqui também o que poderia se erguer, finalmente, assassino e extático, Aqui também demandando a prestação completa de contas da vingança. Doravante sinalizo com esta saudação sobre o mar, E não nego aquele terrível nascimento vermelho e o batismo,  med.00400.245.jpg Mas lembra-te da pequena voz que ouvi gemendo e aguarda com perfeita confiança, não importa quanto tempo, E de hoje em diante, triste e convincente, mantenho a causa dada, para todas as terras, Envio estas palavras a Paris com meu amor, E imagino que alguns cantores de lá as compreenderão, Pois imagino que haja ainda música latente na França, torrentes de música, Ó já posso ouvir o azáfama dos instrumentos, eles logo estarão afogando todos quantos poderiam interrompê-los, Ó acredito que o vento do leste traz uma marcha triunfal e livre, Ele alcança este lado, ele me faz inflar de prazerosa loucura, Correrei para transpô-lo em palavras, para justificá-lo, E ainda cantarei uma canção para ti, ma femme.

O eu e o que é meu

O eu e o que é meu, sempre um ginasta, Para enfrentar o frio e o calor, para acertar no alvo com uma arma, para velejar um barco, para lidar com cavalos, para procriar filhos soberbos, Para falar com presteza e clareza, para sentir-me em casa entre pessoas comuns, E para mantermo-nos em posições terríveis na terra e no mar. Não por uma bordadeira, (Sempre haverá muitas bordadeiras, eu as acolho também), Mas pela fibra das coisas e pelos homens e mulheres inatos. Não para os ornamentos cinzelados, Mas para o cinzel com golpes livres, entalhando as cabeças e os membros de deuses abundantes e supremos, para que estes Estados possam vê-los andando e falando. Deixai-me ter o meu jeito próprio, Que outros promulguem as leis, eu não tomarei conhecimento delas, Que outros louvem os homens eminentes e levem a bandeira da paz, eu levarei a flâmula da agitação e do conflito,  med.00400.246.jpg Não louvo o homem eminente, estando em sua frente censuro aquele que se julga ter o mais alto valor. (Quem és tu? E quais são as culpas secretas de toda a tua vida? Ficarás de lado a tua vida? Cavocarás e conversarás a tua vida inteira? E quem és tu, segredando por hábito, anos, páginas, línguas, reminiscências, Inadvertido hoje de que não sabes como falar apropriadamente uma única palavra?) Que outros exterminem espécies, eu jamais extermino espécies, Eu as inicio por meio de leis incansáveis, tal como faz a natureza, continuamente novas e modernas. Nada concedo por dever, O que outros concedem por dever concedo na forma de impulsos vivos, (Devo doar as ações do coração como um dever?) Que outros disponham de questões, não disporei de nada, pois levanto questões irrespondíveis, Quem são esses que vejo e toco e o que se sabe sobre eles? Que tal esses desejos meus que me atraem para tão perto por meios frágeis diretos e indiretos? Dirijo-me ao mundo para desacreditar o julgamento de meus amigos, mas ouçam os meus inimigos, tal como eu mesmo faço, Encarrego-te de rejeitar para sempre aqueles que me exporiam, pois não posso me expor, Encarrego-te de que não haja teorias ou escolas fundadas a partir de mim, Encarrego-te de que deixes tudo livre, tal como eu deixei tudo livre. Após mim, perspectiva! Ó vejo que a vida não é curta, mas imensuravelmente longa, Ando pelo mundo, de agora em diante, casto, equilibrado, acordando cedo, um cultivador que tem constância, Em todas as horas o sêmen dos séculos e a imobilidade dos séculos. Devo seguir essas contínuas lições do ar, da água, da terra, Percebo que não tenho tempo a perder.
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Ano de meteoros

(1859-60)

Ano de meteoros! Ano de procriação! Eu capturaria em palavras a retrospectiva de alguns de teus feitos e sinais, Cantaria teu pleito para se tornar o décimo novo presidente, Eu cantaria a forma como um velho homem, alto, com cabelos brancos, que subiu ao patíbulo na Virgínia (Eu estava próximo, silencioso, de pé, com a boca fechada; testemunhei Estive bem próximo de ti, meu velho, quando frio e indiferente, mas tremendo com a idade e com teus ferimentos não curados, tu subiste ao patíbulo.) Eu cantaria em minha copiosa canção o teu recenseamento de lucros destes Estados, Os gráficos de população e os produtos, eu cantaria os teus navios com sua carga, Os orgulhosos navios pretos de Manhattan chegando, alguns cheios de imigrantes, alguns dos istmos com cargas de ouro, Canções daquilo cantaria, para todos os que vêem nesta direção eu daria as boas-vindas, E tu, eu cantaria, belo rapaz! Minhas boas-vindas para ti, jovem príncipe da Inglaterra! (Lembra-te de teu aparecimento em meio às multidões de Manhattan, quando passaste com teu cortejo de nobres? Lá, em meio à multidão, eu estava de pé e, com apego, fixei o meu olhar em ti.) Nem me esquecerei de cantar esta maravilha: navio que cruzou a minha baía, Bem moldado e sólido, o Great Eastern cruzou a minha baía, ele tinha seiscentos pés de comprimento, Seu movimento rápido, enquanto estava cercado de miríades de pequenas naus, não me esqueci de cantar; Nem o cometa que veio sem anúncio do norte, chamejante no firmamento, Nem a estranha e imensa procissão de meteoros brilhando e emitindo clarões sobre nossas cabeças, (Por um momento, por um momento longo, eles flutuaram com suas bolas de luz alienígena sobre as nossas cabeças, E depois partiram, caindo na escuridão da noite, e se foram.)  med.00400.248.jpg Esses tais, e os que são tão perfeitos quanto eles, eu canto — tomo as cintilações que eles emanam e com elas enfeito estas canções; Teus cantos, ó ano inteiramente matizado de bem e de mal — ano de presságios! Ano de cometas e meteoros efêmeros e estranhos! À medida que adejo sobre ti, apressadamente, para logo cair e passar, o que é este canto, O que sou eu mesmo, senão um de teus meteoros?

Com antecedentes

1

Com antecedentes, Com meus pais e minhas mães e o acúmulo das eras passadas, Com tudo aquilo que se não houvesse ocorrido eu não poderia estar aqui agora do modo que estou, Com Egito, Índia, Fenícia, Grécia e Roma, Com o celta, o escandinavo, o álbico e o saxão, Com as antigas aventuras marítimas, leis, artefatos, guerras e jornadas, Com o poeta, o escaldo, a saga, o mito e o oráculo, Com a venda de escravos, com os entusiastas, com o trovador, o cruzado e o monge, Com aqueles antigos continentes de onde viemos para este novo continente, Com os reinos decadentes e os reis que estão lá, Com os decadentes religiosos e sacerdotes, Com os pequenos litorais para os quais olhamos hoje, estando em nossos vastos litorais do presente, Com os anos incontáveis do passado, traçando-os até chegar aos nossos anos, Tu e eu chegamos — a América chegou e faz este ano, Este ano! Enviando a si mesma para frente, para os anos incontáveis que virão.

2

Ó mas não são os anos — sou eu, és tu, Nós tocamos todas as leis e contamos todos os antecedentes, Somos o escaldo, o oráculo, o monge e o cavaleiro, facilmente os incluímos em nós e mais,  med.00400.249.jpg Nós nos postamos em meio ao tempo, sem começo e sem fim, colocamo-nos em meio ao mal e ao bem, Tudo gira em nossa volta, há tanto breu quanto luz, O próprio sol gira com seu sistema planetário em nossa volta, O sol do sol, e o desse outro também, tudo gira em nossa volta. Quanto a mim (rasgado, tempestuoso, em meio a estes dias veementes), Tenho a idéia de todos, e sou todos e acredito em todos, Acredito que o materialismo é verdadeiro e que o espiritualismo é verdadeiro, não rejeito parte alguma. (Esqueci-me de alguma parte? Qualquer coisa no passado? Vem em busca de mim, quem quer que sejas e o que quer que sejas, até que eu te dê reconhecimento.) Respeito Assíria, China, Teutônia e os hebreus, Adoto cada teoria, mito, deus e semideus, Aceito a verdade que está nos velhos contos, na Bíblia, nas genealogias, sem exceção, Afirmo que todos os dias passados foram o que eles deveriam ter sido, E que eles, de modo algum, poderiam ter sido melhores do que foram, E que o hoje é o que ele precisa ser, e o que a América é, E que o hoje e a América não poderiam ser melhores do que são.

3

Em nome destes Estados e em teu e em meu nome, o Passado, E em nome destes Estados e em teu e em meu nome, o Presente. Sei que o passado foi grandioso e que o futuro será grandioso, E sei que ambos, curiosamente se fundem no presente, (Em nome daquele que eu tipifico, em nome da média do homem comum, em teu nome se és ele,) E o lugar em que estou ou tu estás no presente é o centro de todos os dias, de todas as raças, E este é o significado para nós de tudo o que já se passou em termos de raças e de dias, ou está para vir em qualquer tempo.
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Um carro alegórico na Broadway

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Sobre o mar ocidental, vindos de Niphon, Corteses, dois emissários armados com espadas de face morena, Confortavelmente sentados em suas carruagens abertas, carecas, impassíveis, Atravessam, hoje, a ilha de Manhattan, Liberdade! Não sei se outros enxergam o que enxergo, Na procissão, ao lado dos nobres de Niphon, os condutores da missão Avançando na retaguarda, pairando acima, em torno ou marchando em filas, Mas cantarei para ti uma canção do que diviso ser a Liberdade. Quando um milhão de pés descalços em Manhattan descerem pelas calçadas, Quando o som de trovão das armas me fizerem levantar com esse rugido de orgulho que amo, Quando o bocal cilíndrico das armas em meio à fumaça e o cheiro que eu amo cuspirem as suas saudações, Quando a luz do fogo das armas tiver me colocado em alerta máximo e as nuvens celestes toldarem minha cidade com uma névoa delicada, Quando, deslumbrantes, os incontáveis talos eretos, nas floresta próximas aos embarcadouros, ficarem mais grossos e coloridos, Quando todo navio ricamente revestido carregar sua bandeira no mastro, Quando trilhas de galhardete e festão estiverem penduradas nas janelas, Quando a Broadway estiver inteiramente entregue aos pedestres e à audiência de pé nas calçadas, quando a massa humana for a mais densa, Quando as varandas das casas estiverem vivas, porque repletas de gente, quando os olhos fixarem dezenas de milhares de uma única vez, Quando os hóspedes das ilhas avançarem, quando o carro alegórico mover-se para adiante em destaque, Quando a convocação for feita, quando as respostas que esperaram milhares de anos aparecerem, Eu também, erguendo-me, respondendo, descendo para as calçadas, me fundirei à multidão e fixarei o meu olhar com eles.
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Manhattan de rosto soberbo! Companheiros americanos! Em nossa direção, finalmente, o Oriente vem. Em nossa direção, minha cidade, Neste lugar em que as nossas belezas altas, encimadas pelo mármore, se enfileiram em lados opostos, para andar no espaço que há entre elas, Hoje nossos antípodas vêm. Aquele que estava nas origens vem, O ninho das línguas, aquele que nos legou os poemas, a raça de eld, Florido com sangue, reflexivo, arrebatado em meditações, quente de paixão, Ardente com perfume, com vestes amplas e delicadas, Bronzeado, com alma intensa e olhos brilhantes, A raça de Brahma vem. Contempla, minha cantabile ! Isso tudo e mais está brilhando para nós na procissão, À medida que ela se move e muda, um divino caleidoscópio se move e muda perante os nossos olhos. Pois não vêm apenas os emissários, nem os japoneses bronzeados de suas ilhas, Ágeis e silenciosos os hindus aparecem, o próprio continente asiático aparece, o passado, os mortos, A escura manhã noturna de esplendor e a fábula inescrutável, Os mistérios escondidos, os antigos e desconhecidos enxames de abelha, O norte, o sul transpirante, a Assíria ao leste, os hebreus, os antigos dos antigos, Cidades vastas desoladas, o presente livre, tudo isso e mais na procissão de carros alegóricos. Geografia, o mundo está nela, O Grande Mar, o surgimento de ilhas, Polinésia, a costa para além, A costa que de agora em diante estás encarando — tu, Liberdade! de teus litorais ocidentais de ouro,  med.00400.252.jpg Os países ali, com suas populações, os milhões em massa estão curiosamente aqui, Os mercados populosos, os templos com seus ídolos enfileirados nas laterais ou ao fundo, em bronze, brâmane e lama, Mandarim, agricultor, mercador, mecânico e pescador, A jovem cantora e a jovem dançarina, as pessoas extáticas, os imperadores isolados, O próprio Confúcio, os grandes poetas e heróis, os guerreiros, as castas, todos, Se agrupando, vindo de todas as direções, dos montes Altai, Do Tibet, dos rios longínquos dos quatro ventos da China, Das penínsulas do sul e das ilhas semicontinentais, da Malásia, Essas e tudo o que pertence a elas se apresenta de forma palpável para mim, e é capturado por mim, E eu sou capturado por elas e amistosamente abraçado por elas, Até aqui eu canto todas elas, Liberdade! Para elas e para ti. Pois eu também, erguendo minha voz, uno-me às fileiras dos carros alegóricos, Sou o cantor, canto alto sobre o carro alegórico, Canto o mundo sobre o meu mar ocidental, Canto, copioso, as ilhas que estão além, densas como as estrelas no céu, Eu canto o novo império, maior do que qualquer império anterior, como numa visão ele me aparece, Eu canto a América, a soberana, eu canto uma supremacia maior, Eu canto mil cidades que ainda florescerão no tempo naqueles grupos de ilhas, Meus barcos a vela e barcos a vapor varando por entre os arquipélagos, Minhas estrelas e faixas agitadas no vento, Abrindo o comércio, o sono das idades tendo completado seu trabalho, raças renascidas, renovadas, Vidas, trabalhos retomados — o objeto que não conheço — mas o antigo, o asiático renovado tal como deve ser, Começando desde hoje, tendo o mundo à sua volta.

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E tu, Liberdade do mundo! Tu hás de sentar-te bem ao meio, bem postada por milhares e milhares de anos, Assim, hoje, de um lado os nobres da Ásia vêm a ti,  med.00400.253.jpg Assim, amanhã, do outro lado a rainha da Inglaterra envia o seu filho mais velho para ti. O sinal está se invertendo, o orbe está cercado, O anel está fechado, a jornada está feita, A tampa da caixa está apenas perceptivelmente aberta e, contudo, o perfume se derrama copiosamente para fora da caixa. Jovem Liberdade! Com a venerável Ásia, a mãe de todos, Sê atenciosa com ela agora e sempre, quente Liberdade, pois tu és tudo, Curva teu pescoço orgulhoso para a distante mãe que agora te envia mensagens sobre os arquipélagos, Curva teu pescoço orgulhoso bem baixo uma vez, jovem Liberdade! Estiveram os filhos vagando para oeste por tanto tempo? Foi tão extensa a caminhada? Duraram tempo demais as eras sombrias que emergiram no oeste vindas do Paraíso? Foram os séculos estabelecendo as coisas, firmemente desse modo? Sem que tu o soubesses, por razões desconhecidas? Eles estão justificados, estão realizados, e devem agora também se voltar para outras estradas, em tua direção, Eles agora devem também marchar, obedientes, para o leste em teu nome, Liberdade!
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À deriva no mar

Saindo do berço, para sempre embalado

Saindo do berço, para sempre embalado, Saindo da garganta do pássaro-das-cem-línguas, a expressão musical, Saindo da meia-noite do nono mês, Sobre as areias estéreis e os campos além, onde a criança, deixando seu leito, perambula em solidão, sem cabelo, descalça, Vindo de baixo, do halo que a chuva deixou, Vindo de cima, da dança das sombras que se entrelaçam e se torcem como se estivessem vivas, Saindo dos canteiros de roseiras bravas e amoras pretas, Das memórias do pássaro que cantou para mim, De suas memórias, irmão triste, dos caprichosos vôos e quedas que ouvi, De debaixo daquela meia-lua amarela tardia e inchada como se estivesse em lágrimas, Daquelas notas iniciais de anelo e de amor que ouvi ainda na névoa, Das mil reações de meu coração que jamais cessará, Das miríades de palavras que surgiram desde então, Da palavra mais forte e mais deliciosa que qualquer outra, Com a qual, tal como se dá agora, eles retornam à cena, Como um bando, cantando, se erguendo, ou voando sobre as cabeças, Resistindo até aqui, antes que tudo escape de mim, apressadamente, Um homem e, contudo, em virtude destas lágrimas, um menino outra vez, Atirando-me sobre a areia, confrontando-me com as ondas, Eu, cantor de dores e alegrias, aquele que une aqui e acolá, Carregando todos os sinais para usá-los, mas agilmente saltando além deles, Canto uma reminiscência.  med.00400.255.jpg Uma vez em Paumanok, Quando o perfume dos lilases estava no ar e a grama do quinto mês estava crescendo, Acima desse litoral, sobre algumas roseiras bravas, Vi dois visitantes emplumados do Alabama, os dois juntos, Em seus ninhos, quatro ovos verde-claros com manchinhas marrons, E todos os dias o pássaro macho ficava de lá para cá, bem próximo, ao alcance, E todos os dias o pássaro fêmea abaixava-se em seu ninho, silenciosa, com seus olhos brilhantes, E todos os dias eu, um rapaz curioso, sem nunca me aproximar demais, sem nunca incomodá-los, Cuidadosamente perscrutava, absorvia, traduzia. Brilha! Brilha! Brilha! Derrama o teu calor, grande sol! Enquanto nos aquecemos, nós dois juntinhos. Nós dois juntinhos! Os ventos sopram no sul ou os ventos sopram no norte, O dia vem branco, ou a noite vem preta, No lar, ou nos rios e montanhas distantes do lar, Cantando o tempo todo, sem perceber o tempo, Enquanto nós dois ficamos juntinhos. Até que, de repente, Talvez morta (mistério para o seu amor), Numa certa manhã, o pássaro fêmea não pousou no ninho, Nem voltou naquela tarde, nem na próxima, Nem nunca mais apareceu. E desse dia em diante, em todos os verões, ao som do mar, E à noite, sob a luz da lua cheia, em clima mais calmo, Sobre o avanço rouco do mar, Ou voando de uma sarça para a outra, durante o dia, Passei a ver e a ouvir, a intervalos, aquele que restou, o pássaro macho, O visitante solitário do Alabama. Sopra! Sopra! Sopra! Sopra com força, vento marítimo do litoral de Paumanok;  med.00400.256.jpg Eu aguardo e aguardo até que sopres o meu amor de volta para mim. Sim, quando as estrelas cintilavam, A noite inteira, no topo de um poste fincado no brejo, Quase na altura em que as ondas se esbatem, Sentava-se o gracioso cantor solitário, fazendo chorar. Ele chamou continuamente seu par, E derramou os significados que eu, entre todos os homens, conheço, Sim, meu irmão, eu conheço, E mesmo que nem tudo carregasse sentido, tratei de entesourar cada nota, Mais de uma vez, sem ser notado, deslizei até a praia, Em silêncio, evitando ser atingido pelos raios da lua, misturando-me às sombras, Lembro-me das formas obscuras, dos ecos, dos sons e das visões de todos os tipos, Lançando meus braços brancos incessantemente sobre a amurada, Eu, descalço, uma criança, com o vento a balançar meus cabelos, Ouvi o pássaro horas a fio. Ouvi para guardar, para cantar, e agora traduzo as notas, Seguindo-te, meu irmão. Conforta! Conforta! Conforta! Se aproximando, uma onda conforta a onda que vem atrás, E novamente outra onda que vem atrás envolve e aplaca aquelas que estão perto, Mas o meu amor não me conforta, não a mim. A lua está baixa, ela ergueu-se com atraso, Ela está lenta — Ó eu acho que ela está pesada de amor, cheia de amor, Ó furiosamente o mar se lança sobre a terra, Com amor, com amor. Ó noite! Não é o meu amor que vejo voando sobre o quebra-mar? O que é aquele pequeno vulto preto que vejo ali sobre o branco? Alto! Alto! Alto!  med.00400.257.jpg Alto eu te chamo, meu amor! Alta e clara eu lanço minha voz sobre as ondas, Certamente deves saber quem está aqui, está aqui, Deves saber quem eu sou, meu amor. Lua no céu tão baixa! O que é aquele ponto escuro na tua superfície amarela e castanha? Ó é a silhueta, a silhueta de meu amor! Ó lua, não me prives mais da companhia dela. Terra! Terra! Ó terra! Para qualquer lado que me volte, ó penso que poderias me devolver o meu amor se quisesses, Pois estou quase certo de que a vejo vagamente por toda parte. Ó altas estrelas! Talvez aquela que eu amo tanto se erguerá, se erguerá com uma de vós! Ó garganta! Ó garganta que estremece! Soa com mais clareza através da atmosfera! Atravessa as florestas, a terra, Em alguma parte, com o ouvido atento, a fim de apanhar-te, deve estar aquela que desejo! Canções para agitar! Solitárias aqui, as canções da noite! Canções de amor solitário! Canções de morte! Canções entoadas sob aquelas luas lentas, amarelas e minguantes! Ó sob aquela lua que quase mergulha dentro do mar! Ó canções imprudentes e desesperantes. Mas com brandura! Submerge! Com brandura! Deixa-me apenas murmurar. E aguarda um momento, mar vigoroso e sonoro, Pois, em alguma parte, acredito ter ouvido a resposta de meu par ao meu chamado, Então desmaia, preciso estar quieto, estar quieto para ouvir, Mas não fiquemos todos quietos, simultaneamente, pois nesse caso ela pode não vir imediatamente para mim.  med.00400.258.jpg Aqui, meu amor! Aqui estou! Aqui! Com essa nota sustenida, há pouco, eu me anuncio para ti, Este chamado gentil é para ti, meu amor, para ti. Não te sintas atraída para outras paragens, É apenas o assobio do vento, não é a minha voz, É apenas a azáfama, a azáfama da chuva, São as sombras das folhas. Ó escuridão! Ó em vão! Estou muito doente e cheio de tristeza. Ó halo dourado no céu, próximo da lua, mergulhando no mar! Ó reflexo desordenado sobre o mar! Ó garganta! Ó coração latejante! Enquanto canto inutilmente, inutilmente a noite inteira. Ó passado! Ó vida feliz! Ó canções de alegria! No ar, nas florestas, sobre os campos, Amada! Amada! Amada! Amada! Amada! Contudo minha companheira não está, não está mais comigo! Não estamos mais juntos. A melodia naufragando, Tudo o mais permanecendo, as estrelas brilhando, Os ventos soprando, as notas emitidas pelo pássaro ecoando incessantemente, Com gemidos raivosos, a mãe velha e ameaçadora gemendo sem cessar, Nas areias do litoral de Paumanok, desolada e sussurrante, A meia-lua amarela e inchada, caindo, mergulhando, quase tocando a face do mar, O jovem extático, com seus pés descalços nas ondas, a atmosfera a brincar com seus cabelos, O amor, há muito encerrado no peito, agora solto, agora, enfim, estourando tumultuosamente, O sentido da melodia, os ouvidos, a alma, agilmente se estabelecendo, As lágrimas estranhas descendo pela face, O colóquio lá, o trio, cada um falando, A meia-voz, a velha mãe selvagem chorando sem parar,  med.00400.259.jpg As questões sobre a alma do rapaz taciturnamente surgindo, alguma sibilação ficando em segredo, O bardo no princípio. Demônio ou pássaro! (disse a alma do rapaz), Estás de fato cantando para a alma de teu par? Ou será realmente para mim? Pois eu, que fui uma criança cujo uso da língua está adormecido, agora posso te ouvir, Agora, em um momento, sei o que sou, pois estou desperto, E já mil cantores, mil canções, mais claras, mais altas, e mais tristes que as tuas, Mil ecos gorjeando nasceram para a vida dentro de mim, para jamais morrer. Ó tu, cantor solitário, cantando sozinho, projetando-me, Ó meu Eu solitário a ouvir, nunca mais devo deixar de te perpetuar, Nunca mais devo escapar, nunca mais as reverberações, Nunca mais os gritos de amor insatisfeito estarão ausentes de mim, Nunca me permitas ser novamente a criança pacífica que eu era antes, durante a noite, Próximo do mar, sob a lua amarela e cadente, O mensageiro lá se levantou, o fogo, o inferno doce no íntimo, O desejo desconhecido, o destino de mim. Ó dá-me o novelo! (ele espreita à noite, aqui, em algum lugar) Ó se devo ter tanto, deixa-me que eu tenha mais! Uma palavra então (pois hei de conquistá-la) A palavra final, superior a tudo, Subitamente, emitida — o que é isso? — eu ouço; Tende-a sussurrado, e assim tem sido todo o tempo, ó vós, ondas do mar? Será que ela provém de tuas margens líquidas e de tuas areias molhadas? Para onde responde, o mar, Sem demora, sem pressa, Sussurrou-me através da noite e escancaradamente antes do amanhecer, Balbuciou-me a baixa e deliciosa palavra morte, E outra vez morte, morte, morte, morte,  med.00400.260.jpg Assobiando, melodiosamente, não como o pássaro nem como o meu desperto coração infantil, Mas aproximando-se com intimidade por mim, sussurrando aos meus pés, Rastejando dali, sem parar, até os meus ouvidos e lavando-me gentilmente por toda parte, Morte, morte, morte, morte, morte. A que não esqueço, Mas funde a canção de meu demônio escurecido e meu irmão, Que ele cantou para mim no luar da praia cinzenta de Paumanok, Com mil canções sensíveis ao acaso, Minhas próprias canções despertadas do tempo, E com elas a chave, a palavra dita pelas ondas, A palavra da canção mais doce e todas as canções, Aquela forte e deliciosa palavra que, rastejando aos meus pés, (Ou como alguma velha mulher enrugada embalando o berço, vestida em trajes doces, dobrando-se para o lado), O mar me segredou.

Quando refluí com o oceano da vida

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Quando refluí com o oceano da vida, Quando segui margeando os litorais que conheço, Quando andei por onde as ondulações continuamente te banham, Paumanok, Onde elas farfalham roucas e sibilantes, Onde a impetuosa velha mãe chora sem cessar por aqueles que perdeu, Eu, cismando até tarde, num dia de outono, olhando fixamente para o sul, Seguro por este Eu elétrico, nesse orgulho que me leva a expressar poemas, Fui tomado pelo espírito que caminha nas linhas sob os pés, A borda, o sedimento que sustenta toda a água e toda a terra do globo. Fascinado, meu olhar retornando do sul, caído, para seguir aqueles delgados sulcos profundos, Farelo, palha, lascas de madeira, ervas daninhas e o glúten do mar,  med.00400.261.jpg Refugo, escamas das pedras brilhantes, folhas de algas deixadas pela maré, Andando por milhas, o som das ondas quebrando no outro lado de mim, Paumanok lá e, então, tal como eu pensara, o velho pensamento da imagem, Isso tu me presenteaste, tu, ilha com forma de peixe, Quando eu seguia o litoral que conheço, Quando andava com aquele Eu elétrico procurando tipos.

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Quando me dirijo ao litoral que não conheço, Quando arrolo no hino fúnebre as vozes dos náufragos, dos homens e das mulheres, Quando inalo as brisas imponderáveis que se instalam sobre mim, Quando o oceano tão misterioso se agita em minha direção, cada vez mais próximo, Eu igualmente significo, no máximo, um pequeno escombro molhado e à deriva, Uns poucos grãos de areia e folhas para serem reunidos, Para reunir-me e tornar-me parte das areias e dos escombros à deriva. Ó confundido, empacado, vergado para a própria terra, Sinto-me oprimido porque ousei abrir a minha boca, Consciente agora, pois que em meio a tudo o que me segredam aqueles cujos ecos repercutem sobre mim, nem uma única vez tive idéia de quem ou o que sou, E apesar de todos os meus arrogantes poemas, o Eu real permanece intocado, inenarrável, de um modo geral inalcançável, Retirado, ironizando-me, com sinais de certa ironia congratulatória, fazendo reverências, Com trejeitos de riso desdenhoso e distante acerca de cada palavra que já escrevi, Apontando em silêncio para estas canções e depois para a areia do chão. Percebo que de fato não compreendi coisa alguma, nem um único objeto, e que nenhum homem o fará um dia, A natureza aqui, à vista do mar, tirando vantagem de mim para lançar-se sobre mim e me ferir, Apenas porque ousei abrir a minha boca para cantar.
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Vós, ambos os oceanos, pareço-me convosco, Murmuramos de modo semelhante e, de modo censurável, balançamos areia e escombros, sem saber por quê, Esses diminutos fragmentos boiando por ti e por mim e por todos. Tu, margem que esboroa com trilhas e entulho, Tu, ilha com forma de peixe, eu levo o que está debaixo de meus pés, O que é teu é meu, meu pai. Eu também, Paumanok, Eu também borbulhei e flutuei a flutuação sem medida, e fui lavado em tuas praias, Eu também sou apenas uma trilha de restos de um naufrágio e escombros, Eu também deixo pequenos naufrágios sobre ti, tu, ilha com forma de peixe. Eu me lanço sobre o teu peito, meu pai, Eu me apego a ti de tal modo que não possas me soltar, Eu te prendo com tamanha firmeza que te sentes obrigado a me responder alguma coisa. Beija-me, meu pai, Toca-me com teus lábios, tal como procedo com aqueles a quem amo, Sussurra para mim, enquanto te aperto num abraço, o segredo do murmúrio que eu invejo.

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Reflui, oceano da vida (o fluxo retornará), Não cessa o teu gemido, minha velha mãe ardente, Chora eternamente por aqueles que perdeste, mas não sintas medo nem fujas de mim, Não rujas com voz tão rouca e com tal raiva contra os meus pés quando me roço em ti, ou quando colho de ti. Minha intenção é terna para contigo e para com todos, Eu colho para mim e para esse fantasma que olha para baixo, para o local em que avançamos, eu e o que é meu.  med.00400.263.jpg Eu e o que é meu, paveia solta, pequenos corpos, Espuma, flocos de neve branca, e bolhas, (Vê, de meus lábios mortos o vapor expirar finalmente, Vê, as cores do prisma brilhando e se agitando), Tufos de palha, areias, fragmentos, Que boiaram até aqui, vindos pela força dos humores, um a contradizer o outro, Vindos com as tempestades, a calma longa, a escuridão, o inchaço, Meditando, ponderando, um suspiro, uma lágrima salgada, um salpico de líquido ou de solo, Para cima tanto quanto para fora de insondáveis trabalhos fermentados e atirados, Um ou dois botões frágeis, feridos, do mesmo modo, flutuando sobre as ondas, boiando sem rumo certo, Tal como é para nós aquele hino fúnebre da natureza, Tal como o lugar de onde vem para nós aquele som rijo do clarim das nuvens, Nós, caprichosos, trouxemos aqui não sabemos de onde, e espalhamos diante de ti, E tu, lá em cima, andando ou sentado, Quem quer que sejas, nós também estamos à deriva aos teus pés.

Lágrimas

Lágrimas! Lágrimas! Lágrimas! À noite, na solidão, lágrimas, Na praia branca gotejando, gotejando, absorvidas pela areia, Lágrimas, não de uma estrela brilhando, escura e desolada, Lágrimas úmidas, caídas dos olhos de uma cabeça disfarçada, Ó quem é aquele fantasma? Aquela forma na escuridão, com lágrimas? Que fragmento informe é aquele, vergado, abaixado lá na areia? Lágrimas torrenciais, lágrimas que vêm com um soluço, com agonia, afogadas em gritos selvagens; Uma tempestade, incorporada, se erguendo, correndo com passos ligeiros ao longo da praia! Ó tempestade noturna lúgubre e selvagem, acompanhada de vento, sonora e desesperada! Ó sombra tão composta e decorosa de dia, com calma continência e passo regulado,  med.00400.264.jpg Mas, retirada à noite, como voas, sem olhar para ninguém, ó então, o oceano engessado, De lágrimas! Lágrimas! Lágrimas!

Ao pássaro navio-de-guerra

Embora tenhas dormido a noite inteira sob a tempestade, Despertando renovado sobre tuas asas prodigiosas, (Explodiu a tempestade selvagem? Acima dela tu te sobressaíste, E descansaste no céu, enquanto teu escravo te embalava.) Agora um ponto azul, longe, longe no céu flutuando, Como uma luz que emerge aqui no convés, eu te contemplo, (Eu mesmo um átimo, um ponto a flutuar no mundo vasto.) Longe, longe no mar, Depois que os redemoinhos ameaçadores da noite espalharam destroços pela praia, Com o reaparecimento do dia, como agora tão feliz e sereno, O crepúsculo róseo e impermanente, o sol faiscante, Com o límpido banquete do ar azul celeste, Tu também reapareceste. Embora nascido para ser páreo ao vendaval (tu és todo asas), Para encarar o céu e a terra e o mar e o furacão, Tua nau de vento, da qual jamais desfraldaste as velas, Dias, até semanas, sem cansar e avançando, através dos espaços, correndo livre por entre reinos, No crepúsculo olhaste para o Senegal, de manhã para a América, E em meio àquelas aventuras, o brilho do raio e a nuvem do trovão, Neles, tuas experiências, tinhas a minha alma, Que alegrias! Que alegrias foram as tuas!

Na cabine de comando de um navio

Na cabine de comando de um navio, Um jovem timoneiro opera o leme com cuidado. Através do nevoeiro, em uma costa marítima, ouve soar pesarosamente,  med.00400.265.jpg Um sino de oceano — ó um sino de alerta, balançado através das ondas. Ó, tu de fato ofereces aviso com antecedência, tu, sino que tocas próximo aos recifes, Tocando, tocando, para avisar o navio sobre o perigo de uma colisão. Pois estando alerta, ó timoneiro, tu levas em conta a sonora admoestação, Virando o leme, o navio cargueiro arranca veloz sob suas velas cinzentas, O belo e nobre navio, com toda a sua preciosa riqueza, corre para longe, alegremente e seguro. Mas, ó navio, navio imortal! Ó navio a bordo do navio! Navio do corpo, navio da alma, viajando, viajando, viajando.

À noite, na praia

À noite, na praia, Está uma criança com seu pai, Olhando, para leste, o céu de outono. Acima, através da escuridão, Enquanto nuvens vorazes, nuvens de sepultamento, se espalham em massas negras, Descendo sombrias e ligeiras, obliquamente, no céu mais abaixo, Em meio a um cinturão claro e transparente de éter que ainda resta no leste, Ergue-se grande e calma a estrela soberana de Júpiter, E bem próxima, apenas um pouco acima, Nadam as delicadas irmãs, as plêiades. Na praia, a criança segura a mão de seu pai, Observando aquelas nuvens de sepultamento que se abaixam logo, vitoriosamente, para tudo devorar, Observando, lamentando silenciosamente. Não chores, criança, Não chores, minha querida, Com estes beijos deixa-me remover tuas lágrimas,  med.00400.266.jpg As nuvens devoradoras não serão vitoriosas por mais tempo, Em breve, elas não mais possuirão o céu; elas não devoram as estrelas, o que vês é apenas ilusão, Júpiter há de emergir, sê paciente, contempla mais uma noite, as plêiades hão de emergir, Elas são imortais, todas aquelas estrelas, tanto as prateadas quanto as douradas, hão de brilhar novamente, A grande estrela e as pequenas hão de brilhar novamente, elas resistem, Os sóis vastos e imortais e as luas duradouras reflexivas hão de novamente brilhar. Então, minha mais querida criança, choras tu tão-somente por Júpiter? Consideras tu apenas o funeral das estrelas? Algo existe, (Aos meus lábios que te acalmam, adicionando sussurro, Dou-te a primeira sugestão, o problema e a dissimulação) Algo existe que é mais imortal até que as estrelas, (Muitos são os funerais, muitos são os dias e as noites que passam) Algo que deve durar mais até que o lustroso Júpiter, Mais que o sol ou que qualquer satélite que gira em torno dele, Ou que as radiantes irmãs: as plêiades.

O mundo submarino

O mundo submarino, Florestas no fundo do mar, os ramos e as folhas, A alface do mar, grandes líquens, estranhas flores e sementes, o espesso emaranhado, clareiras e turfas cor-de-rosa, Cores diferentes, cinza e verde pálidos, púrpura, branco e ouro, o jogo da luz através da água, Mudos nadadores ali entre as pedras, coral, glúten, grama, arbustos e o alimento dos nadadores, Existências indolentes pastando ali, suspensas, ou vagarosamente engatinhando próximas ao fundo, A baleia branca, na superfície, soprando o ar e jorrando água ou divertindo-se com sua calda,  med.00400.267.jpg O tubarão com olho plúmbeo, a morsa, a tartaruga, o peludo leopardo marinho e a arraia-lixa, Paixões de lá, guerras e perseguições, tribos, a visão naquelas profundezas oceânicas, respirando aquele ar espesso, como tantos fazem, A mudança de lá para o que está aqui, e para o ar sutil respirado por tantos seres como nós que andamos nesta esfera, A mudança para adiante de nossa esfera para os seres que andam em esferas superiores.

Na praia, sozinho, à noite

Na praia, sozinho, à noite, Quando a velha mãe balança para frente e para trás, entoando sua canção vigorosa, Quando assisto à brilhante estrela que cintila, reflito sobre a chave dos universos e sobre o futuro. Uma vasta similitude engrena todas as coisas, Todas as esferas, as desenvolvidas, as mirradas, as pequenas, as grandes, os sóis, as luas, os planetas, Todas as distâncias de lugares, não importando quão longínquos, Todas as distâncias do tempo, todas as formas inanimadas, Todas as almas, todos os corpos viventes embora tão diferentes, ou de mundos diferentes, Todos os processos gasosos, aquáticos, vegetais, minerais, os peixes, as criaturas, Todas as nações, cores, barbarismos, civilizações, línguas, Todas as identidades que existiram ou possam existir neste globo ou em qualquer globo, Todas as vidas e mortes, todo o passado, o presente, o futuro, Essa vasta similitude os abarca, e sempre os abarcou, E há de abarcá-los para sempre e solidamente envolvê-los e contê-los.
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Canção para todos os mares, para todas as embarcações

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Hoje, um rude e breve recitativo, De navios navegando pelos mares, cada um com sua bandeira especial ou sua marca, De heróis anônimos nos navios — de ondas se espalhando e se espalhando para tão longe quanto o olhar pode alcançar, Ó arrojado borrifo, e os ventos assobiando e soprando, E a partir deles um canto pelos marinheiros das nações, Espasmódico, como uma onda. De capitães do mar jovens ou velhos e dos companheiros, e de todos os intrépidos marinheiros, Dos poucos, de escol, taciturnos, a quem o destino jamais pode surpreender nem a morte assustar, Colhidos aqui e ali sem balbúrdia por ti, velho oceano, escolhidos por ti, Tu, mar, que colheste e apartaste a raça em tempo, e uniste nações, Sugada por ti, velho rústico guardião, incorporando-te, Indomável, não domesticável, tal como tu. (Para sempre os heróis na água e na terra, aparecendo solitários ou aos pares, Para sempre os animais de criação preservados e nunca perdidos, embora raros, em número suficiente para que a semente seja preservada.)

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Agita, ó mar, tuas bandeiras singulares das nações! Agita visivelmente, como sempre, os mais diversos sinais dos navios! Contudo reserva especialmente para ti e para a alma do homem uma bandeira acima de todas as outras, Um sinal que foi espiritualmente tecido para todas as nações, emblema do homem elevado acima da morte, Penhor de todos os bravos capitães e de todos os intrépidos marinheiros e companheiros, E todos eles se foram enquanto cumpriam seus deveres, Reminiscências deles, entrelaçados de todos os capitães jovens ou velhos,  med.00400.269.jpg Uma bandeira universal, subitamente ondulando todo o tempo, sobre todos os bravos marinheiros, Todos os mares, todos os navios.

Patrulhando Barnegat

Patrulhando Barnegat Feroz, feroz a tempestade e o mar correndo alto, Constante o arfar da brisa, com um sussurro contínuo. O som de risadas demoníacas espasmodicamente penetrantes e repicantes, Ondas, ar, meia-noite, essa tríade selvagem chicoteando, Lá fora, nas sombras, as cristas brancas das ondas correndo, Inclinando-se ameaçadoramente com a lama da praia e os jorros de branca areia, Atravessando o tenebroso vento mortal do leste que sopra, Atravessando o redemoinho e o jorro da água, avançando atentamente e com firmeza, (Aquilo na distância! Será um destroço? O sinal vermelho está brilhando?) Lama e areia da praia carregadas sem cessar, até o amanhecer, Constantemente, devagar, jamais remetendo a um áspero bramido, Ao longo da franja da meia-noite, perto das cristas brancas das ondas que correm, Um grupo de formas obscuras, estranhas, lutando, confrontando a noite, A tríade selvagem cautelosamente assistindo.

Depois da embarcação marítima

Depois da embarcação marítima, depois dos ventos uivantes, Depois das velas brancas acinzentadas, retesadas, em suas longarinas e suas cordas, Abaixo, uma miríade de miríade de ondas apressadas, levantando seus pescoços, Incessantemente, na direção do fluxo da trilha do navio, Ondas do oceano fazendo bolhas aos borbotões, jubilosamente se intrometendo, Ondas, ondas ondulantes, líquidas, desiguais, rivais, Na direção daquela corrente circular, rindo e boiando, com suas curvas,  med.00400.270.jpg Onde a grande embarcação, navegando e alinhavando a água, deslocou a superfície, Ondas maiores e menores na amplitude do oceano, fluindo enternecidamente, A esteira da embarcação marítima após a sua passagem, cintilando e se divertindo sob o sol, Uma procissão heterogênea com muitos flocos de espuma e muitos fragmentos, Fluindo o sólido e rápido navio, na esteira fluindo.
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À margem da estrada

Uma balada de Boston

(1854)

Para estar na hora certa na cidade de Boston, acordei bem cedo esta manhã, Aqui é um bom lugar na esquina, devo ficar em pé e assistir ao espetáculo. Abre a passagem aí, Jonathan! Passagem para o cerimonial da Presidência — passagem para o canhão do governo! Passagem para a guarda federal a pé e os dragões (e as aparições que caem copiosamente.) Eu amo olhar para as Estrelas e as Faixas, espero que os pífaros toquem "Yankee Doodle". Com que luminosidade brilham os alfanjes das tropas dianteiras! Cada homem segura seu revólver, marchando altivamente pela cidade de Boston. Uma fumaça segue, a velha guarda vem mancando, Alguns parecem ter perna de pau, e alguns parecem ter curativos e estar exangues. Porque este é de fato um espetáculo — ele convocou os mortos a saírem da terra! Os que estão nos velhos cemitérios das montanhas correram para ver! Fantasmas! Incontáveis fantasmas nos flancos e atrás!  med.00400.272.jpg Chapéus erguidos e comidos pelas traças — muletas feitas de neblina! Braços em ataduras — homens velhos se apoiando nos ombros de homens mais jovens. O que vos atormenta, fantasmas ianques? Que é toda essa conversa entre os desdentados? O calafrio faz com que vossos membros convulsionem-se? Se toldares vossos olhos com lágrimas, não vereis o cerimonial da Presidência, Se gemerdes com tais gemidos, estorvareis o canhão do governo. Que vergonha, velhos maníacos — abaixai esses braços erguidos e deixai que fiquem assim os vossos cabelos brancos, Aqui bocejam vossos netos, as esposas deles espreitam-nos pelas janelas, Vede como estão bem vestidos, vede como avançam ordenadamente! Pior e pior — não podeis suportá-lo? Recuais? Será que este momento com os vivos é demais para vós? Recuai então — tumultuadamente! Para os vossos túmulos — retrocedei — de volta para as montanhas, velhos mancos! De qualquer modo não julgo que pertencei a este lugar. Mas há algo que pertence — devo contar-vos o que é, cavalheiros de Boston? Vou sussurrar isso para o Prefeito, ele há de enviar um comitê à Inglaterra, Eles hão de conseguir uma verba do Parlamento, ide com o carro para a câmara mortuária real, Cavai o túmulo do Rei George, desenrolai-o das mortalhas, colocai os seus ossos numa caixa para fazer uma jornada, Encontrai um cavalo veloz ianque — aqui está a encomenda para vós, cavalo veloz de barriga preta, Subi as vossas âncoras — desfraldai as vossas velas — rumai direto à baía de Boston. Agora convocai novamente o cerimonial do Presidente, trazei para fora o canhão do governo,  med.00400.273.jpg Trazei para casa os barulhentos do Congresso, fazei uma nova procissão, defendei-a com os soldados a pé e os dragões. Esta peça central para eles; Olhai, todos vós, cidadãos corretos; observai de vossas janelas, mulheres! O comitê abre a caixa, monta as costelas reais, cola aqueles ossos que não querem parar no lugar, Colocam vigorosamente o crânio no topo das costelas. Tiveste a tua vingança, velho companheiro — a coroa foi transferida para o seu dono, e mais do que o seu dono. Coloca tuas mãos em teus bolsos, Jonathan — tu és um homem feito a partir de hoje, Tu és um poderoso astuto — e aqui está uma de tuas barganhas.

Europa

Os 72º e 73º anos destes Estados

Repentinamente, saindo de sua toca bolorenta e modorrenta, a toca dos escravos, Como um raio saltou para frente, meio surpreendido, sobre si mesmo, Seus pés sobre as cinzas e os farrapos, suas mãos apertando as gargantas dos reis. Ó esperança e fé! Ó dor próxima das vidas dos patriotas exilados! Ó muitos corações doentes! Voltai-vos para este dia e renovai-vos. E vós, pagos para desafiar o Povo — vós, mentirosos, sabei! Não pelas incontáveis agonias, assassinatos, luxúria, Pelo roubo da corte em suas múltiplas formas, sugando de sua simplicidade o salário do homem pobre, Pelas promessas dos lábios reais feitas à multidão e quebradas com escárnio, Então com seus poderes, não por todas essas coisas, os arcos buscaram a desforra, ou a queda das cabeças dos nobres;  med.00400.274.jpg O povo desprezou a ferocidade dos reis. Mas a doçura da compaixão preparou a destruição amarga e os monarcas assustados recuam, Cada um vem no luxo de seu trem, algoz, padre, coletor de impostos, Soldado, advogado, soberano, delegado, adulador. E ainda, atrás de todos, carrancuda e gatuna, vede uma forma, Vaga como a noite, drapejada interminavelmente, cabeça, testa e forma, em dobras escarlates, Aquela de quem a face e os olhos ninguém pode ver, Saindo de seus mantos apenas assim, os mantos vermelhos erguidos pelos braços, Um dedo arqueado apontado para o alto, no topo, tal como a cabeça de uma serpente. Enquanto isso, corpos jazem nos túmulos recentes, corpos ensangüentados de jovens homens, A corda da forca pende pesadamente, as balas dos príncipes estão voando, as criaturas do poder riem barulhentamente, E todas essas coisas dão frutos, e são boas. Aqueles corpos de rapazes, Aqueles mártires pendurados nas forcas, aqueles corações perfurados pelo chumbo cinza, Frios e sem movimento, eles parecem estar vivendo em outra dimensão, com uma vitalidade não massacrada. Eles vivem em outros homens jovens, ó reis! Eles vivem nos irmãos que novamente estão prontos para desafiar-vos, Eles foram purificados pela morte, foram preparados e exaltados. Em cada túmulo dos que foram assassinados pela liberdade, crescem sementes de liberdade, quando chega a sua hora de produzir sementes, As quais são carregadas pelos ventos, para longe, e ressemeadas, e as chuvas e as neves as nutrem. Nenhum espírito desencarnado pode deixar soltas as armas dos tiranos,  med.00400.275.jpg Eles se aproximam invisivelmente, rastejando sobre a terra, sussurrando, aconselhando, advertindo. Liberdade, deixa que outros se desesperem de ti — Eu jamais me desespero de ti. A casa está fechada? O mestre se foi? Não obstante, estai prontos, não vos canseis de vigiar, Ele retornará em breve, seus mensageiros vêm sem demora.

Um espelho de mão

Segura-o com força — vê o que ele te devolve (quem é? Serás tu?) Por fora uma bela vestimenta, por dentro cinzas e corrupção, Não mais um olho que se acende, não mais uma voz sonora ou um passo ágil, Agora alguns olhos de escravo, como a voz, as mãos, o passo, Uma respiração de bêbado, a face de um comedor insalubre, de carne venérea, Pulmões apodrecidos em pedaços, estômago dolorido e canceroso, Juntas reumáticas, intestinos entupidos por abominações, Sangue escuro circulando em correntes venenosas, Palavras balbuciadas, audição e tato calosos, Sem cérebro, sem coração, sem magnetismo sexual; Uma tal visão de alguém neste espelho é aquilo que és desde agora, Um tal resultado tão precoce — e derivado de um início tal!

Deuses

Amante divino e perfeito Companheiro, Esperando satisfeito, invisível ainda, mas certo, Sejas tu, meu Deus. Tu, tu, o Homem ideal, Justo, capaz, belo, satisfeito e amoroso, Corpo completo e espírito amplo, Sejas tu, meu Deus.  med.00400.276.jpg Ó Morte (pois a vida já serviu o seu turno), Porteiro e introdutor para a mansão celeste, Sejas tu, meu Deus. Algo, algo de mais poderoso, de melhor eu vejo, concebe ou conhece, (Para romper o estagnante nó — tu, tu para libertar, ó alma), Sejas tu, meu Deus. Todas as grandes idéias, as aspirações das raças, Todos os heroísmos, feitos de entusi?smo arrebatado, Sede vós, meus Deuses, Ou Tempo e Espaço, Ou a forma da Terra divina e assombrosa, Ou alguma forma bela que vejo e adoro, Ou orbe brilhante do sol ou estrela à noite, Sede vós, meus Deuses.

Gérmens

Formas, qualidades, vidas, humanidade, linguagem, pensamentos, Os que são conhecidos e os que são desconhecidos, os que estão nas estrelas, As próprias estrelas, algumas com forma, outras sem forma, Maravilhas daqueles países, o solo, as árvores, as cidades, os habitantes, o que quer que sejam, Sóis esplêndidos, as luas e os anéis, as combinações incontáveis e os efeitos, Idênticos e tão bons quanto os idênticos, visíveis aqui ou em qualquer lugar, dispostos conquanto em um espaço diminuto, que se compara ao tamanho de meu braço e cuja metade pode estar contida em minha mão, Isso contém o início de cada um e de todos, a virtude, os gérmens de todos.
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Pensamentos

De posse — como se aquele que está capacitado para possuir as coisas não pudesse penetrá-las e incorporá-las em si por prazer, De perspectiva — supondo-se alguma visão na base da mente através do caos formativo, presumindo o crescimento, a plenitude e a vida agora obtidos na jornada, (Mas eu vejo a continuação da estrada, e a estrada para sempre continuada;) Daquilo que uma vez esteve faltando na terra e no tempo certo será ainda suprido, Porque acredito que tudo o que vejo e conheço tem seu significado atrelado àquilo que ainda será suprido.

Quando ouvi o astrônomo erudito

Quando ouvi o astrônomo erudito, Quando as provas, os números, foram listados em colunas diante de mim, Quando me foram apresentados os mapas e diagramas, para somar, dividir e medi-los, Quando eu, sentado, ouvi o astrônomo no auditório em que apresentava sua palestra com grande aplauso, Bem cedo e sem conta me senti cansado e enojado, Até que, levantando-me e saindo silenciosamente, fui perambular na solidão, No místico ar úmido da noite e, de tempo em tempo, Mirava no céu a perfeição silenciosa das estrelas.

Perfeições

Alguém só pode compreender os seus iguais ou os seus semelhantes, Como as almas apenas compreendem as almas.
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Ó meu eu! Ó vida!

Ó meu eu! Ó vida! Das questões que sobre essas são recorrentes, Dos trens infinitos dos que não têm fé, das cidades cheias de tolos, Ó eu mesmo para sempre censurando a mim mesmo (pois quem é mais tolo do que eu e quem é mais sem fé?) De olhos que em vão suplicam pela luz, do meio dos objetos, das lutas sempre renovadas, Dos pobres resultados de tudo, das laboriosas e sórdidas multidões que vejo em minha volta, Dos vazios e inúteis anos dos demais, sendo que também faço parte dos demais, A questão, ó meu eu, tão triste, recorrente — O que há de bom em meio a tudo isso? Ó meu eu, ó vida?

Resposta

Que estás aqui — que a vida existe e a identidade, Que a poderosa peça continua e tu podes contribuir com um verso.

Para um Presidente

Tudo o que estás fazendo e dizendo para a América são miragens oscilantes, Não aprendeste da Natureza — das políticas da Natureza não aprendeste a grande amplitude, retidão, imparcialidade, Não viste que apenas elas podem servir a estes Estados, E que o que é menos do que elas cedo ou tarde terá de deixá-los.

Sento-me e observo

Sento-me e observo todas as tristezas do mundo e toda a opressão e a vergonha, Ouço soluços convulsivos e secretos de jovens homens angustiados consigo mesmos, cheios de remorsos após certos feitos perpetrados, Vejo na vida inferior a mãe abusada por seus filhos, morrendo, negligenciada, desolada, desesperada,  med.00400.279.jpg Vejo a esposa abusada por seu marido, vejo o sedutor desleal de jovens mulheres, Registro as irritações do ciúme e do amor não recompensado que se procura esconder, eu vejo essas visões na Terra, Vejo as obras das batalhas, da pestilência, da tirania, vejo mártires e prisioneiros, Observo a fome no mar, observo os marinheiros tirando a sorte para ver quem será morto para preservar a vida dos demais, Observo o desprezo e a degradação lançados por pessoas arrogantes sobre os operários, sobre os pobres e sobre os negros, e outros que sofrem preconceito; Tudo isso — todas as maneiras e agonias sem fim, eu, sentado, observo, Vejo, ouço e estou calado.

Os ricos doadores

O que me dás aceito com grande alegria, Um pouco de sustento, uma choupana e um jardim, um pouco de dinheiro, enquanto me encontro no local combinado com meus poemas, As acomodações e o café da manhã de um viajante quando faço minha jornada através dos Estados — por que deveria ter vergonha de receber esses presentes? Por que me advertir por eles? Pois eu mesmo não sou alguém que dê alguma coisa para homens e mulheres, Pois o que dou a qualquer homem ou mulher é o ingresso para todos os presentes do Universo.

O gracejo das águias

Seguindo pela estrada, à margem do rio (minha manhã, meu descanso), Na direção do céu, um repentino som abafado, o gracejo das águias, O rápido contato amoroso, juntas, alto no espaço, As garras reviradas que se fecham num círculo vivo, ameaçador, giratório, Quatro asas batendo, dois bicos, a massa girando um abraço apertado,  med.00400.280.jpg Em voltas cadentes e crescentes, em queda livre, Até que sobre o rio posicionados, os dois feitos em um, aquietam-se por um momento, Um balanço imóvel em pleno ar, depois se separam, soltando as presas, Subindo novamente com firmes vagarosas asas oblíquas, seus vôos independentes e distintos, Ela o dela, ele o dele, procurando.

Vagando em pensamento

(Depois de ter lido Hegel)

Vagando em pensamento sobre o Universo, percebi o pouco que é regularmente Bom que avança para a imortalidade, E o vasto tudo que é chamado de Mal, eu vi acelerar fundindo-se e se perdendo e fenecendo.

O quadro de uma fazenda

Através da ampla porta aberta de um celeiro pacífico no interior, Uma pastagem iluminada pelo sol em que o gado e os cavalos se alimentam, E a cerração e o panorama e o longínquo horizonte se dissipando.

O espanto de uma criança

Silencioso e assombrado, mesmo quando eu era um pequeno garoto, Lembro-me de ouvir o pregador falando de Deus, todos os domingos, em seus sermões, Como se estivesse lutando contra algum ser ou influência.

O corredor

Em uma estrada plana corre o bem treinado corredor, Ele é esbelto e forte com pernas musculosas, Ele está trajando roupas finas e se inclina para frente quando corre, Com punhos levemente fechados e braços parcialmente erguidos.
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Lindas mulheres

Mulheres sentadas ou se movendo para lá e para cá, algumas velhas, algumas jovens, As jovens são lindas — mas as velhas são ainda mais lindas.

Mãe e bebê

Vejo o bebê que dorme aninhado no seio de sua mãe, A mãe que dorme e o bebê — em silêncio eu os estudo por muito e muito tempo.

Pensamento

Da obediência, da fé, da adesão, Estando eu de pé, a distância, vejo algo lá que me afeta profundamente, nas grandes massas de homens, seguindo a liderança daqueles que não acreditam nos homens.

De viseira abaixada

Uma máscara, uma camuflagem natural e perpétua de si mesma, Escondendo sua face, escondendo suas formas, Mudanças e transformações a cada hora, a cada momento, Caindo sobre si mesma enquanto dorme.

Pensamento

Da Justiça — como se a Justiça pudesse ser qualquer coisa, além da mesma ampla lei, expandida por juízes naturais e salvadores, Como se pudesse ser esta coisa ou aquela coisa, de acordo com as decisões de alguém.
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Deslizando sobre tudo

Deslizando sobre tudo Deslizando sobre tudo, através de tudo, Através da Natureza, do Tempo e do Espaço, Tal como um navio que avança sobre as águas, A viagem da alma — não a vida isolada, Morte, muitas mortes cantarei.

Nunca veio sobre ti uma hora

Nunca veio sobre ti uma hora Um súbito brilho divino, precipitando-se, explodindo todas essas bolhas, modas, riqueza? Esses objetivos comerciais ambiciosos — livros, política, arte, amores, A expressão do nada?

Pensamento

Da Igualdade — como se ela me ferisse, dando aos outros as mesmas chances e direitos que tenho — como se não fosse indispensável aos meus próprios direitos que os outros também os tenham.

A velhice

Vejo em ti o estuário que cresce e se espalha grandemente quando desemboca no mar colossal.

Lugares e tempos

Lugares e tempos — o que há em mim que vai ao encontro de todos eles, Seja quando for ou onde for, e me faz sentir em casa? Formas, cores, densidades, odores — o que está em mim que corresponde a eles?
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Oferendas

Mil homens e mulheres perfeitos aparecem, Em torno de cada um se junta uma roda de amigos e crianças alegres e jovens com oferendas.

Aos Estados

Para identificar o 16º, 17º, ou 18º mandato presidencial

Por que reclinar, interrogar? Por que eu e todos os sonolentos? Que crepúsculo profundo — escuma flutuando na superfície das águas, Quem são eles que se parecem com morcegos e cães da noite, pedintes no capitólio? Que sórdido mandato presidencial! (Ó Sul, teus sóis tórridos! Ó Norte, teus frios árticos!) São aqueles de fato membros do Congresso? São aqueles os grandes Juízes? É aquele o Presidente? Então dormirei ainda por um instante, porque vejo que estes Estados dormem, pelas evidências; (Em meio às densas trevas, com o ronco do trovão e os tiros rápidos, nós todos despertamos devidamente, Sul, Norte, Leste, Oeste, interior e litoral, iremos certamente despertar).
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O rufar do tambor

Ó primeiramente, canções para um prelúdio

Ó primeiramente, canções para um prelúdio, Tocadas levemente no distendido tímpano do orgulho e da alegria em minha cidade, Pois foi assim que ela conduziu os demais para a guerra, foi assim que ela forneceu a pista, E foi assim que, finalmente, com pequenos braços, precipitadamente, ela atirou-se, (Ó soberba! Ó Manhattan, parte de mim mesmo, minha incomparável! Ó quão forte tu és na hora do perigo, na crise! Ó mais autêntica que o aço!) E assim tu te lançaste — e assim te livraste dos trajes da paz com mão indiferente, E assim tua maviosa música de ópera mudou e o tambor e o pífaro foram ouvidos em seus postos, E assim foste para a guerra (canções de soldados que servem para o nosso prelúdio) E assim seguiu Manhattan ao som dos tambores. Por quarenta anos vi em minha cidade as paradas dos soldados, Por quarenta anos vi os carros alegóricos, até que subitamente a dama desta produtiva e turbulenta cidade, Desperta em meio aos seus navios, suas casas, sua riqueza incalculável, Com um milhão de filhos em sua volta, repentinamente, Na calada da noite, à chegada das notícias do sul, Incensada, avançou sobre as calçadas com mão revirada. Um choque elétrico que a noite sustentou,  med.00400.285.jpg Até que, à luz do amanhecer, nossa colméia derramou suas miríades com zunido ameaçador. Das casas e das oficinas e através de todas as portas, Saltaram tumultuosamente, e vede! Manhattan armada. Impelidos para o som dos tambores, Os jovens se alistando e se armando, Os mecânicos se armando (a espátula, a plaina, o martelo do ferreiro, postos de lado precipitadamente) O advogado deixando seu escritório e se armando, o juiz deixando a corte, O condutor abandonando sua carruagem na rua, saltando, atirando as rédeas abruptamente sobre o torso dos cavalos, O vendedor deixando a sua loja, o patrão, o contador, o carregador, todos saindo; Esquadrões formam-se por toda parte, unidos por um consentimento coletivo e pelas armas, Para os novos recrutas, até mesmo meninos, os mais velhos demonstram como utilizar os equipamentos, afivelam as alças cuidadosamente, Recrutamento ao ar livre, recrutamento dentro dos edifícios, o brilho dos barris de mosquetes, As tendas brancas que se agrupam nos acampamentos, as sentinelas em volta, o tiro de canhão ao amanhecer, e novamente ao pôr-do-sol, Regimentos armados chegam todos os dias, passando pela cidade, e embarcam nos embarcadouros, (Que belos me parecem quando caminham a pé pelas margens do rio, suados, com suas armas nos ombros! Como os amo! Como eu poderia abraçá-los, com suas faces morenas e suas roupas e mochilas cobertas pela poeira!) O sangue da cidade ferve — Armados! Armados! é o grito que se ouve em toda parte, As bandeiras estiradas do alto dos campanários das igrejas e de todos os edifícios públicos e lojas, A partida banhada pelas lágrimas, a mãe beija seu filho, o filho beija sua mãe, (Relutante está a mãe na hora da partida e, contudo, nem uma única palavra profere a fim de detê-lo)  med.00400.286.jpg A escolta tumultuosa, as filas de policiais avançando, abrindo o caminho, O entusiasmo desabrido, os gritos selvagens da multidão homenageando seus favoritos, A artilharia, os silenciosos canhões brilhando como ouro, cobertos, com estrondo amenizado sobre as rochas (Silenciosos canhões, em breve vosso silêncio terá fim, Em breve estareis firmes para começar vosso trabalho sangrento.) Todo o murmúrio da preparação, o recrutamento determinado, O serviço hospitalar, a gaze, as bandagens e os remédios, As mulheres voluntárias na enfermaria, o trabalho começou, pois agora, em verdade, não se trata apenas de uma parada militar; Guerra! Uma raça armada avança! Seja bem-vinda a batalha, que não haja retorno; Guerra! Seja ela por semanas, meses ou anos, uma raça armada avança para dar-lhe as boas-vindas. Mannahatta em marcha — e ela está pronta para cantá-la bem! Ela está pronta para uma vida viril no acampamento. E a firme artilharia, As armas brilhando como ouro, o trabalho para gigantes, para bem servir as armas, Firmá-las! (não mais, como nos últimos quarenta anos, para saudações e cortesias apenas, Vestindo agora algo mais que pó de arroz e enchimento.) E tu, senhora dos navios, tu, Mannahatta, Velha matrona deste orgulho, amistosa, cidade turbulenta, Freqüentemente em paz e rica, tu estavas reflexiva ou veladamente preocupada em meio a teus filhos, Mas agora tu sorris com alegria exultante, velha Mannahatta.

Mil oitocentos e sessenta e um

Ano armado — ano de porfia, Sem rimas deliciosas ou versos de amor sentimental para ti, ano terrível, Não serás algum pálido poeta sentado ao piano, balbuciando cadências,  med.00400.287.jpg Mas como um homem forte e ereto, vestido em uniforme azul, avançando, carregando um rifle em teus ombros, Com um corpo bem formado, com as mãos e o rosto bronzeados, com uma faca na cintura, Quanto te ouço gritar bem alto, tua voz sonora atravessando o continente, Tua voz masculina, ó ano, como que se erguendo em meio às grandes cidades Em meio aos homens de Manhattan te vi, como um dos trabalhadores, como um dos residentes de Manhattan, Ou com passos largos, cruzando as pradarias de Illinois e Indiana, Rapidamente atravessando o Oeste, com ágil andadura, e descendo os Apalaches, Ou abaixo dos grandes lagos ou na Pensilvânia, ou no convés, ao longo do rio Ohio, Ou para o sul, ao longo do Tennessee, ou nos rios Cumberland, ou em Chattanooga, no topo da montanha, Observei tua andadura e teus membros firmes vestidos de azul, carregando armas, ano robusto, Ouvi tua voz determinada soando e soando novamente, Ano que subitamente foi cantado pelas bocas de lábios redondos do canhão, Eu repito o que fizeste, ano corrido, desastroso, triste, disfarçado.

Rufai! Rufai, tambores!

Rufai! Rufai, tambores! — Tocai, cornetas! Tocai! Através das janelas — através das portas — explodi como uma força cruel, Adentrai a igreja solene e espalhai a congregação, Adentrai a escola onde o aluno está estudando; Não deixeis o noivo em silêncio — ele não deve gozar qualquer felicidade com sua noiva, Nem o agricultor pacífico deve ter qualquer tranqüilidade, arando seu campo ou colhendo seus grãos, Tão ameaçador o vosso rufar e as vossas batidas, tambores — tão agudo o vosso toque, cornetas. Rufai! Rufai, tambores! — Tocai, cornetas! Tocai!  med.00400.288.jpg Sobre o tráfico das cidades — sobre o ribombar das rodas nas ruas; As camas estão prontas para os que dormem à noite nas casas? Ninguém deve dormir naquelas camas, Nenhum negociante fará negócios de dia — nenhum corretor ou especulador — continuariam eles o seu trabalho? E os que conversam, conversariam? E o cantor, tentaria cantar? O advogado se ergueria na corte para apresentar seu caso perante o juiz? Então, fazei mais rápida a baderna, com maior força, tambores — e vós, cornetas, sede ainda mais selvagens ao tocar. Rufai! Rufai, tambores! — Tocai, cornetas! Tocai! Não negocieis — não pareis perante reclamações, Não vos importeis com os tímidos, não vos importeis com o que chora e o que ora, Não vos importeis com o velho homem que suplica ao mais jovem, Não permiti que a voz da criança seja ouvida, nem tampouco as súplicas das mães, Fazei até com que os cavaletes sacudam os mortos, no lugar em que eles jazem, esperando os carros fúnebres, Tão fortes são os vossos golpes, ó terríveis tambores — tão alto é o vosso sopro, cornetas.

Saindo de Paumanok,eu vôo como um pássaro

Saindo de Paumanok, eu vôo como um pássaro, Em torno e em torno adejando e cantando a idéia de todos, Para o norte recorrendo a mim mesmo para cantar, lá, árticas canções, Para o Canadá, até que eu o absorva em mim mesmo, para o Michigan então, Para Wisconsin, Iowa, Minnesota, para cantar suas canções (elas são inimitáveis) E então para Ohio e Indiana para cantar suas canções, para o Missouri e Kansas e Arkansas para cantar suas canções, Para o Tennessee e Kentucky, para as Carolinas e a Geórgia para cantar suas canções, Para o Texas e subindo na direção da Califórnia, recebido em toda parte para perambular;  med.00400.289.jpg Para cantar primeiro (para a percussão do tambor de guerra se for preciso), A idéia de todos, do Mundo Ocidental uno e inseparável, E então a canção de cada membro destes Estados.

Canção do estandarte ao amanhecer

Poeta

Ó uma nova canção, uma canção livre, Adejando, adejando, adejando, adejando, por sons, por vozes mais claras, Pela voz do vento e pela voz do tambor, Pela voz do estandarte e pela voz da criança e a voz do mar e a voz do pai, Baixa no chão e alta no espaço, No chão onde o pai e o filho se encontram, No espaço acima, para onde os seus olhos convergem, No lugar onde o estandarte está adejando no amanhecer. Palavras! Palavras dos livros! O que sois vós? Palavras não mais para serem ouvidas e vistas, Minha canção está lá, no ar livre, e eu devo cantar, Com o estandarte e a flâmula adejando. Eu criarei a corda e nela me entrelaçarei, O desejo do homem e o desejo do bebê, eu os entrelaçarei também e colocarei vida, Colocarei a ponta aguda da baioneta, deixarei que as balas passem zunindo, (Como quem carrega um símbolo e o perigo para adiante no futuro, Bradando com voz de trombeta, Levantai-vos e estai conscientes! Estai conscientes e levantai-vos!) Derramarei o verso com correntes de sangue, repleto de volição, repleto de alegria, Então estarei solto, serei lançado para frente, irei e competirei, Agitando o estandarte e a flâmula.
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Flâmula

Sobe aqui, bardo, bardo, Sobe aqui, alma, alma, Sobe aqui, querida criança pequena, Para voar nas nuvens e nos ventos comigo e brincar com a luz imensurável.

Criança

Pai, o que é aquilo no céu acenando para mim com dedo comprido? E o que é que me diz com esse gesto?

Pai

Nada é isso que vês no céu, meu filho, E nada, nada mesmo é o que te diz — mas olha, meu querido, Olha para essas coisas fascinantes nas casas e vê os estabelecimentos comerciais que se abrem, Vê os veículos preparando-se para cruzar as ruas, carregando os produtos; Isso, a isso que grande valor se atribui e quanto se labuta por isso! E como isso é invejado por toda a terra!

Poeta

Avermelhado, róseo e fresco o sol está a pino; Fazendo flutuar, o mar corre na distância azul através de seus canais, Fazendo flutuar, o vento avança sobre os seios do mar, na direção da terra, O grande e constante vento do oeste ou do oeste pelo sul, Flutuando tão esperançoso com a espuma branca, como leite nas águas. Mas não sou o mar, nem o sol vermelho, Mas não sou o vento com um riso de menina, Nem o imenso vento que fortalece, nem o vento que açoita, Nem o espírito que sempre açoita seu próprio corpo em terror e morte, Mas sou aquele que, invisível, vem e canta, canta, canta, Aquele que rumoreja nos arroios e corre sob a chuva pelas terras,  med.00400.291.jpg Aquele que os pássaros conhecem nas manhãs das florestas e no início da noite, Aquele que as areias da praia e a onda sibilante conhecem, aquele estandarte e aquela flâmula, Lá em cima se agitando e se agitando.

Criança

Ó pai, ele está vivo, está povoado, há crianças lá, Ó agora parece-me que ele está falando com as suas crianças, Posso ouvi-las, elas falam comigo, ó que maravilhoso! Ó ele se estende, ele se espalha e corre tão veloz, ó meu pai, Ele é tão amplo que cobre o céu inteiro.

Pai

Cessa, cessa, minha tola criancinha, O que estás dizendo me enche de tristeza e muito me desagrada; Contempla com os demais, outra vez eu digo, contempla não os estandartes e as flâmulas no topo do mastro, Mas as calçadas bem feitas, contempla e registra as casas de paredes sólidas.

Estandarte e flâmula

Fala para a criança, ó bardo que vem de Manhattan, Para todas as nossas crianças, do norte ou do sul de Manhattan, Apontando, neste dia, deixando tudo o mais, para nós sobre tudo — e contudo não sabemos por quê, Pois o que somos nós, meros panos ou trapos lucrando nada, Apenas agitando-se ao vento?

Poeta

Eu não ouço nem vejo panos ou trapos apenas, Ouço a marcha dos exércitos, ouço as sentinelas desafiantes, Ouço os brados jubilosos de milhões de homens, ouço a Liberdade! Ouço o rufar dos tambores e o toque das trombetas, Eu mesmo me movo em todas as direções, erguendo-me ligeiro e voando,  med.00400.292.jpg Uso as asas do pássaro terrestre e uso as asas do pássaro marítimo e olho para baixo das alturas, Não nego os resultados preciosos da paz, vejo cidades populosas com riqueza incalculável, Vejo fazendas sem conta, vejo agricultores trabalhando em seus campos e celeiros, Vejo os mecânicos trabalhando, vejo edifícios em toda parte fundados, subindo ou acabados, Vejo os trens com os vagões ligeiros correndo pela estrada de ferro, puxados pelas locomotivas, Vejo as lojas, os armazéns de Boston, Baltimore, Charleston, Nova Orleans, Vejo longe, ao oeste, a imensa área dos grãos; fico ali, por um momento, pairando, Passo para as florestas de extração de madeira do Norte e para as plantações do Sul e outra vez para a Califórnia; Circulando pelo todo, vejo o lucro incontável, os eventos lotados de gente, os salários ganhos, Vejo a Identidade formada pela junção de trinta e oito espaçosos e altivos Estados (e muitos outros que virão), Vejo os fortes nos litorais em que estão os portos, vejo navios entrando e saindo; Então sobre tudo (sim! sim!), veja minha pequena e comprida flâmula com o formato de uma espada, Correndo agilmente erguida, indicando a guerra e a provocação — e agora as adriças ergueram-na, Ao lado de meu amplo estandarte azul, ao lado de meu estandarte estrelado, Descartando a paz sobre todo o mar e toda a terra.

Estandarte e flâmula

Porém, mais audível, mais alto, mais forte, bardo! Porém, pai, mais ampla a divisão! Não mais permita que nossas crianças julguem-nos ser riqueza e paz apenas, Podemos ser o terror e a carnificina, é o que somos agora, Agora não somos qualquer um desses Estados espaçosos e altivos (nem quaisquer cinco, nem dez), Nem mercado, nem armazém, nem instituição financeira na cidade,  med.00400.293.jpg Mas esses e todos, e a terra marrom e espargida, e as minas que estão no subterrâneo, são nossas, E as praias do mar são nossas, e os rios grandes e pequenos, E os campos que eles banham, e as colheitas e os frutos são nossos, Baías e canais e navios navegando, entrando e saindo, são nossos — enquanto nós pairamos sobre tudo, Sobre a área que se espalha abaixo, os três ou quatro milhões de milhas quadradas, as capitais, Os quarenta milhões de pessoas — ó bardo! Em vida e morte suprema, Nós, mesmo nós, daqui em diante ostentamos nosso mestria, no alto, bem acima, Não apenas para o presente, mas para mil anos cantando através de ti, Esta canção para a alma de uma pobre criança.

Criança

Ó meu pai, não me agradam as casas, Elas jamais serão para mim coisa qualquer, também não gosto do dinheiro, Mas gostaria de subir até lá, ó querido pai; daquele estandarte eu gosto, Como aquela flâmula eu poderia ser e devo ser.

Pai

Filho meu, tu me enches de angústia, Seres tu aquela flâmula seria algo muito perigoso, Pouco sabes sobre o presente e sobre o amanhã e para sempre, Não hás de ganhar coisa alguma, mas de te arriscar e de provar todas as coisas, Irás adiante para estar à frente das guerras — e ó tais guerras! — o que tens tu com elas? Com a paixão dos demônios, massacre, morte prematura?

Estandarte

Demônios e morte eu canto, então, Posto em tudo, sim, eu estarei em tudo, flâmula com forma de espada para a guerra, E um prazer novo e extático e o anelo palrado das crianças, Misturado com os sons da terra pacífica e com o líquido do mar que lava,  med.00400.294.jpg E os navios negros lutando no mar, envoltos em fumaça, E o frio gelado do longínquo, longínquo norte, com cedros e pinhos sussurrantes, E o rufar dos tambores e o som dos soldados marchando e o sol quente brilhando no sul, E as ondas do mar combinando-se sobre a praia no meu litoral leste e no meu litoral oeste também, E tudo o que há entre esses dois litorais e o meu Mississippi sempre correndo, com curvas e corredeiras, E meus campos de Illinois, e meus campos de Kansas, e os meus campos do Missouri, O Continente, devotando a inteira identidade sem reservar um átomo sequer, Derrama! Soterra aquele que pede, que canta, com todos e o abandono de todos, Fundindo e abraçando, clamando, devorando o todo, Não mais com lábio macio, nem com som musical dos lábios, Mas emergindo da noite, de fato, não mais a nossa voz persuasiva, Coaxando como corvos aqui ao vento.

Poeta

Meus membros, minhas veias se dilatam, meu tema é claro afinal, Estandarte tão amplo avançando, saindo da noite, canto-te altivo e resoluto, Rasgo por onde esperei longamente, por tempo demais, ensurdecido e cego, Minha audição e minha língua vieram até mim (uma pequena criança ensinou-me), Ouço de cima, ó flâmula da guerra, teu chamado irônico e tua ordenação, Insensato! Insensato! (porém a qualquer custo eu canto por ti), ó estandarte! Não és, de fato, as casas da paz, nem a prosperidade delas (se preciso for, tu novamente terás todas aquelas casas para destruí-las, Não pensaste em destruir aquelas casas valiosas, que estão de pé com firmeza, cheias de conforto, construídas com dinheiro, Podem elas continuar firmes, então? Nem por uma hora sequer, exceto se, acima de todas elas, tu te mantiveres de pé com firmeza.) Ó estandarte, não é o dinheiro tão precioso, nem a produção das fazendas, nem a nutrição dos bens materiais,  med.00400.295.jpg Nem lojas excelentes, nem o que é desembarcado pelos navios, Nem os soberbos navios movidos a vela ou a vapor, extraindo e carregando cargas, Nem a maquinaria, os veículos, os negócios, nem as receitas — mas tu, da forma em que te vejo daqui para frente, Saindo apressadamente da noite, trazendo teus grupos de estrelas (estrelas que crescem para sempre), Divisor da luz do dia és tu, cortando o ar, tocado pelo sol, medindo o céu, (Visto apaixonadamente e desejado por uma pobre criança, Enquanto os outros permanecem ocupados ou conversando espertamente, para sempre ensinando frugalidade, frugalidade.) Ó tu aí em cima! Ó flâmula, para onde vais ondulando como uma serpente sibilante, tão curiosa, Fora do alcance, uma idéia apenas, contudo furiosamente combatida, arriscando-se a uma morte sangrenta, amada por mim, Tão amado — ó tu, estandarte conduzindo o dia com estrelas trazidas da noite! Sem valor, objetos dos olhos, acima de tudo e demandando tudo — (dono absoluto de tudo) — ó estandarte e flâmula! Eu também deixo o resto — grande como és, não és nada — casas, máquinas são nada — eu não os vejo, Só consigo ver-te, ó flâmula guerreira! Ó estandarte tão grande, com listras, apenas tu eu canto, Agitado ao vento.

Erguei-vos, ó dias, de vossas profundezas insondáveis

1

Erguei-vos, ó dias, de vossas profundezas insondáveis, até que, mais altos, mais ameaçadores sejais arrebatados, Por muito tempo, pela ginástica de minha alma esfaimada, devorei o que a terra me deu, Por muito tempo vaguei pelas florestas do norte, por muito tempo assisti a queda do Niagara, Percorri as pradarias inteiras e dormi em seus seios, cruzei o Nevadas, cruzei os platôs, Subi as rochas elevadas ao longo do Pacífico, naveguei pelo mar, Naveguei através da tempestade, fui refrescado pela tempestade,  med.00400.296.jpg Assisti com alegria às entranhas ameaçadoras das ondas, Registrei as suas cristas bancas no ponto em que elas correm bem altas, encrespando, Ouvi o vento assobiar, vi as nuvens negras, Vi, por debaixo, o que surgiu e foi estruturado (ó soberbo! Ó selvagem como o meu coração, e poderoso!) Ouvi o trovão contínuo quando ele berrou após o raio, Notei os filetes delgados e dentados dos raios quando, repentinamente e velozes, em meio ao estrondo, eles perseguiram uns aos outros através do céu; Isso, e coisas semelhantes, eu, alvoroçado, vi — vi maravilhado e, entretanto, reflexivo e imperioso, Todo o poder ameaçador do globo erigido em minha volta, E, contudo, com minha alma fartei-me, eu, farto e feliz, orgulhoso.

2

Foi bem, ó alma — foi uma boa preparação a que me deste, Agora avançamos com nossa fome latente e mais ampla fome para nos preencher, Agora vamos em frente para receber o que a terra e o mar nunca nos deram, Não vamos através das florestas poderosas, mas pelas cidades, que são ainda mais poderosas, Algo está agora se derramando para nós, mais do que o Niagara, Torrentes de homens (fontes de regatos do Noroeste, sóis vós de fato inexauríveis?) O que, para as calçadas e domicílios daqui, foram aquelas tempestades das montanhas e do mar? O que pelas paixões eu testemunho hoje em minha volta? O mar se ergueu? O vento estava soprando o cachimbo da morte debaixo das nuvens negras? Vede! Das funduras mais penetráveis, algo mais mortal e selvagem, Manhattan se erguendo, avançando com face ameaçadora — Cincinnati, Chicago, desencadeados; O que era aquela forma volumosa que vi no oceano? Atentai para o que vem aqui, Como ela escala com pés e mãos ousadas — como colide! Como o verdadeiro trovão berra após o raio — como são brilhantes as luzes dos raios!  med.00400.297.jpg Como a Democracia avança com atitude de desesperada vingança, revelada em meio à escuridão por aquelas luzes dos raios! (Contudo, um triste grito de dor e um soluço baixo imaginei e ouvi, em meio à escuridão, Numa calmaria de confusão ensurdecedora.)

3

Troveja! Avança, Democracia! Ataca com um ataque vingativo! E ainda vos ergueis mais alto que nunca, ó dias, ó cidades! Batei com força maior, mais fortemente ainda, ó tempestades! Fizestes-me bem, Minha alma preparada nas montanhas absorve vossos fortes nutrientes imortais, Por muito tempo andei pelas minhas cidades, pelas minhas estradas do interior, em fazendas, somente meio satisfeito, Uma dúvida asquerosa, ondulando como uma cobra, rastejou no solo diante de mim, Acompanhando continuamente meus passos, voltando-se sobre mim com freqüência, ironicamente sibilando baixinho; As cidades que eu amava tanto abandonei e deixei, correndo para as certezas adequadas a mim, Faminto, faminto, faminto de energias primordiais e de coragem natural, Só com isso posso refrescar-me, só isso posso saborear, Esperei a explosão do fogo contido — na água e no ar esperei por longo tempo; Mas agora não mais espero, estou completamente satisfeito, estou empanturrado, Contemplei o verdadeiro raio, testemunhei minhas cidades elétricas, Vivi para ver o homem despedaçar-se e a América guerreira erguer-se, De agora em diante não mais buscarei o alimento das florestas solitárias do norte, Não mais andarei pelas montanhas ou navegarei no mar tempestuoso.

Virgínia — O Oeste

O nobre antepassado que caiu em dias maus, Eu o vi com a mão erguida, ameaçador, agitando-se, (Memórias de tempos idos em suspensão, amor e fé em suspensão.) A faca insana na direção da Mãe de Todos.  med.00400.298.jpg O filho nobre com passo firme avançando, Eu vi, saído da terra das pradarias, terra das águas de Ohio e de Indiana, Para fazer o salvamento, o robusto gigante apressa sua prole numerosa, Vestido de azul, suportando seus rifles fiéis em seus ombros. Então, a Mãe de Todos com voz calma fala, Por que, ó Rebelde (parece que ouço ela dizer), por que bater-se contra mim e por que buscar a minha vida? Quando tu mesmo garantes a minha defesa para sempre? Pois tu me deste Washington — e agora também estas.

Cidade dos navios

Cidade dos navios! (Ó negros navios! Ó navios ameaçadores! Ó lindos e bem delineados barcos, barcos a vapor e barcos a vela!) Cidade do mundo! (pois todas as raças estão aqui, Todas as pátrias da Terra fazem contribuições aqui.) Cidade do mar! Cidade das marés rápidas e cintilantes! Cidades cujas marés jubilosas continuamente se aceleram ou recuam, indo e vindo com remoinhos e espuma! Cidade dos embarcadouros e lojas — cidades de fachadas altas de mármore e ferro! Cidade orgulhosa e apaixonada — ardorosa, louca, extravagante cidade! Floresce, ó cidade — não apenas para a paz, mas sê autêntica, guerreira! Não temas — não te submetas a modelo algum, mas segue o teu próprio, ó cidade! Contempla-me, encarna-me tal como tenho te encarnado! Não tenho rejeitado coisa alguma que tu tens me oferecido — aqueles que tens adotado, tenho também adotado, Bom ou mau, eu nunca te questiono — amo-te — nada condeno em ti, Canto e celebro tudo o que é teu — contudo não celebro mais a paz, Na paz eu canto a paz, mas agora o tambor da guerra é meu, Guerra, guerra vermelha é minha canção através das ruas, ó cidade!
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A história do centenário

Voluntário de 1861-2 (no Washington Park, Brooklyn, assistindo ao centenário)

Dá-me tua mão, velho Revolucionário, O topo da montanha está próximo, faltam poucos passos (abram alas, senhores), Ao longo do caminho, tens-me acompanhado bem, apesar dos teus mais de cem anos de idade, Podes andar, velho homem, embora teus olhos quase não funcionem mais, Tuas faculdades te servem e agora devo fazê-las úteis a mim. Descansa, enquanto explico o significado da multidão que está em nossa volta, Abaixo, na campina, os recrutas fazem manobras e exercícios, Há o acampamento, um regimento partirá amanhã, Ouves os oficiais dando suas ordens? Ouves o estrépito dos mosquetes? Por que vem isso sobre ti agora, velho homem? Por que tremes e apertas a minha mão tão convulsivamente? As tropas estão apenas fazendo manobras, estão ainda rodeadas de sorrisos, Em torno delas, bem perto, os amigos bem vestidos e as mulheres, Enquanto, esplêndido e quente, o sol da tarde resplandece, Verde é a folhagem do verão, e a brisa brincando sopra fresca Sobre as orgulhosas e pacíficas cidades e sobre o braço de mar que há entre elas. Mas as manobras e a parada terminaram, os soldados marcham de volta para o quartel, Escuta apenas a aprovação dessas mãos! Ouve esse aplauso! As multidões caminham dividindo-se, dispersando-se — mas nós, velho homem, Não por acaso trouxe-te até aqui — devemos permanecer, Também falarás quando tua vez chegar e eu ouvirei e direi aos outros.
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O centenário

Não foi com terror que apertei tua mão, Mas repentinamente derramou-se sobre mim aqui, por todos os lados, E lá embaixo, onde os rapazes faziam seus exercícios militares, e nas ladeiras pelas quais eles correram, E onde as tendas estão montadas, e para onde quer que olhes, sul e sudeste e sudoeste, Sobre as montanhas, através dos vales e nas barras das florestas, E ao longo dos litorais, no mangue (agora cheio) veio novamente e, de súbito, com fúria, A lembrança do que há oitenta e cinco anos foi bem mais que uma simples parada que recebeu o aplauso de amigos, Contudo, uma batalha da qual participei pessoalmente — sim, muito tempo atrás, tomei parte dela, Andando, então, no topo desta montanha, neste exato solo. Sim, este é o solo, Meus olhos cegos, mesmo enquanto o contemplo repovoado por aqueles que estão nos túmulos, Pelos anos retrocedem, calçadas e casas sólidas desaparecem, Fortes e robustos, eles aparecem novamente, as antigas armas presas por argolas são montadas, Vejo as linhas de terra saliente estendendo-se do rio para a baía, Recordo a visão das águas, recordo as terras altas e as encostas, Aqui deitamo-nos acampados, foi também na época do verão. À medida que falo de tudo, lembro-me, lembro-me da Declaração, Ela foi lida aqui, para toda a parada militar, ela foi lida bem aqui, Cercado por seus oficiais, o General colocou-se bem no meio, ergueu sua espada desembainhada, Ela brilhou à luz de um sol forte, à vista do exército. Foi um ato corajoso, então — os navios de guerra ingleses tinham acabado de chegar, Podíamos avistá-los na parte baixa da baía, no local em que haviam lançado âncora, E as embarcações lotadas de soldados. Alguns dias depois eles desembarcaram, e então deu-se a batalha.  med.00400.301.jpg Vinte mil foram trazidos contra nós, Uma força veterana fornida com boa artilharia. Não conto agora tudo o que se deu na batalha, Mas uma brigada, de manhã bem cedo, foi enviada para enfrentar os casacos vermelhos, Conto o que se passou com aquela brigada, de como marchou firme, E por longo tempo e de quão bem confrontou a morte. Quem pensas estava marchando com implacável firmeza, confrontando a morte? Foi a brigada dos homens mais jovens, dois mil homens fortes, Criados na Virgínia e em Maryland, e a maioria deles conhecidos pelo General. Lépidos, eles seguiram em frente com passo apressado na direção das águas de Gowanus, Até que, de repente, apareceram os inimigos que haviam se escondido na floresta durante a noite, Os britânicos avançaram, vindos do leste e fazendo um círculo, atirando ameaçadores com suas armas, A brigada dos mais jovens foi dizimada à vontade pelo inimigo. O General testemunhou a cena desta montanha, Os jovens tentaram repetidas vezes, em desespero, sair da armadilha, Depois se agruparam, bem próximos uns aos outros, com sua bandeira erguida bem ao centro, Mas, ó aqui das montanhas víamos como o canhão cada vez mais reduzia a tropa! Aquele massacre ainda me faz doente! Vi a umidade transformar-se em gotas no rosto do General. Observei quando, angustiado, retorceu suas mãos. Enquanto isso os britânicos manobravam a fim de nos atrair para uma batalha aberta, Mas nós não ousamos confiar nas chances que tínhamos em um conflito desse tipo. Lutamos a luta em destacamentos,  med.00400.302.jpg Saindo bruscamente, lutamos em diversos pontos, mas em cada um deles a sorte estava contra nós, Nosso inimigo avançando, sempre conseguindo os melhores resultados, fizeram-nos voltar para a luta na montanha, Até que nos tornamos ameaçadores aqui, e então ele nos deixou. Esse foi o relato do avanço da brigada dos mais jovens, dois mil fortes, Dos poucos que voltaram, quase todos continuam no Brooklyn. Assim foi a primeira batalha de meu General, Sem mulheres a observar, nem o brilho do sol para aquecer, não terminou com aplausos, Ninguém nos aplaudiu aqui, naquele dia. Mas no escuro, em meio à cerração, no solo sob a chuva fria, Exaustos naquela noite, nós nos deitamos anulados e mal-humorados, Enquanto, desdenhosamente, muitos senhores arrogantes riam-se acampados contra nós, Todos juntos ouvindo, festejando, brindando com vinho a sua vitória. Tão melancólico e enevoado foi o dia seguinte, Mas na noite desse dia, a névoa subiu, a chuva cessou, Silencioso como fantasma, enquanto eles pensavam que sabiam onde ele estava, meu General recuou. Eu o vi próximo ao rio, Próximo às balsas, num ponto iluminado pelas tochas, apressando a embarcação; Meu General esperou até que os soldados e os feridos tivessem atravessado o rio, E então (era um pouco antes do sol nascer) estes olhos pousaram sobre ele pela última vez. Todos os demais pareciam estar tomados pelo desalento, Muitos, sem dúvida, pensaram em capitular. Mas quando meu General passou por mim, Quando ele ficou de pé em seu barco e olhou na direção do sol que chegava, Eu vi algo distinto de uma capitulação.
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Término

Basta, a história do Centenário termina, Ambos, o passado e o presente se interligaram, Eu mesmo, como um conector, como um cantador de um grande futuro, estou agora falando. E é este o chão que Washington pisou? E estas águas que cruzo diariamente, tantas vezes, são essas as águas que ele cruzou, Tão determinado na derrota quanto outros generais em suas mais orgulhosas vitórias? Devo copiar a história e enviá-la para o leste e para o oeste, Devo preservar aquele olhar tal como ele se lança sobre vós, rios do Brooklyn. Vê — quando o ano gira e retorna o fantasma retorna, É hoje o dia 27 de agosto e os britânicos desembarcaram, A batalha começa e se trava contra nós, contempla através da fumaça a face de Washington, A brigada da Virgínia e Maryland marchou para interceptar o inimigo, Eles são aniquilados, artilharia assassina posicionada nas montanhas ataca-os, Fila após fila cai, enquanto sobre os soldados tomba a bandeira, Aquele dia é batizado no sangue de muitos jovens feridos, Na morte, derrota, e nas lágrimas de irmãs e mães. Ah, montanhas e declives do Brooklyn! Percebo que sois mais valiosos que vossos donos supuseram; Em vossas paragens encontra-se um acampamento muito antigo, Firme, para sempre, está o acampamento daquela brigada morta.

A cavalaria cruzando um baixio

A cavalaria cruzando um baixio Em uma longa formação em linha, que avança em torno de ilhas verdes, Tomam um curso em ziguezague, seus braços brilham sob o sol, ouve-se um fragor musical,  med.00400.304.jpg Contemplai, no rio argênteo, ao espirro das águas os cavalos vadiando param para beber, Contemplai os homens de rosto moreno, cada grupo, cada pessoa é um quadro, os demais negligentes nas selas, Alguns emergem na margem oposta, outros acabam de entrar pelo baixio — enquanto, Escarlates, azuis e brancas como a neve, As bandeiras do porta-estandarte agitam-se alegremente ao vento.

Bivaque na encosta da montanha

Agora tenho diante de mim um exército viajante que pára, Embaixo um vale fértil se esparrama, com celeiros e os pomares do verão, Atrás, as encostas das montanhas com seus terraços naturais, abruptos, em pontos bem altos, Com rachaduras, com pedras, com cedros dependurados, com formas altas, encardidas, As numerosas fogueiras de acampamento espalhadas próximas e longe, algumas distantes nas montanhas, As silhuetas dos homens e dos cavalos, assomando, enormes, bruxuleantes, E por todo o céu — o céu! Longe, bem fora do alcance, espalhadas, rompendo o espaço, as eternas estrelas.

Corporações do exército em marcha

Com sua nuvem de escaramuçadores avançando, E o estalo de um único tiro como um açoite, e agora uma salva irregular, O enxame de exércitos exerce crescente pressão, as densas brigadas pressionam, Reluzindo vagamente, trabalhando debaixo do sol — os homens cobertos de pó, Em colunas erguem-se e caem com as ondulações do solo, Com artilharia entreposta — as rodas ribombam, os cavalos suam, À medida que as corporações avançam.
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Próximo à chama intermitente do bivaque

Próximo à chama intermitente do bivaque, Uma procissão circula em minha volta, solene, doce e vagarosa — mas antes eu noto, Das tendas do exército que dorme, a vaga silhueta dos campos e das florestas, A escuridão iluminada por focos de fogo inflamado, o silêncio, Como um fantasma próximo ou distante, uma figura ocasional se move, Os arbustos e as árvores (quando ergo meus olhos eles parecem estar me vigiando secretamente), Enquanto divagam os pensamentos numa procissão, ó gentis e assombrosos pensamentos, Da vida e da morte, do lar e do passado e dos amados, e dos que estão distantes; Uma solene e vagarosa procissão passava por ali quando me sentava no chão, Próximo à chama intermitente do bivaque.

Retorna dos campos, pai

Retorna dos campos, pai, aqui está a carta do nosso Pete, E vem para a porta da frente, mãe, aqui está uma carta de teu filho querido. Repara, é outono, Repara, onde as árvores, profundamente esverdeadas, mais amarelas e mais vermelhas, Refrescam e adoçam as vilas de Ohio com suas folhas flutuando ao vento moderado, Onde as maçãs amadurecem nos pomares e as uvas nas vinhas treliçadas, (Sentes o aroma das uvas nos vinhedos? Sentes o odor do trigo sarraceno no lugar em que as abelhas estiverem zunindo ainda agora?) Acima de tudo, repara, o céu tão calmo, tão transparente após a chuva, e com nuvens assustadoras, Também abaixo, tudo calmo, tudo vital e lindo, e a fazenda prospera bem.  med.00400.306.jpg Abaixo nos campos tudo prospera bem, Mas agora, dos campos, vem, pai, atende ao chamado da filha, E vem para a entrada, mãe, para a porta da frente, vem imediatamente. Tão rápido quanto pode, ela vem, sente um agouro, seus passos tremem, Não se demora para arrumar o cabelo, nem para ajustar seu chapéu. Abre com rapidez o envelope, Ó esta não é a letra de nosso filho e, contudo, está assinada com seu nome, Ó um estranho escreve pelo nosso filho querido, ó alma de mãe ferida! Todas as coisas dançam diante de seus olhos, visões do preto, ela capta apenas as palavras mais importantes, Sentenças partidas, tiros, ferimento no peito, cavalaria escaramuça, levado ao hospital, Não está bem agora, mas em breve estará melhor. Ah, agora a imagem única para mim, Em meio a todo o fértil e rico Ohio com todas as suas cidades e fazendas, Com o rosto pálido doente e com a mente deprimida, muito fraca, No batente de uma porta se apóia. Não chore, querida mãe, (a recém-crescida filha fala entre soluços, As irmãzinhas amontoam-se em volta caladas e pálidas,) Vê, queridíssima mãe, a carta diz que Pete ficará melhor em breve. Ai dele, pobre rapaz, ele nunca ficará melhor (nem talvez precise de melhoras, aquela alma corajosa e simples), Enquanto eles se reúnem na porta de sua casa ele já está morto, O único filho está morto. Mas a mãe precisa estar melhor, Ela, agora, magra e vestindo-se de preto, Durante o dia não toca em sua comida, depois, à noite, com o sono cortado, acordando a todo momento, Andando à meia-noite, chorando, saudosa com uma saudade profunda, Ó que ela possa se retirar sem ser notada, em silêncio, escapando da vida e recolhida, Para seguir e procurar e estar com o seu querido filho morto.
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Minha estranha vigilância no campo, certa noite

Minha estranha vigilância no campo, certa noite; Quando tu, meu filho e meu companheiro, caiu ao meu lado naquele dia, Um olhar apenas para ti, e teus queridos olhos voltaram-se para mim com um olhar que jamais esquecerei, Um toque de tua mão em minha mão, ó rapaz, alcançou-me quando caído estavas, Então prossegui e me envolvi na batalha, a batalha bem equilibrada, Até que tarde da noite, finalmente liberado para retornar ao local, segui meu caminho, Encontrei-te morto, tão frio, querido companheiro, encontrei teu corpo, filho, de beijos retribuídos (nunca mais retribuídos sobre a terra), Teu rosto descoberto sob a luz das estrelas, cena curiosa, fresco soprava o vento moderado da noite, Por muito tempo ali e, depois em vigília, senti vagamente em minha volta que o campo de batalha se estendia, Vigília assombrosa e vigília doce, ali, na fragrância da noite silenciosa, Mas nem uma lágrima caiu, nem mesmo um bem puxado suspiro, por muito, muito tempo olhei fixamente, Então, sobre a terra parcialmente me inclinando, sentei-me ao teu lado, apoiando meu queixo em minhas mãos, Passando horas doces, horas imortais e místicas contigo, querido companheiro — sem uma lágrima sequer, sem uma palavra, Vigília de silêncio, amor e morte, vigília por ti, meu filho e meu soldado, Tal como as estrelas no alto, silenciosas, que, indo para leste, roubaram as novas que subiam, Vigília final para ti, corajoso rapaz (não pude salvar-te, rápida foi a tua morte, Amei-te lealmente e cuidei de ti enquanto vivias, penso que certamente nos encontraremos outra vez), Até que no instante remanescente da noite, bem na hora da alvorada, Meu companheiro enrolei em seu cobertor, guardando bem suas formas, Dobrei bem o cobertor, fechando-o sobre a cabeça e cuidadosamente sobre os pés, E ali, banhado pela luz do sol que se erguia, em seu túmulo, em seu túmulo cavado rudemente, meu filho depositei,  med.00400.308.jpg Terminando assim a minha estranha vigília, vigília da noite e confuso campo de batalha, Vigília pelo menino de beijos retribuídos (nunca mais retribuídos na terra), Vigília por um companheiro subitamente morto, vigília de que nunca me esqueço, de como no amanhecer Ergui-me do solo frio e enrolei bem o meu soldado em seu cobertor, Enterrando-o no lugar em que caiu.

Uma marcha em colunas sob pressão e a estrada desconhecida

Uma marcha em colunas sob pressão e a estrada desconhecida, Uma rota através de uma mata cerrada com passos abafados na escuridão, Nosso exército anulado por severas baixas e os taciturnos sobreviventes recuando, Até depois da luz fraca da meia-noite, sobre nós as luzes de um edifício mal iluminado, Chegamos a uma clareira e paramos ao lado do edifício mal iluminado, Era uma antiga e velha igreja, situada numa encruzilhada, agora transformada em um hospital improvisado, Entrando apenas por um minuto vejo algo que transcende todas as pinturas e poemas que já vi, Sombras do mais escuro breu, apenas cortadas pela luz movediça das velas e das lamparinas, E, ao lado de uma estática tocha betuminosa que emite uma chama vermelha e nuvens de fumaça, Próximos a ela, miríades, grupos de formas que enxergo vagamente no chão, alguns deitados nos bancos da igreja, A meus pés, mais distintamente, um soldado, um simples rapaz, arriscado a morrer em virtude da perda de sangue (foi atingido por uma bala no abdômen) Estanco o sangue temporariamente (a face do jovem está branca como um lírio) Então, antes de partir, faço uma varredura da cena com meus olhos, ansioso para absorver tudo, Rostos, variedades, posturas além do que pode ser descrito, a maioria em obscuridade, alguns deles mortos,  med.00400.309.jpg Cirurgiões operando, assistentes segurando lanternas, o cheiro do éter, o odor de sangue, A multidão, ó a multidão das formas sangrentas, o pátio externo repleto também, Alguns no chão duro, alguns em pranchas ou macas, alguns suando em espasmos de morte, Um grito ocasional ou choro, o médico grita ordens ou chama por alguém, O brilho dos pequenos instrumentos de aço refletindo o brilho das tochas, Disso me recordo quando canto, vejo novamente as formas, sinto o odor, Então escuto lá fora as ordens dadas, Em frente, homens, em frente; Mas, antes, curvo-me para o rapaz moribundo, seus olhos abertos, um meio sorriso ele me dá, Então seus olhos se fecham, calmamente, e eu corro adiante na escuridão, Retomando, marchando, sempre na escuridão marchando, em frente, em colunas, Marchando ainda pela estrada desconhecida.

Uma visão no acampamento no amanhecer cinzento e sombrio

Uma visão no acampamento no amanhecer cinzento e sombrio, Quando saio de minha tenda bem cedo, sem sono, Bem devagar, ando no ar fresco e frio pelo caminho próximo à tenda do hospital, Três formas vejo deitadas sobre macas, trazidas até ali, deitadas ao relento, Sobre cada uma o cobertor disposto, um grande cobertor de lã marrom, E um cobertor cinzento e pesado, fechando-se, tudo cobrindo. Curioso, paro e fico em silêncio, Então, com dedos leves, ergo o cobertor com aquele que está mais próximo da face; Quem és tu, homem velho, tão lúgubre e horrendo, com cabelos bem cinzentos e fundas olheiras?  med.00400.310.jpg Quem és tu, querido companheiro? Então, ando na direção do segundo — quem és tu, meu filho e querido? Quem és tu, doce menino com as bochechas ainda florescendo? Então, para o terceiro — um rosto nem de criança nem de velho, muito calmo, de uma bela cor branca e amarela de marfim; Jovem homem, creio que te conheço — acho que essa é a face do próprio Cristo, Morto e divino e irmão de todos, e aqui novamente ele jaz.

Quando aborrecido andei sem rumo pelas florestas da Virgínia

Quando aborrecido andei sem rumo pelas florestas da Virgínia, Ao som da música de folhas sussurrantes chutadas por meus pés (pois era outono), Observei que havia o túmulo de um soldado aos pés podia eu tudo compreender), À pausa do meio-dia, ergue-se! Sem tempo a perder — contudo esse sinal deixado, Em uma tabuleta rabiscada e pregada numa árvore próxima ao túmulo, Corajoso, cauteloso, verdadeiro e meu amável companheiro. Há muito, muito eu cismo e, então, por meu caminho vou perambulando, Muitas mudanças de estação virão e muitas cenas da vida, E, contudo, certas vezes pela mudança das estações e das cenas, abrupto, solitário ou em meio às ruas povoadas, Vem a mim o túmulo do soldado desconhecido, vêm os letreiros rudes das florestas da Virgínia, Corajoso, cauteloso, verdadeiro e meu amável companheiro.

Não foi o comandante

Não foi o comandante que se encarregou de trazer o seu navio para o porto, embora surrado e muitas vezes confundido; Não foi o desbravador penetrando pelo interior, cansado e saudoso,  med.00400.311.jpg Tostado pelos desertos, gelado pela neve, encharcado pela água dos rios, perseverando até alcançar seu destino, Mais do que tenho encarregado a mim mesmo, atendido ou não atendido, para compor uma marcha para estes Estados, Para o chamado de uma batalha, pegando em armas se necessário for, por séculos a partir de agora.

O ano que tremeu e cambaleou

Ano que tremeu e cambaleou embaixo de mim! Teu vento de verão foi quente o suficiente, contudo o ar que respirei me congelou, Uma sombra densa caiu toldando o brilho do céu, escurecendo-me, Devo trocar minhas canções triunfantes? Disse eu a mim mesmo, Devo de fato aprender a cantar os frios hinos fúnebres dos confusos? E os taciturnos hinos da derrota?

O médico de feridas

1

Um velho homem vergado, venho por entre novas faces, Olhando para os anos que passaram, retomando-os em resposta às crianças, Vem contar, velho homem, para os jovens e para as virgens que me amam, (Erguido e irado, tinha pensado em tocar o alarme e urgir uma guerra inexorável, Mas logo meus dedos falharam-me, abaixei minha face e resignei-me A sentar-me próximo dos feridos e consolá-los ou a observar os mortos em silêncio.) Anos depois dessas cenas, dessas furiosas paixões, essas oportunidades, De insuperáveis heróis (foi um dos lados muito valente? O outro teve igual valentia.) Agora, observa novamente, pinta os mais poderosos exércitos da terra, Desses exércitos tão ágeis, tão assombrosos, o que viste para nos contar? Qual deles permanece contigo por mais tempo e com maior profundidade? De curiosos alarmes,  med.00400.312.jpg De duras lutas enfrentadas ou de cercos tremendos, qual permanece mais profundamente?

2

Ó virgens e rapazes que amo e que me amam, Pedis os mais estranhos de meus dias, os quais, repentinamente, vossa fala me faz recordar, Soldado desperto, eu chego após realizar uma longa marcha, coberto de suor e poeira, Na brecha do tempo venho, lanço-me na liça, grito em voz alta na correria da carga sucessiva, Entro nas ações de captura — contudo vede, como um rio que corre veloz tudo isso se esvai, Passam e se vão, eles se esvaem — não me fixo nos perigos nem nas alegrias dos soldados, (De ambos me lembro bem — muitas foram as dificuldades, poucas as alegrias e, contudo, eu estava satisfeito.) Mas em silêncio, nas projeções de meus sonhos, Enquanto o mundo de lucros e de aparências e de folgança continua, Bem cedo o que findou é esquecido e ondas lavam das marcas na areia, Retornando com joelhos dobrados entro pelas portas, (quanto a vós, aí em cima, Quem quer que sejais, segui sem barulho e sede fortes de coração.) Suportando os curativos, água e esponjas, Sigo direto e apressado para onde estão os meus feridos, Onde eles jazem no chão, no local para o qual foram trazidos após a batalha, Onde seu inestimável sangue tinge de vermelho a relva no solo, Ou nas fileiras da tenda do hospital, ou sob o telhado do hospital, Para as longas fileiras de camas pelas quais circulo de uma ponta a outra, De cada um e de todos, um após o outro, me aproximo, sem pular um único deles, Um assistente anda comigo, segurando uma bandeja, ele carrega um balde de refugo Que em pouco tempo estará cheio de farrapos manchados de sangue e sangue, e será esvaziado e cheio outra vez.  med.00400.313.jpg Avanço, paro, Com joelhos dobrados e mão estável para curar feridas, Sou firme com cada um, as dores são agudas e contudo inevitáveis, Um deles vira-se para mim, em seus olhos há um pedido de auxílio — pobre garoto! Nunca te conheci, Porém penso que não poderia deixar de morrer por ti neste momento, se isso pudesse te salvar.

3

Para frente, sigo (abrindo portas do tempo! abrindo portas do hospital!) A cabeça esmagada eu curo (pobre mão louca, não tires a bandagem) O pescoço do homem da cavalaria com uma bala atravessada examino, Difícil, a respiração vem em espasmos, os olhos já bastante fixos e, contudo, a vida luta duramente para se manter, (Vem, doce morte! Sê convencida, ó linda morte! Por misericórdia, vem logo.) Do coto do braço, a mão amputada, Desfaço o curativo coagulado, removo o sangue empapado, lavo a matéria e o sangue, De volta para o seu travesseiro, o soldado inclina-se com o pescoço curvado e a cabeça caindo para o lado, Seus olhos estão fechados, sua face está pálida, ele não ousa olhar para o toco ensangüentado, E por isso ainda não o viu. Penso uma ferida no lado, profunda, profunda, Mas em um dia ou dois, vejo o curativo desagastado e afundando, E as entranhas amarelas e azuladas à mostra. Penso o ombro perfurado, o pé com o ferimento de bala, Limpo aquele que tem dor persistente e pútrida gangrena, tão enjoativo, tão ofensivo, Enquanto o assistente permanece atrás de mim e ao meu lado, segurando uma bandeja e um balde. Sou dedicado, não desisto, O fêmur fraturado, o joelho, o ferimento abdominal, Isso e mais eu curo com mão impassível (e contudo no fundo de meu coração há um fogo, uma chama ardente.)
 med.00400.313.jpg

4

Assim, em silêncio, em projeções de sonhos, Retornando, retomando, abro meu caminho através dos hospitais, Os machucados e feridos pacifico com mão que acalma, Sento-me ao lado dos que não conseguem descansar na escuridão da noite inteira, alguns são tão jovens, Alguns sofrem tanto, lembro-me da experiência doce e triste, (Muitos braços adoráveis de soldados, colocados sobre este pescoço, cruzaram-se e descansaram, Muitos beijos de soldados vivem nestes lábios barbados.)

Por muito tempo, tempo demais, América!

Por muito tempo, tempo demais, América, Viajando por estradas planas e pacíficas, tu aprendeste com as alegrias e com a prosperidade apenas, Mas agora, ah, agora, aprendes com as crises de angústia, avançando, atracando-se ao teu mais medonho destino, sem recuar, E como conceber e mostrar ao mundo o que teus filhos, em massa, realmente são, (Pois quem além de mim já concebeu o que teus filhos, em massa, realmente são?)

Dá-me o sol esplêndido e silencioso

1

Dá-me o sol esplêndido e silencioso com todos os seus raios estonteantes, Dá-me o fruto maduro outonal e vermelho do pomar, Dá-me um campo no qual cresça a relva não podada, Dá-me uma pérgula, dá-me a uva treliçada, Dá-me o milho e o trigo fresco, dá-me animais que se movam com serenidade, ensinando satisfeitos, Dá-me noites em perfeito silêncio como nos platôs elevados, a oeste do Mississippi, enquanto miro as estrelas no céu, Dá-me, perfumado ao amanhecer, um jardim de lindas flores onde eu possa andar sem ser incomodado, Dá-me como esposa uma mulher de seios doces de quem jamais deveria me cansar,  med.00400.315.jpg Dá-me um filho perfeito, dá-me um lugar afastado do barulho do mundo, uma vida doméstica rural, Dá-me que eu cante canções espontâneas em solidão, para os meus ouvidos somente, Dá-me a solidão, dá-me a Natureza, dá-me novamente, ó Natureza, a tua primitiva sanidade! É necessário que eu tenha tudo isso (cansado com os estímulos incessantes, e atormentado pela rivalidade da guerra), Tenho procurado tudo isso incessantemente, pedindo, elevando os pedidos de meu coração, Enquanto ainda faço tal pedido, sem cessar, mantenho-me junto à minha cidade, Dia após dia e ano após ano, ó cidade, andando por tuas ruas, Onde me prendes, acorrentado por um determinado tempo, recusando soltar-me, E ainda que me alimentes com abundância, enriquecendo minha alma, aquilo que me concedes para sempre são faces (Ó vejo tudo aquilo de que tentei me libertar confrontando-me, revertendo meu choro, Vejo minha própria alma atropelando tudo o que pedi.)

2

Guarda teu esplendor, sol silencioso, Guarda tuas florestas, ó natureza, e os locais ermos próximos das florestas, Guarda teus campos de trevo e de capim rabo-de-gato e teus campos de milho e teus pomares, Guarda os campos de trigo sarraceno onde zumbem as abelhas do nono mês; Dá-me faces e ruas — dá-me estes fantasmas incessantes e sem fim por onde passam os trotadores! Dá-me olhos intermináveis — dá-me mulheres — dá-me companheiros e amantes aos milhares! Deixa-me ver novos deles todos os dias — deixa-me tomar novos deles pela mão todos os dias! Dá-me tais espetáculos — dá-me as ruas de Manhattan! Dá-me Broadway, com os soldados marchando — dá-me o som das trombetas e os tambores! (Os soldados em companhias e regimentos — alguns iniciando a carreira, enxaguados e afoitos,  med.00400.316.jpg Alguns, terminando, retornando em batalhões minguados, jovens e, contudo, já muito velhos, desgastados, marchando, sem nada mais perceber.) Dá-me os litorais e embarcadouros, pesadamente enfeitados de navios! Ó isso para mim! Ó saciando uma vida intensa, pela variedade! A vida do teatro, dos bares, dos grandes hotéis, para mim! A taverna do barco a vapor! A excursão lotada por mim! A procissão à luz de tochas! A densa brigada unida para a guerra, com as carroças empilhadas de militares seguindo; Povo, sem fim, em correntes, com vozes fortes, paixões, cortejo cívico, As ruas de Manhattan com suas poderosas palpitações, com a batida dos tambores, como agora, O coro sonoro e sem fim, a dinâmica e o estrépito dos mosquetes (e até mesmo a visão dos feridos), As multidões de Manhattan, com seu turbulento coro musical! Rostos de Manhattan e olhos eternamente para mim.

Hino fúnebre para dois veteranos

O último raio de sol Cai leve ao fim do dia de descanso, Aqui na calçada e ali, além, ele olha Para um túmulo duplo recém-terminado. Vê, a lua ascendendo, Sobe do leste a argêntea e redonda lua, Linda sobre os telhados, sinistra, fantasmagórica lua, Imensa e silenciosa lua. Vejo uma triste procissão, E ouço o som de clarinetes vindo, Todos os canais das ruas da cidade estão se enchendo Com lágrimas e vozes. Ouço o rufar dos tambores grandes, E os tambores menores ainda zumbindo, E os toques dos grandes tambores convulsivos Atingem-me, atravessam-me.  med.00400.317.jpg Pois o filho é trazido com o pai, (No posto mais avançado entre as fileiras, caíram ao assalto ameaçador, Dois veteranos, filho e pai, caindo juntos, E o túmulo duplo que os espera.) Agora, mais perto os clarinetes tocam, E os tambores ainda mais convulsivos batem, E a luz do dia sobre a calçada desvaneceu inteiramente, E a forte marcha da morte que me envolve. No céu do leste balizando, O triste e vasto fantasma se move iluminado, (É a face transparente e ampliada de uma mãe, Crescendo cada vez mais cintilante no céu.) Ó forte marcha da morte, satisfazes-me! Ó lua imensa com tua face argêntea que me acalma! Ó meu par de soldados! Ó meus veteranos passando para o funeral! O que tenho dou-vos também. A lua dá-vos a luz, E os clarinetes e os tambores dão a sua música, E meu coração, ó meus soldados, meus veteranos, Meu coração vos dá amor.

Sobre a carnagem rosa, uma voz profética

Sobre a carnagem rosa, uma voz profética, Não vos desanimeis, a afeição há de ainda resolver a questão da liberdade, Aqueles que se amam hão de se tornar invencíveis, Hão ainda de fazer de Colúmbia uma vitoriosa. Filhos da Mãe de Todos, sereis ainda vitoriosos, Ainda rireis para escarnecer de todos os ataques dos demais da terra. Nenhum perigo há de estorvar os amantes de Colúmbia,  med.00400.318.jpg Se necessário for, mil hão de duramente se imolar por um. Um de Massachusetts há de ser o companheiro de um missourian, Uma do Maine, uma da quente Carolina e outra sendo uma oregonesa serão uma tríade de amigas, Mais preciosas umas para as outras do que todas as riquezas da terra. Para o Michigan, perfumes da Flórida hão de gentilmente vir, Não o perfume das flores, um perfume mais doce, que flutue além da morte. Há de se tornar costumeiro nas casas e nas ruas ver a aflição do homem, Os mais intimoratos e rudes hão de tocar-se face a face, levemente, Os amantes serão a condição da Liberdade, A sustentação da eqüidade será o companheiro. Isso há de vos ligar e de vos unir, fazendo-vos mais fortes do que argolas de ferro, Eu, extático, ó parceiros! Ó terras! Com o amor dos amantes atai-vos. (Pensastes que poderíeis ser ligados por advogados? Ou por um acordo no papel? Ou por braços? Não, nem o mundo, nem qualquer coisa que viva, pode assim se ligar.)

Vi o velho General na baía

Vi o velho General na baía, (Velho como ele era, seus olhos cinzentos brilhavam ainda em batalha, como estrelas,) Seu pequeno batalhão estava agora inteiramente recolhido, em seus trabalhos, Ele chamou voluntários para enfrentar as linhas do inimigo, numa emergência desesperada, Vi mais de cem adiantando-se das linhas, mas apenas dois ou três foram selecionados, Vi quando receberam suas ordens à parte, ouviram cuidadosamente, o ajudante estava muito sério, Vi quando partiram com entusiasmo, arriscando, livremente, suas vidas.
 med.00400.319.jpg

A visão dos artilheiros

Enquanto minha esposa está deitada ao meu lado, dormitando, e as guerras terminaram há muito, E minha cabeça descansa no travesseiro em casa, e a meia-noite vazia passa, E através do silêncio, através da escuridão, eu ouço, apenas ouço, a respiração de meu filho, Lá no quarto, quando acordo, essa visão vem sobre mim; A luta abre-se lá e então, em uma fantasia irreal, Os escaramuçadores começam, eles rastejam em frente, ouço seus sons irregulares, Ouço o som dos diferentes mísseis, o rápido s-h-s! s-h-s! das balas dos rifles, Vejo as cápsulas explodindo deixando pequenas nuvens brancas, ouço as grandes cápsulas zunindo quando passam, A metralha como o zunido e o sussurro do vento através das árvores (tumultuosa, a luta se enraivece), Todas as cenas das baterias se erguem em detalhe diante de mim novamente, Os choques e a fumaça, o orgulho que os homens tem de suas armas, O armador-chefe enraivecido avista sua arma e seleciona uma espoleta para a hora certa, Depois de disparar, vejo-o apoiar-se de lado para olhar com curiosidade o efeito de seu tiro, Em todos os outros lugares, ouço o grito dos regimentos atirando (o jovem coronel lidera sozinho o grupo com a espada brandida), Vejo as brechas abertas pela salva do inimigo (rapidamente restauradas, sem demora) Respiro a fumaça sufocante, depois as nuvens planas adejando baixo e escondendo tudo; Agora uma estranha calmaria por alguns segundos, nenhum tiro vindo de ambos os lados, Depois recomeça o caos mais alto do que nunca, com chamadas ansiosas e ordens dos oficiais, Enquanto de algum lugar distante do campo o vento faz chegar aos meus ouvidos o som de aplausos (algum acontecimento especial), E sempre o som do canhão longe ou perto (erguendo até mesmo em  med.00400.320.jpg sonhos uma exultação diabólica e toda a velha alegria louca de minha alma), E sempre a pressa da artilharia mudando de posição, baterias, cavalaria, movendo-se até este ponto e para além, (Aos que caem, aos que morrem, não dedico atenção; aos feridos, com sangue pingando e vermelhos, não dedico atenção, alguns da retaguarda estão claudicantes) Fuligem, calor, pressa, ajudantes de campo galopando ou correndo, Com o tropel dos pequenos exércitos, a advertência sonora s-s-t dos rifles (esses, em minha visão, ouço ou vejo), E bombas explodindo no ar, e à noite os foguetes de cores variadas.

Etiópia saudando as cores

Quem és tu, mulher escura, tão antiga e quase não humana, Com tua cabeça vestida em turbante de lã branca e com pés descalços e ossudos? Por que ao te ergueres aqui, na beira da estrada, saúdas as cores? (Isso se dá enquanto nosso exército atravessa as areias e os pinhos da Carolina, Saída da porta de tua choupana, tu, Etiópia, vens a mim, Quando eu, como o ousado Sherman, marcho no rumo do mar.) Eu, Mestre, tem cem anos que fui arrancada de meus pais, Uma criancinha, me pegaram como pegam um animal selvagem, Então me trouxeram através do mar, o cruel senhor de escravos trouxe. Nada mais ela diz, mas deixa-se ficar o dia todo, O turbante que sustenta no alto de sua cabeça meneia e gira seus olhos escuros, Fazendo cortesias para o regimento, enquanto passam os porta-estandartes. Quem é essa mulher decidida, tão ofuscada, quase não humana? Por que menear tua cabeça com o turbante preso, amarelo, vermelho e verde? São as coisas tão estranhas e maravilhosas, essas que vês e que tens visto?
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A juventude não me pertence

A juventude não me pertence, Nem a delicadeza, não posso lograr o tempo com a lábia, Desastrado na sala de estar, um mau dançarino, nada elegante, Constrangido e imóvel ao sentar-me com o círculo social dos eruditos, pois não é para mim isso de aprender normas, Beleza, conhecimento, normas... nada disso é para mim — e contudo há umas duas ou três normas para mim, Já nutri os feridos e consolei muitos soldados moribundos, E nos intervalos, esperando ou em meio ao campo de batalha, Compus estas canções.

Corrida de veteranos

Corrida de veteranos — corrida de vitoriosos! Corrida da terra, pronta para conflitos — corrida da marcha conquistadora! (Não mais a corrida da credulidade, durável e equilibrada corrida) Corrida que desde agora não obedece a qualquer lei, a não ser a própria lei, Corrida da paixão e da tempestade.

Mundo, preste bem atenção

Mundo, preste bem atenção, estrelas de prata apagando, Cor leitosa rasgada, tecido branco descolando, Carvão trinta e oito, funesto e queimando, Escarlate, significativo, advertência para não tocar, Agora, e daqui em diante, exibidos nestes litorais.

Ó rapaz dos prados de rosto bronzeado

Ó rapaz dos prados de rosto bronzeado, Antes de vires para o acampamento chegaram muitos presentes de boas-vindas,  med.00400.322.jpg Louvores e presentes vieram e comida nutritiva, até que, afinal, entre os recrutas, Vieste, taciturno, sem nada para dar — nós, contudo, nos entreolhamos, Quando, vê! deste-me mais que todos os presentes do mundo.

Olha para baixo, lua bela

Olha para baixo, lua bela, e banha esta cena, Pobre nimbo da noite, suavemente inundando as faces cadavéricas, intumescidas, púrpuras, Nos mortos, em suas costas, com braços lançados para fora, Derrama teu nimbo sem cor, sagrada lua.

Reconciliação

No mundo inteiro, linda como o céu, Linda aquela guerra e todos os seus feitos de carnificina devem ser inteiramente perdidos no tempo, Que as mãos das irmãs Morte e Noite incessantemente lavam de novo e sempre outra vez, com suavidade, este mundo sujo; Pois o meu inimigo está morto, um homem divino, como eu, está morto, Olho para onde ele está caído com o rosto pálido e imóvel em seu caixão — aproximo-me, Inclino-me e toco levemente os meus lábios em sua face branca, no caixão.

Solene, como de um em um

(Washington, 1865)

Solene, como de um em um, Quando as fileiras retornando esgotadas e suadas, quando os homens desfilam pelo lugar em que estou, Quando as faces por trás das máscaras aparecem, quando olho rapidamente para as faces estudando as máscaras, (Quando olho rapidamente para cima, para fora desta página, estudando-te, caro amigo, quem quer que sejas)  med.00400.323.jpg Quão solene é o pensamento de minha alma sussurrante para cada uma das fileiras, e para ti, Vejo atrás de cada máscara a surpresa de uma alma afim, Ó a bala jamais pode matar aquilo que realmente és, caro amigo, Nem a baioneta perfurou o que és realmente; A alma! Vejo-te, grande como qualquer outra, tão boa quanto a melhor, Esperando segura e satisfeita, pois bala alguma poderia jamais matar-te, Nem a baioneta pode perfurar-te, ó amiga.

Quando repouso minha cabeça no teu colo, companheiro

Quando repouso minha cabeça no teu colo, Retomo a confissão que te fiz, o que te disse ao ar livre retomo, Sei que sou incansável e que faço outros incansáveis também, Sei que minhas palavras são armas cheias de perigo, cheias de morte, Pois confronto a paz, a segurança e todas as leis estabelecidas para desestabelecê-las, Sou mais determinado porque tudo se negou a mim do que pelo que já poderia ter tido, se tudo me aceitasse, Não observo com atenção e nunca observei com atenção qualquer dessas experiências, cuidados, maiorias ou o ridículo, E a ameaça daquilo que é conhecido como inferno não é nada para mim, E a atração daquilo que é chamado de céu é pouco ou nada para mim; Querido companheiro! Confesso que te tenho impelido a seguir comigo e ainda dou-te estímulo sem ter a mínima idéia de qual será o nosso destino, Ou se seremos vitoriosos ou inteiramente suprimidos e derrotados.

Delicado agrupamento

Delicado agrupamento Delicado agrupamento! Bandeira de vida próspera! Que recobre todas as minhas terras — que demarca todos os meus litorais!  med.00400.324.jpg Bandeira da morte! (como te observei pressionando através da fumaça da batalha! Como te ouvi agitada e sussurrante, tecido desafiador!) Bandeira azul-celeste — bandeira ensolarada, salpicada dos orbes noturnos! Ah, minha beleza argêntea — ah, minha lã branca e carmesim! Ah, cantar a tua canção, minha poderosa matrona! Minha sagrada bandeira, minha mãe.

Para um certo civil

Pediste-me rimas doces? Procuras as rimas pacíficas e lânguidas dos civis? Achaste a canção que entoei anteriormente difícil de acompanhar? Pois eu não estava cantando anteriormente para que tu pudesses seguir, para que entendesses, nem mesmo agora; (Tive a mesma origem que a guerra, Os intermitentes rufos dos tambores das corporações são sempre música doce para mim, muito amo o hino fúnebre marcial, Com lamentações vagarosas e palpitações convulsivas, conduzindo o funeral dos oficiais.) O que é, para alguém como tu, de qualquer modo, um poeta como eu? Assim sendo, abandona meus trabalhos, E ilude-te com aquilo que podes compreender e com os tons do piano, Pois a ninguém iludo e jamais poderás entender-me.

Contempla, vitoriosa sobre os picos

Contempla, vitoriosa sobre os picos, De onde tu, com semblante poderoso, olhas fixamente para o mundo, (O mundo, ó Liberdade, que em vão conspirou contra ti) Das incontáveis fainas sitiantes, depois de superar todas elas, Dominante, com o estonteante sol em torno de ti, Ostentas agora, intocável em saúde imortal e florescência — contemplas, nestas horas supremas, Em nenhum poema orgulhoso, cantando, te apresento, nem no domínio de versos arrebatadores,  med.00400.325.jpg Mas num agrupamento que contém a escuridão da noite e ferimentos que gotejam sangue, E salmos de morte.

Espírito cuja obra está completa

(Cidade de Washington, 1865)

Espírito cuja obra está completa — espírito das horas aterradoras! Antes de partires, descolorem-se aos meus olhos tuas florestas de baionetas; Espírito dos mais ameaçadores medos e de dúvidas (porém, sempre avante e firme e insistente), Espírito de muitos dias solenes e de muitas cenas selvagens — espírito elétrico, Que com voz ressonante através da guerra, agora finda, como um fantasma incansável esvoaçou, Excitando a terra com o sopro da chama, enquanto rufas e rufas, ó tambor, Agora, como o som do tambor, vazio e áspero até o último, reverbera em minha volta, Como as tuas fileiras, tuas fileiras imortais, retornam, retornam das batalhas, Quando os mosquetes dos jovens ainda se apóiam em seus ombros, Quando olho para as baionetas eriçadas sobre seus ombros, Quando aquelas baionetas inclinadas, florestas inteiras de baionetas aparecendo na distância, se aproximam e passam adiante, retornando para casa, Movendo-se com passo constante, balançando para frente e para trás, para a direita e para a esquerda, Todas juntas subindo e descendo enquanto os passos mantêm a cadência; Espírito das horas que conheci, todo agitado e vermelho em um dia, mas pálido como a morte no dia seguinte, Antes de partires, toca minha boca, aproxima teus lábios, Deixa comigo as tuas pulsações de ira — lega-as a mim —, enche-me de correntes convulsivas, Deixa que se abrasem e se empolem em minhas canções quando partires, Deixa que elas te identifiquem com o futuro nestas canções.
 med.00400.326.jpg

Adeus a um soldado

Adeus, ó soldado, Tu, da rude campanha (aquela que compartilhamos), A rápida marcha, a vida do acampamento, As quentes disputas das opostas vanguardas, as longas manobras, Vermelhas batalhas com seus massacres, o estímulo, o poderoso e terrífico jogo, Arrebata, de todos os valentes corações dos homens, os comboios do tempo através de ti e, tal como os teus, todos cheios De guerra e da expressão da guerra. Adieu, querido companheiro, Tua missão está completa — mas eu, mais bélico, Eu e esta minha alma contenciosa, Ainda presos em nossas próprias campanhas, Através de estradas nunca trilhadas, com emboscadas preparadas por oponentes, Através de muitas derrotas agudas e muitas crises, freqüentemente abafadas, Aqui marchando, sempre marchando em frente, uma guerra lutada até o fim — sim, aqui, Para que mais ameaçadoras, mais pesadas batalhas ganhem expressão.

Volta, ó Liberdade

Volta, ó Liberdade, pois a guerra terminou, Vem a partir dela e de hoje em diante expande-te, sem hesitações, resolutamente, varrendo o mundo, Volta de terras retrospectivas, registrando provas do passado, Dos cantores que cantam as glórias rebocadas do passado, Dos cantos do mundo feudal, os triunfos dos reis, escravidão, casta, Volta ao mundo, aos triunfos reservados e aos que hão de vir — desiste daquele mundo atrasado, Deixa para os cantores de até agora, dá a eles o passado rebocado, Mas o que resta, resta para os que cantam por ti — as guerras do porvir serão por ti,  med.00400.327.jpg (Olhe como as guerras do passado se submeteram devidamente a ti e as guerras do presente também se submetem;) Então retorna e não fiques alarmada, ó Liberdade — volta a tua face imorredoura Para onde o futuro, maior do que todo o passado, Está, rapidamente e com certeza, se preparando para ti.

Na direção do solo forrado de folhas caminham

Na direção do solo forrado de folhas caminham clamando, e eu canto para o fim, (De minha tenda saio definitivamente, afrouxando, tirando os nós das cordas da tenda,) No frescor do ar matinal, nos circuitos que se estendem para longe e nas paisagens novamente restauradas para a paz, Para os campos abrasadores e as paisagens sem fim que estão além, para o Sul e para o Norte, Para o solo forrado de folhas em que o mundo ocidental inteiro atesta as minhas canções, Para as montanhas dos Apalaches e o incansável Mississippi, Para as rochas canto um chamamento e para todas as árvores e florestas, Para os planaltos dos poemas dos heróis, espalhando-se amplamente para as pradarias, Para o mar longínquo e os ventos invisíveis e o saudável ar imponderável; E, em resposta, todos eles dizem (mas não em palavras), A terra média e as testemunhas da guerra e da paz reconhecem em silêncio, As pradarias trazem-me para perto, como o pai estreita o filho num abraço apertado, O gelo do Norte e a chuva que estavam no início nutrem-me até o fim, Mas o sol quente do Sul existe para amadurecer inteiramente as minhas canções.
 med.00400.328.jpg

Memórias do Presidente Lincoln

Quando os lilases florescidos duraram na varanda

1

Quando os lilases florescidos duraram na varanda, E vi a grande estrela caída bem cedo na noite do céu ocidental, Chorei e ainda hei de chorar no retorno de cada primavera. Primavera recorrente, trazes uma tríade para mim, certamente, Lilases florescendo perenes e estrelas cadentes no ocidente, E o pensamento nele, a quem amo.

2

Ó poderosa estrela cadente ocidental! Ó sombras da noite — ó melancólica noite lacrimosa! Ó grande estrela desaparecida — ó o denso breu que esconde a estrela! Ó mãos cruéis que me mantêm impotente — ó alma desesperançada de mim! Ó nuvem áspera nas imediações que não libertará a minha alma.

3

No jardim, à porta de entrada de uma velha casa de fazenda, perto das cercas branquinhas, Está o arbusto de lilases crescendo alto com folhas de um verde rico, em forma de coração, Em muitos deles desponta um botão delicado, com o perfume forte que amo, Com cada folha, um milagre — e deste arbusto no jardim da porta de entrada, Com botões delicados e coloridos e folhas de um verde rico, com o formato de coração,  med.00400.329.jpg Anuncio uma primavera com suas flores.

4

No brejo, num recanto isolado, Um pássaro escondido está gorjeando uma canção. Solitário, o tordo, O eremita absorto em si mesmo, evitando as civilizações, Canta sozinho uma canção. Canção da garganta ensangüentada, Canção de vida que é escoadouro da morte (pois bem sei, querido irmão, Ainda que cantar não fosse concedido, certamente morrerias).

5

Sobre o seio da primavera, a terra, em meio às cidades, Em meio às pistas e através de velhas florestas, onde recentemente as violetas despontaram no chão, borrando os escombros cinzentos, Em meio à relva nos campos, em cada lado das pistas, passando pela relva infinita, Passando entre as hastes amareladas do trigo, cada grão em seu abrigo, erguidos nos campos marrons escuros, Passando por entre o branco e rosa das macieiras nos pomares, Carregando um corpo para o local em que deve descansar no túmulo, Dia e noite viaja um esquife.

6

Esquife que passa por pistas e cidades, Através do dia e da noite enquanto a grande nuvem escurece a terra, Com a pompa das bandeiras enlaçadas, com as cidades drapejadas de preto, Com o espetáculo dos próprios Estados, como se fora uma mulher de pé com seu véu de crepe, Com uma longa e tortuosa procissão e os flambeaus da noite, Com as incontáveis tochas acesas, com o silencioso mar de faces e cabeças descobertas, Com o depósito que aguarda e o esquife que chega e as faces melancólicas, Com hinos fúnebres através da noite, com mil vozes que se erguem fortes e solenes,  med.00400.330.jpg Com todas as vozes chorosas dos hinos fúnebres derramadas em torno do esquife, As igrejas à meia luz e os órgãos estremecidos — em meio aos quais viajas, Com o perpétuo tinido do dobre incessante dos sinos, Aqui, esquife que passa vagarosamente, Dou-te o meu ramo de lilases.

7

(Não por ti, por um apenas, Botões e galhos verdes para todos os esquifes trago, Pois fresca como a manhã, cantaria, então, uma canção por ti, ó morte sana e sagrada. Por toda parte buquês de rosas, Ó morte, cubro-te com rosas e lírios da manhã, Mas, principalmente, e agora com o lilás que primeiro despontou, Copioso eu tiro, tiro os galhos novos dos arbustos, Com braços repletos venho, derramando por ti, Por ti e por todos os esquifes teus, ó morte.)

8

Ó estrela ocidental navegando pelo céu, Agora sei o que deves ter procurado me dizer há cerca de um mês, quando passei, Quando andei em silêncio na noite sombria e transparente, Quando te vi tinhas algo para contar-me, quando te curvaste em minha direção, noite após noite, Quando caíste do céu bem abaixo, como se viesses para o meu lado (enquanto todas as demais estrelas observavam), Quando perambulamos juntos pela noite solene (pois algo que não conheço impediu-me de dormir), Quando a noite avançava e vi na borda do ocidente quão repleta de pesar tu estavas, Quando fiquei de pé no chão saliente, na brisa, na noite fria e transparente, Quando vi que tinhas algo a me dizer, quando te inclinaste em minha direção, noite após noite, Quando minha alma atormentada afundou na insatisfação, e tal como tu, triste orbe, Findou, caiu na noite, e se foi.
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9

Permanece a cantar aí no brejo, Ó cantor acanhado e gentil, ouço tuas notas, ouço teu chamado, Ouço, venho agora, compreendo-te, Mas por um momento deixo-me ficar, pois que a estrela lustrosa me deteve, A estrela, meu companheiro que parte, me abraça e me detém.

10

Ó como devo gorjear pelo que está morto lá e a quem amei? E como devo toldar minha canção para essa alma grande e doce que se foi? E qual deve ser o meu perfume para o túmulo de quem amo? Ventos marítimos soprados do leste e do oeste, Soprados do mar do leste e do mar do oeste, até que se encontrem em meio às pradarias, Esses e com esses e o sopro de meu canto, Vou perfumar o túmulo daquele que amo.

11

Ó com o que devo decorar as paredes do câmara mortuária? E quais serão os quadros que pendurarei nas paredes, Para adornar a casa funérea daquele que amo? Pinturas da primavera florescendo e de fazendas e de lares, Com o pôr-do-sol do quarto mês e a fumaça cinza transparente e brilhante, Com inundações de ouro amarelo dos sóis deslumbrantes, indolentes e náufragos queimando, expandindo o ar, Com as ervas frescas e doces sob os pés e as folhas verdes e pálidas das árvores proliferando, Na distância, o verniz que flui, o seio do rio, com uma queda sinuosa aqui e ali, Com elevações de diferentes alturas nas margens, com muitas linhas contra o céu e as sombras, E a cidade próxima, com habitações tão densas e pilhas de chaminés, E todas as cenas da vida e as oficinas, e os trabalhadores voltando para suas casas.
 med.00400.332.jpg

12

Contemplai, corpo e alma — esta terra, Minha Manhattan com pontas e as faiscantes e rápidas marés e os navios, A terra ampla e variada, o Sul e o Norte sob a luz, as praias do Ohio e do cintilante Missouri, E para sempre as pradarias que se espalham ao longe, cobertas de relva e de milho. Olhai, o sol mais excelente, tão calmo e altivo, A manhã violeta e púrpura com brisas há pouco sentidas, A luz imensurável, gentilmente originada, O milagre se espalhando e a tudo banhando, a lua realizada, O fim da tarde que chega deliciosamente e a noite e as estrelas bem-vindas, Sobre minha cidade todas brilham, envolvendo o homem e a terra.

13

Canta, canta, pássaro cinza e marrom, Cantos dos brejos, no isolamento, derrama teu canto de aí dos arbustos, Sem limites, a partir da escuridão, a partir dos cedros e pinheiros, Canta, queridíssimo irmão, gorjeia tua canção aguda, Canção alta e humana, com a voz mais alta do pesar. Ó cristalino e livre e gentil! Ó selvagem e solto em minha alma — ó maravilhoso cantor! Teu canto é só o que ouço — e contudo a estrela me detém (mas cedo partirá), Porém, o lilás, com dominante perfume, me detém.

14

Agora, enquanto sentei-me de dia e olhei para frente, No fechamento do dia com sua luz e os campos da primavera, e os fazendeiros cultivando suas plantações, No grande e inconsciente cenário de minha terra com seus lagos e florestas, Nas belezas aéreas celestiais (passados os ventos perturbadores e as tempestades), Sob os céus arqueados da tarde que passam com rapidez, e as vozes das crianças e das mulheres,  med.00400.333.jpg As muitas moventes marés marítimas, e vi como os navios navegam, E o verão chegando com riqueza e os campos todos ocupados com o trabalho, E as casas infinitamente separadas, como todas elas continuaram, cada uma com suas refeições e minúcias de usos diários, E as ruas, como suas palpitações palpitaram, e as cidadf# e?;hadas — olha, então e lá, Caindo sobre elas todas e no meio delas todas, envolvendo-me com as demais, Apareceu a nuvem, apareceu a longa trilha negra, E eu conhecia a morte, seu pensamento, e o segredo sagrado da morte. Então com o conhecimento da morte, andando do meu lado, E o pensamento de morte andando próximo, do outro lado, E eu no meio, como se fossem meus companheiros, como se segurasse as mãos de meus companheiros, Fugi para esconder-me, recebendo a noite que não fala, Descendo até o litoral com suas águas, no caminho por entre o brejo e a escuridão, Para os cedros solenes e sombrios e os pinheiros fantasmagóricos tão imóveis. E o cantor, tão tímido junto aos demais, recebeu-me, O pássaro cinzento e marrom que conheço recebeu-nos, três companheiros, E cantou o cântico da morte, e um verso para aquele que amo. De um recanto profundamente isolado, Dos cedros perfumosos e pinheiros fantasmagóricos tão imóveis, Veio o cântico do pássaro. E o charme do cântico arrebatou-me, E prendeu-me como se as mãos de meus companheiros me prendessem na noite, E a voz de meu espírito narrou o cântico do pássaro. Vem, amável e consoladora morte, Ondula em torno da terra, serenamente chegando, chegando, Durante o dia, durante a noite, para todos, para cada um, Mais cedo ou mais tarde, delicada morte.  med.00400.334.jpg Louvado seja o universo insondável, Pela vida e pela alegria, e pelos objetos e pela curiosidade do conhecimento, E pelo amor, o doce amor — mas louvado seja! Louvado seja! Louvado seja! Pelo abraço certo da morte fria e envolvente. Mãe escura sempre planando por perto, com pés suaves, Ninguém cantou para ti um canto de inteiras boas-vindas? Então eu canto por ti, glorifico-te acima de tudo, Trago-te um cântico para que, quando tu vieres de fato, venhas sem cometer erro algum. Aproxima-te, poderosa libertadora, Quando foi, quando foi que os tomaste? Pois com ciúmes canto os que morreram, Perdidos no amoroso e flutuante oceano de ti, Amados na enchente de teu êxtase, ó morte. De mim para ti, alegres serenatas, Danças para ti, eu proponho, saudando-te, adornos e festas para ti, E a visão das paisagens abertas e o céu espalhado no alto se ajusta, E a vida e os campos, e a imensa noite repleta de pensamentos, A noite em silêncio sob as muitas estrelas, O litoral oceânico e a onda robusta e sussurrante cuja voz eu conheço, E a alma se voltando para ti, ó vasta e bem velada morte, E o corpo agradecidamente aninhando-se próximo de ti. Sobre o topo das árvores, espalho por ti um cântico, Sobre as ondas que surgem e submergem, sobre miríades de campos e as amplas pradarias, Sobre todas as cidades densamente populosas e os produtivos ancoradouros e as estradas, Espalho este cântico com alegria, com alegria para ti, ó morte.

15

Para a elevação de minha alma, Alto e forte manteve-se o pássaro cinza e marrom, Espalhando deliberadamente notas puras e enchendo a noite.  med.00400.335.jpg Alto nos pinheiros e cedros pálidos, Claro no frescor úmido e no perfume do brejo, E eu, com meus companheiros, lá, na noite. Enquanto minha visão ficou atada aos meus olhos abertos, Como que para longínquos panoramas. E vi de soslaio os exércitos, Vi, como em sonhos sem rumor, centenas de estandartes de batalha, Sustentados através da fumaça das batalhas e perfurados por mísseis que enxerguei, E carregados aqui e acolá através da fumaça, e rasgados e ensangüentados, E, finalmente, apenas alguns fragmentos sobraram nas hastes (e todos em silêncio) E as hastes todas lascadas e quebradas. Vi os corpos das batalhas, miríades deles, E os esqueletos brancos de jovens rapazes vi, Vi os escombros de todos os soldados assassinados na guerra, Mas vi que não eram como eu pensava, Eles estavam inteiramente em repouso, não sofriam, Os sobreviventes sofriam, as mães dos mortos sofriam, As esposas e filhos, e os companheiros reflexivos sofriam, E os exércitos que sobreviveram sofriam.

16

Passadas as visões, passada a noite, Passado o tempo em que estava segurando as mãos de meus companheiros, Passada a canção do pássaro eremita e a canção para a elevação de minha alma, Canção dos vitoriosos, canção de saída da morte, canção, contudo, variada e sempre alternada, Tão baixa quanto gemida, porém de notas claras, subindo e descendo, inundando a noite, Tristemente naufragando e esmaecendo, como que emitindo e emitindo um alerta e, contudo, estourando de alegria, Cobrindo a terra e enchendo a amplitude do céu, Como aquele poderoso salmo da noite, que ouvi vindo de lugar ermo,  med.00400.336.jpg Passando, deixo-te, lilás, com folhas no formato de um coração, Deixo-te lá no jardim do pátio de entrada, retornando com a primavera. Cesso a minha canção por ti, O meu olhar fixo em ti no oeste, de frente para o oeste, comungando contigo, Na noite, ó lustrosa companheira de face argêntea. Contudo para que cada um guarde consigo, retirada na escuridão, A canção, o assombroso canto do pássaro cinza e marrom, E a canção que eleva, o eco ergueu-se em minha alma, Com a estrela lustrosa e cadente, com o semblante cheio de pesar, Com aqueles que seguram minha mão, se aproximando do chamado do pássaro, Meus companheiros e eu no meio deles, e a memória deles para guardar para sempre, pelos mortos que amei tão bem, Pela alma mais doce e mais sábia de todos os meus dias na terra — e isso em seu nome querido, O lilás e a estrela e o pássaro entrelaçados pelo canto de minha alma, Lá nos pinheiros perfumosos e nos cedros robustos e pálidos.

Ó Capitão! meu Capitão!

Ó Capitão! meu Capitão! Finda é a temível jornada, Vencida cada tormenta, a busca foi laureada. O porto é ali, os sinos ouvi, exulta o povo inteiro, Com o olhar na quilha estanque do vaso ousado e austero. Mas ó coração, coração! O sangue mancha o navio, No convés, meu Capitão Vai caído, morto e frio. Ó Capitão! meu Capitão! Ergue-te ao dobre dos sinos; Por ti se agita o pendão e os clarins tocam seus hinos. Por ti buquês, guirlandas... Multidões as praias lotam, Teu nome é o que elas clamam; para ti os olhos voltam. Capitão, querido pai, Dormes no braço macio... É meu sonho que ao convés  med.00400.337.jpg Vais caído, morto e frio. Ah! meu Capitão não fala, foi do lábio o sopro expulso, Meu calor meu pai não sente, já não tem vontade ou pulso. Da nau ancorada e ilesa, a jornada é concluída. E lá vem ela em triunfo da viagem antes temida. Povo, exulta! Sino, dobra! Mas meu passo é tão sombrio... No convés meu Capitão Vai caído, morto e frio.

Silenciados sejam os acampamentos hoje

(4 de maio de 1865)

Silenciados sejam os acampamentos hoje, Soldados, vamos guardar nossas armas desgastadas pela guerra, E cada um com alma reflexiva retire-se para celebrar A morte de nosso querido comandante. Para ele não mais os conflitos tempestuosos da vida, Nem vitória, nem derrota — não mais os eventos obscuros do tempo, Carregando como as nuvens incessantes através do céu. Mas canta, poeta, em nosso nome, Canta o amor com o qual o sustentamos — porque tu, que vive nos acampamentos, sabe-o verdadeiramente. Quando lá depositaram o esquife na câmara mortuária, Canta — quando fecham sobre ele as portas da terra — um verso, Para os corações pesados dos soldados.

Este pó foi um dia o homem

Este pó foi um dia o homem Gentil, simples, justo e resoluto, sob a mão cautelosa daquele por meio de quem — Contra o crime mais abominável da história, o pior já conhecido em qualquer terra ou idade —,  med.00400.338.jpg Foi salva a União destes Estados.

Na margem do Ontário azul

1

Na margem do Ontário azul, Quando meditava sobre aqueles dias de guerra e sobre a paz que retornou, e sobre os mortos que não mais retornaram, Um fantasma gigantesco e soberbo, com fisionomia severa, abordou-me, Canta-me o poema, ele disse, que nasce na alma da América, canta-me o cântico de vitória, E acende as marchas da Liberdade, marchas mais poderosas ainda, E canta para mim antes de partires a canção das agonias da Democracia. (Democracia, a conquistadora predestinada e, contudo, há por toda parte traiçoeiros sorrisos nos lábios, E morte e infidelidade a cada passo.)

2

Uma Nação anunciando a si mesma, Eu mesmo provoco o único crescimento pelo qual posso ser apreciado, A ninguém rejeito, aceito todos, depois todos recrio em minhas próprias formas. Uma geração cuja demonstração está no tempo e nos feitos, O que somos, somos; o nascimento é resposta suficiente para as objeções, Esgrimimos a nós mesmos, tal como é esgrimida uma arma, Somos poderosos e tremendos em nós mesmos, Somos executivos em nós mesmos, somos suficientes na variedade de nós mesmos, Somos os mais belos para nós mesmos e em nós mesmos, Nós nos posicionamos no centro de nós mesmos, lançando nossos ramos desse ponto para o mundo, Do Missouri, Nebraska ou Kansas, ataques de riso para desdenhar. Nada é pecaminoso para nós fora de nós mesmos,  med.00400.339.jpg Qualquer que seja ou não seja a aparência, somos lindos e pecaminosos apenas em nós mesmos. (Ó mãe — ó Irmãs queridas! Se estamos perdidos, nenhum outro vencedor nos destruiu, É por nossa própria culpa que descemos à noite eterna.)

3

Pensaste que só poderia haver um único Supremo? Pode haver qualquer número de supremos — um não se contrapõe ao outro mais do que a visão de um olho contrapõe-se ao outro, ou uma vida contrapõe-se a outra. Tudo é apropriado a tudo, Tudo é para indivíduos, tudo é para ti, Nenhuma condição é proibida, a de Deus ou qualquer outra. Tudo bem pelo corpo, somente a saúde coloca-te em harmonia com o universo. Produz grandes Pessoas, o resto é conseqüência.

4

Piedade e conformidade para aqueles que gostam, Paz, obesidade, lealdade, para aqueles que gostam, Sou aquele que mordazmente compele os homens, as mulheres, as nações, Chorando, saltai de vossos assentos e lutai por vossas vidas! Sou aquele que cruza os Estados com uma língua farpada, questionando todos os que encontro, Quem és tu desejando apenas ser informado daquilo que já sabias? Quem és tu desejando apenas um livro para juntar-se a ti em tua tolice? (Com dores agudas e choros tais como os teus, ó parteiro de muitas crianças, Esses clamores selvagens a uma raça orgulhosa dedico.) Ó terras, sereis mais livres que todas as que já vieram antes? Se sois mais livres que todas as outras que já vieram antes, vinde para ouvir-me.  med.00400.340.jpg Temei a graça, a elegância, a civilização, a delicadeza, Temei o doce melado, temei sugar o suco do mel, Atentai para o amadurecimento mortal da natureza que avança, Atentai para o que precede a decadência do vigor dos estados e dos homens.

5

Eras, precedentes, têm acumulado por longo tempo materiais indiretos, A América traz os construtores, e traz seus próprios estilos. Os poetas imortais da Ásia e da Europa fizeram seu trabalho e passaram para outras esferas, Um trabalho permanece, o trabalho de ir além de tudo o que eles fizeram. América, curiosa quanto aos caracteres estrangeiros, autônoma perante todos os perigos, Sustenta-se de pé, ausente, espaçosa, composta, saudável, inicia a verdadeira utilização de precedentes, Não os repele ou o passado ou aquilo que eles produziram sob suas próprias formas, Aprende a lição com calma, percebe na casa o corpo vagarosamente sustentado, Percebe que ele espera por um instante na porta, que ele era adequado para o seu tempo, Que sua vida descende dos decididos e dos bem formados herdeiros que se aproximam, E que ele deve ser mais adequado para os seus próprios dias. Em qualquer período, uma nação deve liderar, Uma terra deve ser a promessa e o esteio do futuro. Estes Estados são o mais amplo poema, Aqui não está somente uma nação, mas uma Nação prolífica em nações, Aqui os feitos dos homens correspondem aos difundidos feitos do dia e da noite, Aqui está o que move para dentro as massas magnificentes, descuidadas do que é particular,  med.00400.341.jpg Aqui estão o desbasto, as barbas, a benevolência, a combatividade, os amores da alma, Aqui os trens que fluem, aqui as multidões, a eqüidade, a diversidade, os amores da alma.

6

Terra das terras e dos bardos para corroborar! Deles que estão entre eles, alguém ergue para a luz uma face gerada no oeste, Para ele a fisionomia hereditária legada por ambas, a da mãe e a do pai, Suas primeiras partes substanciais, terra, água, animais, árvores, Construído a partir do capital comum, havendo espaço para o próximo e o distante, Usado para distribuir a outras terras, encarnando esta terra, Atraindo seu corpo e sua alma para ele, abraçando-se ao seu pescoço com amor incomparável, Mergulhando seu músculo seminal em seus méritos e deméritos, Marcando nele suas cidades, seus primórdios, os eventos, a diversidade, as guerras, as vozes, Fazendo nele os seus rios, lagos, baías, embocaduras, Mississippi com inundações anuais e correntes variáveis, Colúmbia, Niagara, Hudson, derramando-se longamente sobre ele, Se a Costa Atlântica se estende ou a costa do Pacífico se estende, ele se estende com eles no Norte ou no Sul, Medindo entre eles o Leste e o Oeste e tocando tudo o que há entre eles, Caules crescendo deles para ramificar-se nos caules dos pinheiros, cedros, cicuta, carvalho americano, espigueta, castanheiro, nogueira amarga, algodoeiro, laranja, magnólia, Labirintos tão emaranhados nele quanto em qualquer bambuzal ou pântano, Ele comparando encostas e picos de montanhas, florestas cobertas pelo gelo transparente do norte, Fora dele as pastagens doces e naturais como a savana, terras elevadas, pradarias, Através dele vôos, redemoinhos, gritos, respondendo os gritos do falcão pescador, pássaro-das-cem-línguas, garça da noite e águia, Seu espírito em torno do espírito de seu país, aberto para o bem e o mal,  med.00400.342.jpg Envolvendo a essência das coisas reais, velhos tempos e tempos atuais, Envolvendo litorais recém-descobertos, ilhas, tribos de aborígines vermelhos, Barcos afundados pelo mau clima, aterragens, colonizações, estatura de embriões e músculo, O desafio desdenhoso do Ano Um, guerra, paz, a formação da Constituição, Os Estados separados, o esquema simples e flexível, os imigrantes, A União sempre pululando de pessoas fúteis e sempre certa e impregnável, O interior desconhecido, casas feitas de tronco, clareiras, animais selvagens, caçadores, armadilheiros, Envolvendo a agricultura multiforme, as minas, a temperatura, a gestação dos novos Estados, O Congresso se reunindo a cada doze meses, todos os membros deslocando-se para a reunião, vindos das localizações mais distantes, Circundando o nobre caráter dos mecânicos e fazendeiros, especialmente os jovens, Reagindo com suas maneiras, discurso, vestimenta, amizades, o modo de andar que eles têm de quem nunca sentiu a presença de superiores, O frescor e a sinceridade que emanam de suas fisionomias, A frouxidão pitoresca de sua conduta, seus modos ameaçadores quando estão errados, A fluência de seus discursos, seu deleite com a música, sua curiosidade, seu bom temperamento e sua generosidade, a composição do todo, O ardor e o empreendedorismo que prevalecem, a grande amorosidade, A perfeita eqüidade da fêmea e do macho, o movimento fluido da população, A superioridade da Marinha, o livre-comércio, a pesca, pesca à baleia, a escavação em busca de ouro, As cidades com ancoradouros fechados, estradas de ferro e linhas de barco a vapor com intersecções em todos os pontos, Fábricas, vida mercantil, máquinas que economizam o trabalho manual, o Nordeste, Noroeste, Sudeste, Bombeiros de Manhattan, a permuta ianque, a vida nas plantações do sul,  med.00400.343.jpg Escravidão — a conspiração assassina e traidora para erguê-la sobre a ruína de todos os demais, Continuamente se atracando com ele — Assassino! Que tua vida ou a nossa seja a aposta, e não haja mais descanso.

7

(Contemplai, para o alto e para o céu, neste dia, Liberdade, retornando do campo da conquistadora, Eu marco a nova auréola em torno de tua cabeça, Não mais de um astral suave, mas estonteante e ameaçador, Com as chamas da guerra e as brincadeiras ligeiras dos raios, E teu porto inamovível no lugar em que estás, E com o olhar inextinguível e o pulso cerrado e erguido, E teu pé no pescoço daquele que ameaça, e o escarnecedor completamente esmagado embaixo de ti, O arrogante ameaçador que andou a passos largos e avançou com seu desdém insensível, carregando a faca assassina, O que está muito inchado, o fanfarrão que ontem faria tanto, Hoje uma carniça morta e danada, o desprezado de toda a terra, Uma fila de rebotalho, larva abjeta rejeitada.)

8

Outros terminam, mas a República é sempre construtiva e sempre mantém a visão, Outros adornam o passado, mas vós, ó dias do presente, eu vos adorno, Ó dias do futuro, eu creio em vós — isolo-me em vosso nome, Ó América, porque edificas pelo mundo, eu edifico por ti, Ó bem amados cortadores de pedras, eu lidero aqueles que planejam com decisão e ciência, Liderai o presente com mão amiga na direção do futuro. (Saudações para todos os impulsos que enviam crianças saudáveis para a próxima idade! Mas danados sejam aqueles que se desgastam sem pensar na desonra, nas dores, nas fraquezas, na debilidade que estão legando.)

9

Ouvi o Fantasma próximo à margem do Ontário, Ouvi a voz se erguendo e exigindo bardos,  med.00400.344.jpg Por todos os nativos e grandiosos, por eles somente podem estes Estados ser fundidos no sólido organismo de uma Nação. Manter homens unidos por uma folha de papel e alguns selos ou pela força não tem qualquer valor, Somente pode manter os homens unidos aquilo que agrega todos em torno de um princípio vivo, como o que se dá com os membros de um corpo ou as fibras das plantas. De todas as raças e eras, estes Estados com as veias repletas de substância poética precisam muito de poetas e hão de ter os maiores e de usá-los do modo mais grandioso, Seus Presidentes não hão de ser tanto os seus árbitros comuns, não tanto quanto os seus poetas hão de ser. (Alma de amor e língua de fogo! Olho para perfurar as profundezas mais profundas e varrer o mundo! Ah, Mãe, prolífica e além disso repleta de tudo, e contudo por quanto tempo estéril, estéril?)

10

Destes Estados o poeta é homem sereno, Não nele, mas fora dele as coisas são grotescas, excêntricas, falhas de suas inteiras restituições, Nada que esteja fora de seu lugar é bom, nada que ocupe seu lugar próprio é ruim, Ele confere a todo objeto e qualidade a sua proporção adequada, nem mais nem menos, É o árbitro do diverso, ele é a chave, É o equalizador de sua era e de sua terra, Fornece ao que deseja fornecimento, confere o que deseja conferência, Em paz, a partir dele, fala o espírito da paz, grande, rico, florescente, construindo cidades populosas, encorajando a agricultura, as artes, o comércio, iluminando o estudo do homem, a alma, a saúde, a imortalidade, o governo, Na guerra é o melhor arrimo da guerra, pode acertar a artilharia tanto quanto a engenharia, pode fazer com que cada uma das palavras que profere tire sangue do inimigo, Os anos vagueando para a infidelidade, e ele mantém a sua fé inabalável,  med.00400.345.jpg Não é um argumentador, é julgamento (a Natureza o aceita em termos absolutos), Não julga como o juiz, mas como o sol caindo redondo sobre algo indefeso, Porque vê mais longe, tem a maior fé, Seus pensamentos são os hinos de louvor das coisas, Na disputa sobre Deus e a eternidade ele está silente, Ele vê a eternidade menos como uma peça que tem um prólogo e um desenredo, Ele vê a eternidade nos homens e nas mulheres, não vê homens e mulheres como sonhos ou pontos. Pela grande Idéia, a idéia de indivíduos perfeitos e livres, Por ela, o bardo anda adiantado, líder de líderes, Sua atitude anima os escravos e horroriza déspotas de outras terras. Sem extinção é a Liberdade, sem retorno é a Eqüidade, Elas vivem nos sentimentos dos jovens e das melhores mulheres, (Não por acaso, as cabeças indomáveis da terra estão sempre prontas para cair pela Liberdade.)

11

Pela grande Idéia, Essa, ó meus irmãos, essa é a missão dos poetas. Canções de vigoroso desafio sempre prontas, Canções para armar rapidamente e para a marcha, A bandeira da paz dobrada num instante e em seu lugar a bandeira que conhecemos, Bandeira de guerra da grande Idéia. (Pano raivoso que vi lá saltando! Novamente estou de pé sob chuva de chumbo, tuas dobras agitadas saudando, Canto-te sobre todos, com acenos flutuantes através da luta — ó dura e disputada luta! Os canhões abrem suas bocas vermelhas cintilantes — o grito estalado das bolas, À frente de batalha em meio à fumaça — as salvas derramadas, incessantemente, desde a linha de fogo,  med.00400.346.jpg Ouve, a palavra que soa é Carga! Agora a peleja e os berros furiosos e enlouquecedores, Agora os corpos tombando enrolados sobre o chão, Frios, frios na morte, por tua vida preciosa, Pano raivoso que vi saltando.)

12

És tu aquele que assumiria uma cadeira para ensinar ou ser um poeta aqui nos Estados? O lugar é augusto, os termos são inexoráveis. Quem deseja ensinar aqui pode se preparar muito bem, corpo e mente, Pode fazer boa pesquisa, ponderar, armar-se, fortificar-se, endurecer, fazer-se flexível, Deve certamente ser, de antemão, questionado por mim com muitas perguntas implacáveis. Quem és tu que, de fato, falaria ou cantaria para a América? Estudaste a terra, suas línguas e seus homens? Aprendeste psicologia, frenologia, política, geografia, orgulho, liberdade, amizade da terra? Seus substratos e objetos? Consideraste o acordo orgânico do primeiro dia do primeiro ano da Independência, assinado pelos membros da Comissão, ratificado pelos Estados e lido por Washington no comando do exército? Adquiriste para ti a Constituição Federal? Vês aqueles que deixaram todos os processos feudais e poemas para trás e assumiram os poemas e processos da Democracia? És leal com as coisas? Ensinas o que ensinam a terra e o mar, os corpos dos homens, a feminilidade, a amabilidade, a raiva heróica? Tens circulado através de conjuntos de costumes, usos populares? Podes segurar tua mão contra todas as seduções, loucuras, redemoinhos, contendas ameaçadoras? És muito forte? Pertences de fato ao Povo inteiro? Não és de alguma roda seleta? Alguma escola ou mera religião? Já terminaste tuas revisões e críticas à vida? Estás animado agora para a própria vida? Vivificaste-te com a maternidade destes Estados? Tens em ti a velha e sempre nova indulgência e a imparcialidade?  med.00400.347.jpg Abraças com amor semelhadurecem nade? E o que nasceu mais recentemente? Pequeno e grande? E o desgarrado? O que é isso que trazes para a minha América? Trata-se de um uniforme do meu país? Não é algo que já foi melhor contado ou feito? Não importaste isso ou o espírito disso de algum navio? Não é apenas um conto de fadas? Uma rima? Uma beleza? — está nisso a antiga e boa causa? Não é algo que oscilou por muito tempo nos calcanhares de poetas, políticos, literatos, nas terras inimigas? Não presume isso que aquilo que já se foi, notoriamente, ainda está por aqui? Atende às necessidades universais? Fará evoluir os modos? Faz soar com voz de trombeta a vitória orgulhosa da União na guerra de secessão? Pode a tua performance encarar os campos abertos e o litoral? Será isso absorvido por mim tal como absorvo comida e ar, para reaparecer em minha força, no meu modo de andar, em minha face? Empregos reais contribuíram para isso? Artesãos originais, não meros escreventes? Isso atende as descobertas modernas, os calibres, os fatos, face a face? O que significa para os americanos, progressos, cidades? Chicago, Canadá, Arkansas? Reconhece por trás dos depositários aparentes os verdadeiros depositários, de pé, ameaçadores, silentes, os mecânicos, as mulheres de Manhattan, homens do Oeste, do Sul, significantemente parecidos em sua apatia e na prontidão de seu amor? Vê o que finalmente acontece, e tem sempre finalmente acontecido, a cada temporizador, remendador, estrangeiro, parcialista, alarmista, infiel, que já pediu alguma coisa à América? Que negligência zombeteira e escarnecedora? As pistas espalhadas com o pó dos esqueletos, Que foi atirado desdenhosamente por outros à margem da estrada.
 med.00400.348.jpg

13

Rimas e rimadores se vão, poemas destilados de poemas se vão, Os enxames de espelhos e os polidos se vão e deixam cinzas, Admiradores, importadores, pessoas obedientes, compõem apenas o solo da literatura, A América justifica a si mesma, com o passar do tempo nenhum disfarce pode enganá-la ou se esconder dela, é impassível o suficiente, Somente na direção dos semelhantes de si mesma ela avançará para encontrá-los, Se os seus poetas aparecerem, ela, no tempo certo, avançará para encontrá-los, não há medo de cometer erros, (A evidência de um poeta deve ser duramente deferida até que seu país o absorva com a mesma afeição com que ele a absorveu.) Ele domina aqueles cujos espíritos dominam, é mais doce aquele cujo resultado é mais doce a longo prazo, O sangue do amado músculo do tempo é livre; Diante da necessidade de canções, de filosofia, de uma grande ópera nativa, de uma embarcação, de qualquer nave, O maior é aquele ou aquela que contribui com o maior exemplo prático e original. Já aparece nas ruas uma geração nonchalant , emergindo silenciosamente, Os lábios das pessoas saúdam apenas os que fazem, os amantes, os que satisfazem, os que têm conhecimento positivo, Em breve não haverá mais sacerdotes, digo que seu trabalho está feito, A morte não tem emergências aqui, mas a vida é uma perpétua emergência, O teu corpo é soberbo? São os teus dias e as tuas maneiras soberbas? Após a morte serás soberbo, Justiça, saúde, auto-estima, abrem o caminho com poder irresistível; Como podes situar qualquer coisa antes de um homem?

14

Caí atrás de mim, Estados! Um homem antes de tudo — eu, típico antes de tudo.  med.00400.349.jpg Dai-me o pagamento pelo qual servi, Deixai-me cantar as canções da grande Idéia, levai todo o resto. Amei a terra, o sol, os animais, desprezei as riquezas, Dei esmolas para todos os que pediram, dei atenção aos idiotas e aos loucos, devotei meu salário e meu trabalho para os outros, Odiei os tiranos, não discuti sobre Deus, fui paciente e indulgente para com o povo, não tirei meu chapéu para o conhecido e o desconhecido, Andei livremente com pessoas poderosas não educadas e com os jovens e com as mães de famílias, Li estas folhas para mim ao ar livre, experimentei-as perto das árvores, das estrelas, dos rios, Dispensei tudo aquilo que insultou minha própria alma ou desafiou o meu corpo, Não pedi coisa alguma para mim que não tivesse cuidadosamente pedido para os outros nos mesmos termos, Corri para os campos e encontrei companheiros e os aceitei vindos de todos os Estados, (Sobre este peito muitos soldados moribundos deitaram-se para dar o último suspiro, Este braço, esta mão, esta voz, nutriram, ergueram, restauraram, Para a vida, chamando de volta muitos que estavam prostrados;) Desejo esperar para ser compreendido pelo crescimento do gosto de mim mesmo, Sem rejeitar ninguém, tudo permitindo. (Dize, ó Mãe, não tenho sido leal ao teu pensamento? Não tenho, através da vida, mantido-te e os teus perante mim?)

15

Juro que começo a ver o sentido dessas coisas, Não é a Terra, não é a América que é tão grande, Sou eu que sou grande ou devo ser grande, és Tu aí em cima, ou qualquer um, É andar rapidamente através de civilizações, governos, teorias, Através de poemas, concursos, espetáculos, para formar indivíduos. Embaixo de todos, indivíduos, Juro que agora nada que ignora indivíduos é bom para mim, A solidez americana é fundida com indivíduos,  med.00400.350.jpg O único governo é aquele que faz dos indivíduos o seu estatuto, A inteira teoria do universo é dirigida inequivocamente a um único indivíduo — a saber, a Ti. (Mãe! Com súbito senso severo, com a espada nua em tua mão, Vi quando afinal decidiste somente lidar com indivíduos.)

16

Embaixo de todos, o Nascimento, Juro que testemunharei meu próprio nascimento, piedoso ou impiedoso, que assim seja; Juro que nada mais me encanta, exceto o nascimento, Homens, mulheres, cidades, nações, são lindos apenas na ocasião de seu nascimento. Debaixo de tudo está a Expressão de amor por homens e mulheres, (Juro que já vi o suficiente dos modos maus e impotentes de se expressar amor por homens e mulheres, Depois deste dia, escolho o meu próprio modo de expressar amor por homens e mulheres.) Juro que terei cada qualidade de minha raça em mim, (Fala como quiseres, somente se harmonizam a estes Estados aqueles cujos modos favorecem a audácia e a sublime turbulência dos Estados.) Debaixo das lições das coisas, espíritos, natureza, governos, posses, juro que percebo outras lições, Debaixo de tudo, para mim estou eu mesmo, para ti estás tu (a mesma monótona e velha canção.)

17

Ó vejo cintilando que esta América é apenas tu e eu, Seu poder, suas armas, seu testemunho, somos tu e eu, Seus crimes, suas mentiras, seu latrocínio, suas defecções, somos tu e eu, Seu Congresso, somos tu e eu, oficiais, capitólios, exércitos, navios, somos tu e eu, Suas gestações sem fim de novos Estados, somos tu e eu, A guerra (aquela guerra tão sanguinária e horrenda, a guerra que,  med.00400.351.jpg de agora em diante, esquecerei), fomos tu e eu, Natural e artificial, somos tu e eu, Liberdade, linguagem, poemas, empregos, somos tu e eu, Passado, presente, futuro, somos tu e eu. Não ouso eludir qualquer parte de mim, Nenhuma parte da América, seja ela boa ou ruim, Não para construir por aquela que constrói para a humanidade, Não para equilibrar as fileiras, as aparências, os credos e os sexos, Não para justificar a ciência nem a marcha da igualdade, Nem para alimentar o sangue arrogante do amado músculo do tempo. Sou por aqueles que nunca foram domados, Por homens e mulheres cujas têmperas nunca foram domadas, Por aqueles cujas leis, teorias, convenções, jamais poderão ser domados. Sou por aqueles que andam ombro a ombro com a terra inteira, Aquele que inaugura um para inaugurar todos. Não serei defrontado por coisas irracionais, Penetrarei naquilo que está nelas que as faz sarcásticas a meu respeito, Farei com que cidades e civilizações me acatem, Isso é o que aprendi da América — é o total, e isso eu ensino novamente. (Democracia, enquanto as armas estavam em toda parte apontadas para o teu peito, Vi que, serenamente, davas à luz crianças imortais, vi em sonhos tua forma ampliada, Contemplei-te quando estendias o teu manto sobre o mundo.)

18

Confrontarei estes espetáculos do dia e da noite, Saberei se devo ser menos do que eles, Verificarei se não devo ser tão majestoso quanto eles, Verificarei se não devo ser tão sutil e real quanto eles, Verificarei se não devo ser menos generoso que eles, Verificarei se não tenho significado, enquanto as casas e os navios têm significado, Verificarei se os peixes e os pássaros não serão suficientes para mim.  med.00400.352.jpg Combino o meu espírito aos vossos, vós, orbes, elevaçõaturas, Copiosos como sois, eu vos absorvo em mim e torno-me o mestre, A América isolada e ainda assim incorporando tudo, o que é isso, finalmente, senão eu mesmo? Estes Estados, o que são eles senão eu mesmo? Sei agora por que a terra é bruta, torturante, má, ela é assim por minha causa, Tomo-vos especialmente para serdes meus, vós, terríveis e rudes formas. (Mãe, curva-te, chega-te para perto de minha face, Não sei para que servem essas tramas e guerras e deferimentos, Não conheço a fruição do sucesso, mas sei que através da guerra e do crime teu trabalho continua e precisa ainda continuar.)

19

Assim, na margem do Ontário azul, Quando os ventos me refrescavam e as ondas vieram se agrupando em minha direção, Exultei com as pulsações do poder, e o encantamento do meu tema estava sobre mim, Até que os tecidos que me prendiam partiram seus vínculos sobre mim. E vi as almas livres dos poetas, Os mais elevados bardos das eras passadas escarranchados diante de mim, Homens grandes e estranhos, há muito adormecidos, escondidos, foram expostos para mim.

20

Ó meu verso arrebatado, minha chamada, não me escarneças, Não foi pelos bardos do passado, não foi para invocá-los que te lancei, Nem mesmo para chamar aqueles bardos elevados das margens do Ontário, Que cantei tão caprichosamente e tão alta minha bárbara canção. Apenas os bardos de minha terra invoco,  med.00400.353.jpg (pois a guerra, a guerra terminou, o campo está limpo) Até que eleas, doravnfantes e para adiante, Para fazer vibrar, ó Mãe, tua alma esperançosa e ilimitada. Bardos da grande Idéia! Bardos das invenções pacíficas! (pois a guerra, a guerra terminou!) E, contudo, bardos de exércitos latentes, um milhão de soldados esperando, sempre prontos, Bardos com canções como brasas ardentes ou como as listras aforquilhadas do raio! Bardos amplos de Ohio, do Canadá — bardos da Califórnia! Bardos do interior — bardos da guerra! Invoco-vos pelo meu encanto.

Reversões

Deixai que aquilo que esteve na frente passe para trás, Deixai que o que estava atrás venha para frente, Deixai que os fanáticos, que os tolos, que as pessoas impuras ofereçam novas propostas, Deixai que as velhas proposições sejam postergadas, Deixai que um homem busque o prazer em toda parte, menos em si mesmo, Deixai que uma mulher busque a felicidade em toda parte, menos em si mesma.
 med.00400.354.jpg

Regatos do outono

Como conseqüência, etc.

Como conseqüência, etc. Como conseqüência do acúmulo das chuvas de verão, Ou do fluxo obstinado dos regatos no outono, Ou das muitas linhas de ervas nos arroios reticulados, Ou dos córregos marítimos, subterrâneos, rumando para o mar, Canções de anos continuados eu canto. Primeiro as sempre modernas cachoeiras da vida (breves, breves para fundir-se Com as velhas correntes da morte). Algumas cortando os campos das fazendas ou as florestas de Ohio, Algumas descendo os desfiladeiros de Colorado, das fontes de perpétua neve, Algumas meio escondidas no Oregon, ou distantes para o sul do Texas, Algumas no norte encontrando seu caminho para o Erie, Niagara, Ottawa, Algumas para as baías Atlânticas e então para o grande mar salgado. Em ti, quem quer que esteja lendo meu livro, Em mim mesmo, em todo o mundo, essas correntes fluindo, Todas, todas tendendo para o místico oceano. Correntes para começar um novo continente, Propostas enviadas para solidificar o líquido, Fusão de oceano e terra, ondas gentis e reflexivas, (Não apenas sólidas e pacíficas, ondas energéticas e sinistras também, Saídas das profundezas, ondas abissais das tempestades, quem sabe de que procedência?  med.00400.355.jpg Furiosas sobre a vastidão, com muitos mastros quebrados e velas esfarrapadas.) Ou desde o mar do Tempo, coletando a inteira vastidão, trago Um amontoado de joio e conchas à deriva. Ó pequenas conchas, tão curiosamente retorcidas, tão friamente ímpidas e sem voz, Pequenas conchas presas aos tímpanos dos templos, não ireis Instigar ainda murmúrios e ecos, música da eternidade evanescente e distante, Aragem do interior, enviada da borda do Atlântico, tensões para a alma das pradarias, Reverberações sussurradas, acordes soando prazerosamente para o ouvido do Oeste, Vossas velhas novidades, contudo sempre novas e intraduzíveis, Infinitésimos de minha vida e de muitas vidas, (Pois não dou apenas minha vida e meus anos — tudo, tudo eu dou) Esses artigos avulsos das profundezas, lançados para o alto e secos, Lavados nas praias da América?

O retorno dos heróis

1

Por essas terras e por esses dias apaixonados e por mim, Agora, por um momento, retiro-me para ti, ó solo dos campos do outono, Reclinando sobre o teu peito, entregando-me para ti, Respondendo as pulsações de teu coração sano e sereno, Afinando um verso para ti. Ó terra que não tem voz, confia-me uma voz, Ó colheita de minhas terras — ó produção ilimitada do verão, Ó marrom terra pródiga parturiente — ó produtivo ventre infinito, Ó canção para narrar-te.

2

Sempre sobre este estágio, Realiza-se o calmo drama Divino anual,  med.00400.356.jpg Deslumbrantes procissões, canções de pássaros, Nascer do sol que alimenta em plenitmáxi, O mar celestial, as ondas sobre o litoral, as ondas fortes e musicais, As florestas, as árvores firmes, as delgadas, as árvores pontiagudas, Os incontáveis exércitos liliputianos de relva, O calor, as chuvas, as pastagens imensuráveis, O cenário das neves, a orquestra sem vento, O elástico telhado de nuvens com luzes penduradas, o azul celeste e as franjas prateadas, As estrelas dilatadas no alto, as estrelas plácidas acenando, Os bandos de animais e os rebanhos, os planaltos e os campos cor de esmeralda, O espetáculo de todas as variedades de terra e todas as plantações e os produtos.

3

América fecunda — hoje, Tu estás toda firmada em nascimentos e alegrias! Tu vergas com as riquezas, tua riqueza te envolve como papel de embrulho, Tua risada é alta com a ânsia de grandes possessões, Uma miríade de vidas interligadas, como vinhas entrelaçadas, prende todo o teu vasto domínio, Como se um enorme navio fretado na borda das águas trouxesses para o porto, Como a chuva cai do céu e os vapores sobem da terra, assim os valores preciosos caíram sobre ti e se ergueram de ti; És o que causa inveja no globo! És um milagre! Tu, banhada, descansada, nadando na abundância, Tu, Dama de sorte dos tranqüilos celeiros, Tu, Dama das pradarias que te sentas no meio e lança teu olhar sobre o mundo e olhas para o leste e para o oeste, Distribuidora, que por uma palavra concedes mil milhas, um milhão de fazendas, sem perder coisa alguma, E, contudo, és aquela que tudo aceita — tu, hospitaleira (és hospitaleira como Deus é hospitaleiro.)

4

Quando cantei da última vez, minha voz estava triste,  med.00400.357.jpg Tristes eram os espetáculos em minha volta, com barulhos devastadores de ódio e fumaça de guerra; Em meio ao conflito e aos heróis, ergui-me, Ou andei com passo lento por entre os feridos e os moribundos. Mas agora não canto a guerra, Nem a marcha meticulosa dos soldados, nem as tendas dos acampamentos, Nem os regimentos vindo com pressa, lançando-se em linhas de batalha; Basta de tristeza, espetáculos desnaturados de guerra. Pediram espaço aquelas fileiras enxaguadas de imortais, os primeiros exércitos que avançaram? Peçam espaço, ai de mim, as horripilantes fileiras, os medonhos exércitos que seguiram. (Passai, passai, vós, brigadas orgulhosas, com vossas firmes pernas andarilhas, Com vossos ombros jovens e fortes, com vossas mochilas e vossos mosquetes; Quão alvoroçado me ergui para ver-vos, no lugar em que começastes a marchar. Passai — rufai então vossos tambores novamente, Pois um exército se arremessa à vista, ó um outro exército em formação, Pululando, rebocando na retaguarda, ó vós, do exército medonho que vem, Ó vós, regimentos tão lamentáveis, com vossa diarréia mortal, com vossa febre, Ó minhas queridas terras mutiladas, com o curativo repleto de sangue e muleta, Contemplai vosso lívido exército que segue.)

5

Mas nestes dias de brilho, Nas bem distantes lindas paisagens, as estradas e pistas, as carruagens empilhadas de produtos da fazenda e as frutas e os celeiros, Deveriam os mortos se intrometer?  med.00400.358.jpg Ah! os mortos não me prejudicam, eles se encaixam bem na natureza, Eles se casam muito bem com árvrelva, E ao longo da borda do céu, na margem distante do horizonte. Nem eu me esqueço de que partiste, Nem no inverno nem no verão esqueço-me dos que perdi, Mas especialmente ao ar livre como agora, neste momento em que minha alma está arrebatada e em paz, como fantasmas agradáveis, Tuas memórias se erguendo, deslizam próximas de mim.

6

Vi o dia do retorno dos heróis, (E contudo os heróis, nunca desunidos, jamais regressarão, Então aquele dia não vi.) Vi as corporações intermináveis, vi as procissões de exércitos, Vi quando se aproximavam, desfilando com suas divisões, Fluindo para o norte, sua missão cumprida, parando por algum tempo em grupos de poderosos acampamentos. Não os soldados de festividades — jovens, contudo veteranos. Alquebrados, morenos, belos, fortes, das colônias de residências rurais e das oficinas, Endurecidos pelas muitas longas campanhas e pela marcha suada, Acostumados às muitas duras lutas sangrentas no campo. Uma pausa — os exércitos esperam, Um milhão de conquistadores banhados em batalhas esperam, O mundo também aguarda; suaves como o cair da noite e certos como a alvorada, Eles derretem, desaparecem. Exultai, ó terras! Terras vitoriosas! Não aquelas vossas vitórias naqueles horríveis campos vermelhos, Mas aqui, conseqüentemente, a vossa vitória. Dissolvei-vos, dissolvei-vos, exércitos — dispersai-vos, vós, soldados azuis, Tomai novamente uma resolução, desisti definitivamente de vossas armas mortais,  med.00400.359.jpg Doravante, outras serão as vossas armas nos campos, ou no Sul ou no Norte, Com guerras mais sãs, guerras doces, guerras a concedem a vida.

7

Alta, ó minha garganta, e clara, ó minha alma! A estação de agradecimento e a voz de total concessão, A canção de alegria e poder pela fertilidade sem limite. Todos os campos cultivados e incultos se expandem diante de mim, Vejo as verdadeiras arenas de minha raça, ou a primeira ou a última Das arenas do homem forte e inocente. Vejo os heróis em outras labutas, Vejo bem esgrimidas em suas mãos as melhores armas. Vejo onde a Mãe de Todos, Fixa no horizonte seus olhos que tudo medem, e assim se mantém por muito tempo, E contabiliza a variedade do encontro dos produtos. Agitado o panorama distante, iluminado pelo sol, Pradaria, pomar e o grão amarelo do Norte, Algodão e arroz do Sul e a cana da Louisiana, Terra inculta e aberta, campos ricos de trevo e capim-rabo-de-gato, Alimentação de vacas e cavalos e rebanhos de carneiros e porcos, E muitos rios imponentes fluindo e muitos arroios aprazíveis, E terras altas saudáveis com brisas com perfume de ervas, E a boa relva verde, aquele delicado milagre da relva que sempre renasce.

8

Labutai, heróis! Colhei as produções! Não estais sozinhos naqueles campos de guerra, a Mãe de Todos, Com forma dilatada e olhos movediços, vos observa. Labutai, heróis! Labutai bem! Segurai, com firmeza, as vossas armas! A Mãe de Todos, aqui como sempre, vos observa. Satisfeita, América, tu observas,  med.00400.360.jpg Sobre os campos do Oeste aqueles monstros rastejantes, As divinas invenções humanas, os implementos que economiza mão-de-obra, Contempla, movendo-se em todas as direções como se estivesse imbuído de vida, o ancinho de feno giratório, As máquinas de ceifa movidas a vapor e as máquinas movidas a cavalo, Os engenhos, os debulhadores de grão e os limpadores de grão, separando devidamente a palha, o trabalho lépido do engenhoso forcado, Contempla a nova máquina de serrar, o descaroçador de algodão do sul e a máquina de limpar arroz. Sob o teu olhar, ó Maternal, Com esses e outros implementos e com suas próprias mãos fortes, os heróis fazem a colheita. Todos colhem e todos ceifam, Contudo por ti, ó Poderosa, nenhuma foice como agora agitou-se em segurança, Nenhuma espiga de milho oscilou, como agora, a sua delicada bandeira em paz. Somente sob os teus auspícios eles colhem, cada partícula de feno sob tua grande face somente, Ceifam o trigo de Ohio, Illinois, Wisconsin, cada haste barbada sob ti, Ceifam o milho do Missouri, Kentucky, Tennessee, cada aurícula em seu invólucro, Colhem o feno para as miríades de montes no tranqüilo interior odoroso dos celeiros, A aveia para as suas caixas, a batata branca, o trigo sarraceno do Michigan, para as suas; Colhem o algodão no Mississippi e no Alabama, extraem e armazenam a batata dourada, a batata doce da Geórgia e a das Carolinas, Empacotam a lã da Califórnia ou da Pensilvânia, Cortam a fibra de linho nos Estados Centrais ou o cânhamo ou o tabaco nas Fronteiras, Pegam a ervilha e o feijão ou puxam maçãs das árvores ou cachos de uvas das vinhas,  med.00400.361.jpg Ou algo que amadureça em todos estes Estados, ao Norte ou ao Sul, Debaixo dos raios do sol e debaixo de ti.

Havia uma criança indo adiante

Todos os dias havia uma criança indo adiante, E o primeiro objeto para o qual ela olhava, nele se transformava, E aquele objeto tornava-se parte dela durante o dia ou durante uma parte do dia, Ou por muitos anos, ou isso se estendia por ciclos de anos. Os lilases da manhã tornaram-se parte dessa criança, E a relva e as ipoméias brancas e vermelhas, e o trevo branco e o vermelho, e a canção do pássaro febo, E os cordeiros de três meses e a barriga rosa pálida da fêmea do javali, e o potro da égua e o bezerro da vaca, E a barulhenta chocadeira do pátio do celeiro ou o lodaçal na lateral do açude, E os peixes saltando tão curiosamente lá de baixo e o belo e curioso líquido, E as plantas aquáticas com suas graciosas cabeças chatas, tudo isso se tornou parte dela. Os brotos do campo em seu quarto mês e quinto mês tornaram-se parte dela, Brotos de grãos do inverno e aqueles de milho amarelo-claro e as raízes comestíveis do jardim, E as macieiras cobertas com botões e depois com frutos e as bagas de madeira e as ervas daninhas mais comuns às margens da estrada, E o velho bêbado sai cambaleando do banheiro da taverna, de onde acabara de se levantar, em direção à sua casa, E a diretora da escola que passou a caminho da escola, E os garotos amistosos que passaram, os garotos brigões, E as meninas asseadas, com rosto fresco, e o menino negro e a menina negra de pés descalços, E todas as alterações das cidades e dos países, em todos os lugares pelos quais ela passava. Seus próprios pais, aquele que lhe havia concedido a paternidade e aquela que a havia concebido em seu ventre e lhe dado à luz,  med.00400.362.jpg Deram a essa criança mais de si do que essas coisas, Deram-se a ela todos os dias que se seguiram e se tornaram parte dela. A mãe, em casa, silenciosamente, colocando os pratos na mesa de jantar, A mãe, com palavras amenas, limpa sua touca e sua camisola, um odor saudável sai dela e de suas roupas quando passa, O pai, forte, auto-suficiente, viril, mau, raivoso, injusto, O estouro, a palavra dita com rapidez em alta voz, a barganha difícil de obter, o engodo ladino, Os costumes da família, a linguagem, a companhia, a mobília, o coração enternecido e pesado, Afeição que não será rejeitada, o senso do que é real, o pensamento de que afinal a sua irrealidade deveria ser provada, As dúvidas durante o dia e as dúvidas durante a noite, o curioso se e o como, Se aquilo parece ser é mesmo, ou será tudo apenas feito de cintilações e partículas? Multidões de homens e mulheres caminhando rápido nas ruas, se não são cintilações e partículas, o que são? As próprias ruas e as fachadas das casas e os produtos nas janelas, Veículos, times, os ancoradouros com pesado chão de madeira, a enorme interseção nos portos das balsas, A vila na encosta vista a distância na hora do crepúsculo, e o rio que atravessa a paisagem, Sombras, o halo e a bruma, a luz caindo sobre os telhados e os espigões brancos ou marrons a duas milhas de distância, A escuna próxima, sonolentamente carregada pela maré, o pequeno barco rebocado frouxamente à popa, As ondas apressadas que tombam, as crestas rapidamente quebradas, batendo, Os estratos de nuvens coloridas, as distantes e solitárias tiras longas de matiz castanho, a disseminação de pureza em que se assentam imóveis, O borda do horizonte, o corvo do mar em seu vôo, a fragrância do pântano salino e a da lama da praia, Tudo isso se tornou parte daquela criança que ia adiante todos os dias, e que agora vai, e sempre irá em frente todos os dias.
 med.00400.363.jpg

Velha Irlanda

Longe daqui, em meio a uma ilha de espantosa beleza, Dobrando-se sobre um sepulcro, uma venerável mãe cheia de tristeza, Que já foi rainha e agora está magra e esfarrapada, sentada no chão, Seus velhos cabelos brancos desgrenhados, soltos em torno dos ombros; Caída aos seus pés, encontra-se uma harpa real sem uso, Longo silêncio, ela silente por muito tempo, chorando sua esperança amortalhada, seu herdeiro, Em toda a terra o seu coração é o que mais se enche de tristeza, porque é o que mais está cheio de amor. Contudo, uma palavra venerável, mãe, Não é mais necessário que te dobres sobre o chão frio, com tua testa entre os joelhos, Ó não é preciso que te sentes aí, com esse véu sobre os teus cabelos brancos tão desgrenhados, Pois saibas que aquele por quem choras não está no túmulo, Foi uma ilusão, o filho que amas realmente não morreu, O Senhor não está morto, ele se ergueu novamente jovem e forte em outro país, Mesmo quando choravas ali, perto de tua harpa caída, ao lado do túmulo, Aquilo pelo que choraste foi traduzido, passado para além do túmulo, Os ventos o favoreceram e o mar fê-lo navegar, E agora, com sangue róseo e novo, Move-se hoje em um novo país.

A casa morta da cidade

Perto da casa morta da cidade, ao lado do portão, Preguiçosamente perambulando pelo meu caminho, vindo do clangor, Curioso eu paro, pois, contemplai!, uma forma proscrita, uma pobre prostituta morta é conduzida, Seu corpo é depositado sem alguém que o reclame, ele jaz sobre a úmida calçada de tijolos, A mulher divina, seu corpo, vejo o seu corpo, olho para ele solitário, Daquela casa, que um dia foi repleta de paixão e beleza, nada mais percebo,  med.00400.364.jpg Nem o sossego tão frio, nem a água que corre da torneira, nem os odores insalubres me impressionam, Mas a casa sozinha — aquela casa espantosa — aquela casa de beleza delicada — aquela ruína! Aquela casa imortal, mais do que todas as fileiras de moradias já construídas! Ó capitólio de domo branco com majestosas figuras sobrepostas, ou mais do que todas as velhas catedrais pontiagudas, Aquela pequena casa, sozinha, mais que todas elas — casa pobre, desesperada! Bela, medrosa ruína — moradia de uma alma — uma alma em si mesma, Casa não reclamada, evitada — toma um alento de meus lábios trêmulos, Toma uma lágrima das que caem ao meu lado quando penso em ti, Casa morta do amor — casa de loucura e pecado, esmigalhada, esmagada, Casa da vida, antes cheia de conversa e riso — mas ah, pobre casa, morta mesmo então, Por meses, anos, ecoando, casa guarnecida — mas morta, morta, morta.

Esta mistura

1

Algo me surpreendeu quando pensei estar seguro, Saí das florestas quietas que amo, Não seguirei agora para andar pelas pastagens, Não tirarei as roupas de meu corpo para encontrar-me com meu amante, o mar, Não tocarei minha carne na terra como se fosse uma outra carne para renovar-me. Ó, como pode ser que o solo não adoeça? Como podem vós estar vivas, vós, plantações da primavera? Como podes fornecer saúde, tu, sangue das ervas, raízes, pomares, grãos? Não estão incessantemente colocando corpos destemperados dentro de vós?  med.00400.365.jpg Não estão todos os continentes revirados e remexidos com o azedume dos mortos? Onde colocastes suas carcaças? Aqueles beberrões, glutões de tantas gerações? Onde afogastes todo o líquido abominável e a carne? Não os vejo sobre o solo, hoje, ou talvez eu esteja enganado, Farei um sulco com meu arado, enfiarei minha enxada através do gramado e a revirarei no subterrâneo, Estou certo de que exporei alguma das carnes abomináveis.

2

Contempla esta mistura! Contempla-a bem! Talvez cada ácaro já tenha integrado o corpo de uma pessoa doente — contudo, contempla! A relva da primavera cobre as pradarias, A fava arroja-se silenciosamente através do bolor no jardim, A delicada haste da cebola sobe perfurando a terra, Os brotos de maçã agrupam-se nos galhos da macieira, A ressurreição do trigo surge com pálida aparência saindo de seus túmulos, O matiz desperta no salgueiro e na amoreira, O pássaro cantarola nas manhãs e à noitinha, enquanto as fêmeas sentam-se em seus ninhos, Os pintinhos rompem as cascas dos ovos, Os animais recém-nascidos aparecem, o bezerro cai do ventre da vaca, e o potro da égua, Saindo de seu montinho de terra, a batata com folhas verde-escuras ergue-se com fé, Saindo da terra, ergue-se a espiga de milho amarela, os lilases desabrocham nos jardins que estão nas varandas, A plantação de verão é inocente e desdenha, acima de tudo, dos estratos dos mortos azedos. Que química! Que esses ventos não são de fato infecciosos, Que isto não é um embuste: este banho verde do mar que me persegue, tão amoroso, Que é seguro permitir que ele lamba inteiro o meu corpo nu com suas línguas,  med.00400.366.jpg Que ele não me colocará em risco em virtude das febres que já se depositaram nele, Que tudo está limpo para sempre e para sempre, Que a água fresca do poço tem um gosto tão bom, Que as amoras pretas são tão saborosas e suculentas, Que os frutos do pomar de maçã e do pomar de laranja, que melões, uvas, pêssegos, ameixas, nenhum deles me envenenarão, Que quando me deito na relva não pego qualquer doença, Ainda que, provavelmente, cada haste de relva nasça daquilo que um dia já foi uma doença contagiosa. Agora estou aterrorizado com a Terra, com o fato de que ela seja tão calma e paciente, Ela faz crescer tais doçuras a partir de tais corrupções, Ela se torna inofensiva e imaculada em seu eixo, apesar da sucessão de corpos doentes que recebe, Ela destila ventos tão delicados a partir da infusão de fétidos odores, Ela renova com uma tal aparência impremeditada suas plantações pródigas, anuais, suntuosas, Ela fornece tais matérias divinas aos homens e ao final aceita deles tais restos.

Para um revolucionário europeu derrotado

Para um revolucionário europeu derrotado Coragem ainda, meu irmão ou minha irmã! Segue em frente — a Liberdade está para ser submetida, aconteça o que acontecer; Não se trata de algo que será suprimido em virtude de uma ou duas falhas, ou qualquer número de falhas, Ou pela indiferença ou pela ingratidão das pessoas, ou por qualquer infidelidade, Ou a demonstração dos dentes do poder, soldados, canhões, estatutos penais. Aquilo em que cremos aguarda latente para sempre em todos os continentes, A ninguém convida, nada promete, senta-se com calma e leveza, é positivo e composto, desconhece o medo, Espera pacientemente, espera o seu tempo.  med.00400.367.jpg (Não são apenas canções de lealdade, Mas canções de insurreição também, Pois que sou o poeta jurado de todos os rebeldes destemidos no mundo inteiro, E aquele que me segue deixa para trás a paz e a rotina, E arrisca sua vida, que pode ser perdida a qualquer momento.) A batalha em fúria com muitos altos alarmas e os constantes avanços e recuos, O infiel triunfa, ou supõe que triunfa, Prisão, cadafalso, algemas, colar de ferro e bolas de chumbo fazem seu trabalho, Os heróis conhecidos e anônimos passam a outras esferas, Os grandes oradores e escritores são exilados, acham-se doentes em terras distantes, A causa está dormente, as mais poderosas gargantas estão engasgadas com seu próprio sangue, Os jovens abaixam suas pestanas na direção do solo quando se encontram, Mas ainda assim a Liberdade não perdeu o seu lugar, nem o infiel conquistou domínio completo. Quando a liberdade abandona um lugar, ela não é a primeira a sair, nem a segunda, nem a terceira, Espera que todos os demais partam antes, ela é a última a sair. Quando não há mais memória de heróis e mártires, E quando toda a vida e todas as almas de homens e mulheres são descartados em qualquer parte da terra, Então, somente nesse dia a Liberdade ou a idéia da Liberdade há de ser descartada daquela parte da terra, E o infiel atingirá domínio completo. Então, coragem, rebelado europeu, rebelada européia! Pois até que tudo cesse nem tu deves cessar. Não conheço o sentido de tua vida (não conheço nem mesmo o sentido de minha vida, nem o sentido que move coisa qualquer), Mas procurarei cuidadosamente por ele, mesmo que esteja frustrado, Na derrota, na pobreza, no equívoco, na prisão — pois também essas experiências são grandes.  med.00400.368.jpg Pensávamos que a vitória era grande? De fato ela é — mas agora me parece, quando a vejo sem poder ser auxiliada, que a derrota é grande, E que a morte e o desalento são grandes.

Terras anônimas

Nações dez mil anos antes destes Estados, e muitas vezes dez mil anos antes destes Estados, Armazenaram feixes de eras em que homens e mulheres como nós cresceram e percorreram seu caminho e passaram, Que vastas cidades construídas, que repúblicas bem ordenadas, que tribos pastoris e nômades, Que histórias, governantes, heróis, talvez a todos os outros transcendendo, Que leis, costumes, riqueza, artes, tradições, Que tipo de casamento, que costumes, que fisiologia e frenologia, E que liberdade e escravidão entre eles, o que pensavam da morte e da alma, Quem eram os engenhosos e os sábios, quem eram os lindos e os poéticos, quem eram os brutos e os não desenvolvidos, Sobre tudo isso, nem um registro permanece — e todavia tudo permanece. Ó eu sei que aqueles homens e mulheres não estavam destituídos de sentido, do mesmo modo que nós não estamos destituídos de sentido, Sei que cada partícula deles pertence ao esquema do mundo, tal como agora nós também pertencemos. Distantes se encontram eles, contudo próximos de mim, Alguns com semblantes ovais, cultos e calmos, Alguns desnudos e selvagens, alguns como enormes coleções de insetos, Alguns em tendas, pastores, patriarcas, tribos, cavaleiros, Alguns rondando as florestas, alguns vivendo pacificamente em fazendas, labutando, colhendo, enchendo os celeiros, Alguns atravessando avenidas pavimentadas, em meio a templos, palácios, fábricas, bibliotecas, espetáculos, cortes, teatros, monumentos magníficos.  med.00400.369.jpg Será que esses bilhões de homens já se foram? Será que essas mulheres da experiência antiga da terra se foram? Será que de suas vidas, cidades, artes, perpetuam-se apenas em nós? Será que não alcançaram nada perpétuo para si mesmos? Acredito que de todos aqueles homens e mulheres que habitaram as terras anônimas, todos existem neste momento, aqui ou em algum outro lugar, invisíveis para nós, Na exata proporção das circunstâncias que os fizeram crescer na vida, daquilo que fizeram, sentiram, tornaram-se, amaram, erraram na vida. Acredito que aquele não foi o fim daquelas nações ou de qualquer pessoa que nelas viveram, tanto quanto este não deve ser o fim da minha nação, ou de mim; De suas línguas, governos, casamento, literatura, produtos, jogos, guerras, costumes, crimes, prisões, escravos, heróis, poetas, Suspeito que seus resultados os esperam curiosamente no mundo ainda invisível, em contrapartida daquilo que proveio para eles no mundo visível, Suspeito que devo encontrá-los lá, Suspeito que lá devo encontrar cada traço particular daquelas terras anônimas.

Canção da prudência

Pelas ruas de Manhattan, vagueio ponderando Sobre Tempo, Espaço, Realidade — sobre assuntos como esses e ao lado deles pondero na Prudência. A última revelação sempre permanece por ser feita a respeito da prudência, Pequenos e grandes, semelhantemente, são impelidos em silêncio da prudência que se ajusta à imortalidade. A alma é de si mesma, Tudo converge para ela, tudo se refere àquilo em que resulta, Tudo o que uma pessoa faz, diz, pensa, tem uma conseqüência, Nenhum movimento pode ser feito por um homem ou uma mulher  med.00400.370.jpg que os afete em um dia, um mês, qualquer parte de seu tempo direto de vida, ou de sua hora da morte, Mas o mesmo movimento o afeta ou a afeta continuamente depois disso, através do tempo indireto de vida. O indireto é tão importante quanto o direto, O espírito recebe do corpo tanto quanto ele dá ao corpo, talvez mais. Nenhuma palavra ou feito, nenhuma dor venérea, descoloração, privacidade do onanista, Podridão dos glutões ou dos bebedores de rum, peculato, astúcia, traição, assassinato, sedução, prostituição, Mas tem resultados além da morte tanto quanto antes da morte. Caridade e força pessoal são os únicos investimentos que valem coisa qualquer. Nenhuma especificação é necessária, tudo o que faz um macho ou uma fêmea, isso é vigoroso, benevolente, claro, é lucrativo para ele ou para ela, Na imperturbável ordem do universo e através do seu inteiro escopo para sempre. Aquele que é sábio recebe benefícios, Selvagem, criminoso, Presidente, juiz, fazendeiro, marinheiro, mecânico, literato, jovem, velho, o mesmo se dá com todos, Os benefícios retornarão — todos retornarão. Isoladamente, completo, para afetar agora, afetados em sua vez, para sempre afetarão, todo o passado, todo o presente e todo o futuro, Todas as corajosas ações de guerra e paz, Toda a ajuda dada aos parentes, estrangeiros, pobres, velhos, tristes, crianças novas, viúvas, aos doentes e às pessoas rejeitadas, Toda a renúncia que permaneceu constante e indiferente nos naufrágios e assistiu outros encherem os assentos dos botes, Todos oferecendo a substância da vida para a antiga e boa causa, ou por um amigo, ou por uma opinião, Todas as dores dos entusiastas ridicularizados por seus próximos, Todo o doce amor ilimitado e o precioso sofrimento das mães,  med.00400.371.jpg Todos os homens honestos confundidos em contendas registradas ou não registradas, Toda a grandeza e bem de nações antigas cujos fragmentos herdamos, Todo o bem de dúzias de nações antigas, não conhecidas de nós pelo nome, data e localização, Tudo o que foi virilmente iniciado, com sucesso ou sem sucesso, Todas as idéias da divina mente do homem ou da divindade de sua boca, ou o que foi modelado por suas mãos, Tudo o que é bem pensado ou dito atualmente em qualquer parte do globo, ou em qualquer uma das estrelas que perambulam, ou em qualquer das estrelas fixas, por aqueles que estão lá como nós estamos aqui, Tudo o que doravante está para ser pensado ou feito por ti, quem quer que sejas, ou por qualquer outra pessoa, Esses vigoram, têm vigorado, hão de vigorar, para as identidades das quais surgem ou das quais hão de surgir. Conjecturas que qualquer coisa viveu apenas o seu momento? O mundo não existe assim, nenhuma parte palpável ou impalpável existe assim, Nenhum apodrecimento existe sem que tenha origem em algum longo apodrecimento anterior, e esse último por sua vez com origem em outro, Sem que o mais remoto concebível chegue um pouco mais perto do começo que outro qualquer. O que quer que satisfaça as almas é verdadeiro; A prudência satisfaz inteiramente os anseios e a fome das almas, Em si mesma, finalmente, ela apenas satisfaz a alma, A alma tem aquele orgulho sem medida que se revolta contra todas as lições, exceto as suas próprias, Agora sopro o verbo da prudência que anda lado a lado com o tempo, com o espaço, com a realidade, Responde ao orgulho aquele que recusa todas as lições, exceto as suas próprias. A prudência é indivisível, Decai para separar uma parte da vida de todas as partes, Não separa o correto do incorreto ou o vivo do morto,  med.00400.372.jpg Combina todo pensamento ou ato ao seu correlativo, Não conhece perdão possível ou expiação comissionada, Sabe que o jovem que colocou a própria vida em risco e a perdeu, a si mesmo beneficiou-se, extraordinariamente, sem dúvida, Que aquele que nunca colocou sua vida em risco, mas que a retém até a idade avançada, em meio a riquezas e facilidades, provavelmente nunca atingiu algo para si que seja digno de menção, Sabe que a única pessoa que realmente aprendeu algo foi aquela que aprendeu a preferir os resultados, Aquela que favorece o corpo e a alma também, Aquela que percebe o indireto seguramente perseguindo o direto, Aquela que em seu espírito, em qualquer situação de emergência, nem se apressa nem evita a morte.

O cantor na prisão

1

Ó visão de piedade, vergonha e aflição! Ó pensamento temeroso — uma alma na prisão. Soou o estribilho pelo corredor, a prisão, Ergueu-se até o telhado e até as abóbadas do céu que está acima, Derramando-se em enchentes de melodia, em tons tão doces, reflexivos e fortes, que algo parecido jamais foi escutado, Alcançando a sentinela distante e a guarda armada que cessou sua marcha, Fazendo com que os pulsos dos que ouviram parassem de êxtase e de espanto.

2

O sol estava baixo no oeste em um dia de inverno, Quando dentro de um corredor estreito em meio aos ladrões e aos fora-da-lei da terra, (Lá, ao lado de centenas que estavam sentados, de assassinos com face árida, ardilosos falsários, Reunidos entre as paredes da prisão, para a missa de domingo, os vigilantes da ronda,  med.00400.373.jpg Numerosos, bem armados, tudo acompanhando com olhos atentos.) Uma dama entrou calmamente com duas criancinhas inocentes, seguras por suas mãos, Que se sentaram nos bancos ao lado dela, na plataforma, E, com seu instrumento, tocou baixinho um prelúdio musical, E sua voz, a tudo ultrapassando, cantou um velho hino exótico. Ó alma presa atrás das grades, Gritas: "Socorro!" no teu Hades, Cega. E, a sangrar, teu coração Não tem repouso nem perdão. Um ir e vir que não tem cura, Dias de dor, noites de amargura, Sem mão amiga, ou voz de amor Nem luz, nem beijo, nem favor. "Não tenho culpa nem pecado, Por este corpo fui levado À arena em que lutei, embora Tu foste, ó carne, a vencedora." Suporta, alma aprisionada, Serás em breve libertada, Com a morte que trará, então, O teu repouso e o teu perdão. Sem dores, e agora absolvida, Parte a alma, no fulgor da Vida.

3

A cantora cessou, Um olhar rápido de seus olhos claros e calmos percorreu aquelas faces revolvidas, Estranho mar de rostos aprisionados, mil rostos diferentes, astuciosos, brutais, rostos costurados e formosos, Ergueu-se, então, e atravessou atrás de si o estreito corredor entre eles, E enquanto sua saia os tocava e eles sussurravam em silêncio, Ela desapareceu com suas crianças na escuridão.  med.00400.374.jpg Sobre todos eles, condenados e guardas armados, antes agitados, (Condenados esquecendo-se da prisão, guardas esquecendo-se de suas pistolas carregadas) Um silêncio e uma pausa caíram por um minuto maravilhoso, Com soluços profundos e meio contidos e com o som de homens maus curvados e sensibilizados, chorando, E respirações convulsivas de jovens, lembranças do lar, A voz da mãe em canções de ninar, os cuidados da irmã, a infância feliz, O espírito há muito enclausurado, erguido para a reminiscência; Um minuto maravilhoso, então — e após a noite solitária, para muitos, muitos lá, Anos depois, mesmo na hora da morte, o triste refrão, o tom, a voz, as palavras Retomadas, a grande e calma dama anda pelo estreito corredor, A melodia lamentosa novamente, a cantora canta para os condenados: Ó visão de piedade, vergonha e aflição! Ó pensamento temeroso — uma alma na prisão.

Canção pelo tempo de lilás

Cantai para mim, agora, a alegria do tempo de lilás (voltando à memória), Escolhei para mim, ó língua e lábios, em nome da natureza, souvenirs do princípio de verão, Juntai os sinais bem-vindos (como as crianças com ágatas ou conchas penduradas) Colocai em abril ou em maio, as pererecas coaxando nos açudes, o ar elástico, Abelhas, borboletas, o pardal com notas simples, O azulão e a andorinha que se arremessam, sem esquecer o buraco- alto cintilando suas asas douradas, A tranqüila névoa solar, a fumaça que sobe, o vapor, O tremeluzir das águas com os peixes dentro delas, o azul celeste acima, Tudo o que é aprazível e brilhante, os riachos correndo, As florestas de carvalho silvestre, os cintilantes dias de fevereiro e a fabricação de açúcar,  med.00400.375.jpg O pisco de peito ruivo no lugar em que dança, com olhos brilhantes e peito marrom, Com um chamado musical claro na alvorada e, novamente, no crepúsculo, Ou esvoaçando entre as árvores do pomar de macieiras, construindo o ninho de seu par, A neve derretida de março, o salgueiro emitindo seus brotos amarelos esverdeados, Pois o tempo da primavera é aqui! O verão é aqui! E o que é isso em si mesmo e de si? Tu, alma, presa — a inquietação de ir atrás de algo que não sei; Vem! não nos atrasemos mais por aqui, que possamos subir e ir embora! Ó se alguém pudesse apenas voar como um pássaro! Ó escapar, para navegar como em um navio! Deslizar contigo, ó alma, sobre tudo, em tudo, como um navio sobre as águas; Reunindo esses sinais, os prelúdios, o céu azul, a relva, as gotas de orvalho matinal, O perfume de lilás, os arbustos com folhas verde-escuras em forma de coração, Violetas, os pequenos botões delicados e pálidos chamados inocência, Exemplos e tipos não por si mesmos, mas para a sua atmosfera, Para agraciar o arbusto que amo — para cantar com os pássaros, Uma canção pela alegria do tempo de lilases, voltando à memória.

Desenhos para uma tumba

(G. P., enterrado em 1870)

1

O que podemos cantar, ó tu que estás dentro dessa tumba? Que placas comemorativas, que desenhos, estão pendurados por ti, ó milionário? A vida que viveste não conhecemos, Mas sabemos que fizeste permutas pelos anos, em meio ao covil dos intermediários, Não há heroísmo teu, nem guerra, nem glória,
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Silêncio, minha alma, Com pálpebra abatida, como que esperando, ponderando, Voltando-se de todos os exemplos, monumentos de heróis. Enquanto através de visões internas, Elevações silenciosas, fantasmagóricas (como são, à noite, as Auroras do norte), Quadros vivos ligeiros, proféticos, cenas incorpóreas, Projeções espirituais. Em uma, entre as ruas da cidade, um trabalhador apareceu, Depois de seu dia de trabalho, limpo, com ar adocicado, a lamparina queimando, O carpete varrido e um fogão crepitante. Em uma, a cena sagrada do parto, Uma mãe feliz e sem dor dá à luz uma criança perfeita. Em um, uma abundante refeição matinal, Sentam-se pais pacíficos com filhos satisfeitos. Em um, em duplas e trios, pessoas jovens, Centenas se concentrando, andando pelos caminhos e pelas ruas e estradas, Na direção de uma escola com um domo alto. Em um, um lindo trio, Avó, a filha amorosa, a amorosa filha da filha, sentavam-se, Conversando e costurando. Em um, ao longo de um conjunto de salas nobres, Entre abundantes livros e jornais, pinturas nas paredes, estátuas finas, Estavam grupos de viajantes amistosos, mecânicos jovens e velhos, Lendo, conversando. Todos, todos os espetáculos da vida de trabalho, Cidade e país das mulheres, dos homens e das crianças, Suas necessidades providas, queimados de sol e tingidos uma vez com alegria,  med.00400.377.jpg Os casamentos, a rua, a fábrica, a fazenda, o quarto da casa, o alojamento, O labor e a faina, o banho, o ginásio, o parque de diversões, a biblioteca, o colégio, O estudante, o menino ou a menina, sendo conduzidos para aprender, O doente carregado, o que andava descalço calçado, o órfão com pai e mãe, O faminto alimentado, o sem-teto com uma casa; (As intenções perfeitas e divinas, Os trabalhos, os detalhes, humanamente felizes.)

3

Ó tu, dentro dessa tumba, De ti tais cenas, tu sem limites, esbanjador, Contabilizando os presentes da terra, grandes como a terra, Teu nome uma terra, com montanhas, campos e marés. Nem pelos vossos cursos apenas, vós, rios, Por ti, tuas margens, Connecticut, Por ti e por toda a tua vida pródiga, velho Tâmisa, Por ti, Potomac, lavando o solo sobre o qual Washington pisou, por ti, Patapsco, Tu, Hudson, tu, Mississippi infinito — e não vós apenas, Mas para o alto mar também lançados, meus pensamentos e as memórias dele.

Saindo de trás desta máscara

(Para confrontar um retrato)

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Saindo de trás desta máscara flexível e grosseiramente talhada, Essas luzes e sombras, esse drama do todo, Essa cortina comum da face contida em mim e para mim, e em ti para ti, em cada um para cada um, (Tragédias, tristezas, lágrimas — ó céu! Essas abundantes peças cheias de paixão, escondidas atrás desta cortina!) Esse esmalte do mais puro e sereno céu de Deus, Esse filme da fervura de Satã no abismo,  med.00400.378.jpg Esse mapa da geografia do coração, esse ilimitado pequeno continente, esse mar insondável, Saindo das circunvoluções deste globo, Este orbe astronômico mais sutil que o sol ou que a lua, que Júpiter, Vênus, Marte, Essa condensação do universo (e mais ainda o único universo que está aqui, Aqui a idéia, tudo neste punhado de pacotes místicos); Estes olhos entalhados, sinalizando para que passes ao tempo futuro, Para lançar e fazer girar através do espaço, revolvendo-se obliquamente, a partir destes para enviar-te — Quem quer que sejas — um olhar.

2

Um viajante de pensamentos e anos, de paz e de guerra, De juventude longamente vivida e declínio de meia-idade, (Como o primeiro volume de um conto de fadas lido cuidadosamente e deixado de lado, e, este, o segundo, Canções, aventuras, especulações, até o encerramento na atualidade) Demorando-se um pouco aqui e agora, volto-me para o lado oposto de ti, Como se estivesse na estrada ou na fenda de uma porta, por acaso, ou numa janela aberta, Parando, inclinando-me, descobrindo minha cabeça, saúdo-te de modo especial, Para atrair e abraçar tua alma uma vez, inseparavelmente com a minha, E depois viajar, seguir viagem.

Vocalismo

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Vocalismo, medida, concentração, determinação, e o divino poder de dizer palavras; Adquiriste amplos pulmões e os lábios doces em decorrência de longas experiências? Pela prática vigorosa? Por meios sobrenaturais? Move-te amplamente nestas terras, de acordo com a amplitude que é delas?  med.00400.379.jpg Vens obtusamente para o poder divino de falar palavras? Pois somente ao final, depois de muitos anos, depois da castidade, da amizade, da precaução, da prudência e da nudez, Depois de palmilhar o solo e enfrentar rios e lagos, Depois de uma garganta afrouxada, depois de absorver eras, temperamentos, raças, depois do conhecimento, da liberdade, de crimes, Depois de completar a fé, depois de clarificações, elevações e remoção de obstáculos, Depois disso tudo e mais, somente após isso é possível que venha a um homem, a uma mulher, o poder divino de dizer palavras; Então, para aquele homem ou para aquela mulher tudo se acelera — nada é recusado, tudo é atendido, Exércitos, navios, antiguidades, bibliotecas, quadros, máquinas, cidades, ódio, desespero, amizade, dor, latrocínio, assassinato, aspiração, enfileiram-se com proximidade, Emergem quando desejados para marchar obedientemente através da boca daquele homem ou daquela mulher.

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Ó o que é isso em mim que me faz tremer tanto quando soam vozes, Certamente, a quem quer que me fale no tom certo de voz, ele ou ela, eu seguirei, Como a água segue a lua, silenciosamente, com passos fluidos, em qualquer parte do globo. Tudo aguarda pelas vozes certas; Onde está o órgão treinado e perfeito? Em que parte da alma desenvolvida? Pois vejo que cada palavra proferida depois disso tem sons mais profundos, mais doces, mais novos, impossíveis em termos menores. Vejo cérebros e lábios fechados, tímpanos e templos desestruturados, Até que venha aquele que tem a qualidade para atacar e desvelar, Até que venha aquele que tem a qualidade para trazer à tona o que jaz dormente, para sempre pronto em todas as palavras.
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Para aquele que foi crucificado

Meu espírito para o teu, querido irmão, Não te preocupes porque muitos que dizem teu nome não te compreendem, Não digo teu nome, mas compreendo-te, Especifico-te com alegria, ó meu companheiro, para saudar-te e para saudar aqueles que estão contigo, antes e desde então, e aqueles que estão por vir igualmente, Que todos possamos trabalhar juntos, transmitindo o mesmo conteúdo e a mesma sucessão, Poucos de nós igualmente, indiferentes às terras, aos tempos, Nós, que contemos todos os continentes, todas as castas, que permitimos todas as teologias, Que sentimos compaixão, que percebemos, que nos comunicamos com os homens, Andamos em silêncio entre disputas e afirmações, sem rejeitar os que disputam ou qualquer coisa que eles afirmem, Ouvimos os gritos e os alaridos, somos alcançados pelas divisões, pelo ciúme, pelas recriminações de todos os lados, Eles se fecham peremptoriamente sobre nós para nos cercar, meu companheiro, E, contudo, saímos intocados, livres, e pela terra inteira jornadeamos, para lá e para cá, até que deixemos nossa marca irreconhecível sobre o tempo e as diversas eras, Até que saturemos o tempo e as eras, até que os homens e as mulheres das raças e idades por vir possam demonstrar tanta fraternidade e amor quanto nós.

Vós, condenados em julgamentos nas cortes

Vós, condenados em julgamentos na cortes, Vós, condenados em celas de prisão, vós, assassinos sentenciados, acorrentados e algemados com ferro, Quem sou eu também para não estar em julgamento ou na prisão? Eu, desumano e diabólico como qualquer um, como pode ser que meus pulsos não estejam acorrentados com ferro e meus tornozelos não estejam presos com ferro?  med.00400.381.jpg Vós, prostitutas ostensivas nas ruas ou obscenas em vossos quartos, Quem sou eu que deveria chamar-vos de mais obscenas que eu? Ó sou culpável! reconheço — revelo-me! (Ó admiradores, não me louveis — não vos congratuleis comigo — ou me sentirei constrangido, Vejo aquilo que não podeis ver — sei o que não sabeis.) Dentro dos ossos de meu peito, jazo sufocado e engasgado, Debaixo desta face que parece tão impassível, marés do inferno correm continuamente, Lascívia e maldade são aceitáveis para mim, Ando com delinqüentes, amando-os apaixonadamente, Sinto que sou deles — eu mesmo pertenço àqueles condenados e às prostitutas, E de agora em diante não os negarei — pois como posso negar a mim mesmo?

Leis para as criações

Leis para as criações, Por artistas fortes e líderes, por gerações novas de professores e perfeitos literatos da América, Por nobres da savana e músicos emergentes. Tudo deve ter uma correlação com a estrutura do mundo e com a sólida verdade do mundo, Não deve haver sujeito que seja pronunciado demais — todas as obras devem ilustrar a divina lei das dissimulações. O que supões que seja a criação? O que supões que possa satisfazer a alma, senão a possibilidade de andar em liberdade e sem qualquer superior? O que supões que eu iria segredar-te em centenas de modos diferentes, a não ser o fato de que aquele homem e aquela mulher são tão bons quando Deus? E de que não existe Deus mais divino do que tu? E é isso que os mais antigos e mais novos mitos realmente significam?  med.00400.382.jpg E que tu ou qualquer outra pessoa precisam aproximar-se das criações através dessas leis?

Para uma prostituta comum

Está tranqüila — fica à vontade comigo — sou Walt Whitman, liberal e vigoroso como a natureza, Enquanto o sol não te excluir, também eu não te excluirei, Enquanto as águas não se recusarem a brilhar por ti e as folhas não deixarem de farfalhar por ti. Minha garota, marco contigo um encontro e encarrego-te de que faças preparações para que sejas digna de encontrar-me, E cobro-te que sejas paciente e perfeita até que eu chegue. Até que esse dia venha, eu te saúdo com um olhar significativo, de modo que não te esqueças de mim.

Procurei por um longo tempo

Procurei por um longo tempo por intenções, Pela ponta do novelo da história de meu passado e por esses cantos — e agora eu o encontrei, Não está naquelas fábulas paginadas nas bibliotecas (essas eu nem aceito nem rejeito) Não está mais nas legendas do que em todos os demais lugares, Está no presente — está nesta terra, hoje, Está na Democracia — (o sentido e o objetivo de todo o passado,) É a vida de um homem ou de uma mulher hoje — o homem médio de hoje, Está nas línguas, nos costumes sociais, na literatura, nas artes, Está no amplo espetáculo das coisas artificiais, nos navios, nas máquinas, na política, nos credos, nas melhorias modernas e no intercâmbio das nações, Tudo pelo moderno — tudo pelo homem médio de hoje.
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Pensamento

De pessoas que chegaram a posições elevadas, cerimônias, riqueza, erudição e coisas semelhantes; (Para mim, tudo o que essas pessoas alcançaram foge delas, exceto na medida em que tenha impacto sobre seus corpos e suas almas, De modo que, com freqüência, eles parecem desolados e desnudos, E com freqüência para mim cada um desdenha dos outros e desdenha de si mesmo ou de si mesma, E a essência da vida de cada um, a saber: a felicidade, está repleta de excrementos apodrecidos pelos vermes, E com freqüência, a meu ver, aqueles homens e mulheres passam inconscientemente pelas verdadeiras realidades da vida e caminham na direção de falsas realidades, E com freqüência, a meu ver, eles estão vivos para aquilo em que os costumes os têm servido, e nada mais, E com freqüência, a meu ver, eles são tristes, apressados, sonâmbulos, desacordados andando na escuridão).

Milagres

Por que alguém se espanta com um milagre? Quanto a mim, não sei de coisa alguma que não seja um milagre, Se ando pelas ruas de Manhattan, Ou lanço meu olhar sobre os telhados das casas na direção do céu, Ou ando com os pés descalços ao longo da praia, bem na beira da água, Ou permaneço sob as árvores na floresta, Ou converso durante o dia com qualquer um a quem amo, ou durmo na cama à noite com qualquer um a quem amo, Ou me sento à mesa de jantar com os demais, Ou olho para os estranhos que se sentam de frente para mim no carro, Ou assisto as abelhas melífluas ocupadas em torno da colméia numa manhã de verão, Ou os animais se alimentando nos campos, Ou os pássaros, ou as maravilhas dos insetos no ar, Ou as maravilhas do crepúsculo, ou das estrelas cintilando tão quietas e brilhantes, Ou as exóticas e delicadas e finas curvas da lua nova na primavera;  med.00400.384.jpg Esses e os demais, um e todos, são milagres para mim, A referência inteira e, contudo, cada um distintamente em seu lugar. Para mim toda hora de luz e de escuridão é um milagre, Cada centímetro cúbico do espaço é um milagre, Cada jarda quadrada da superfície da terra é formada por ele, Cada pé de suas profundezas está infestada dele. Para mim o mar é um milagre contínuo, Os peixes que nadam — as pedras — o movimento das ondas — os navios com os homens neles, Que milagres mais estranhos pode haver?

Faíscas da roda

Onde as multidões incessantes da cidade se movimentam no dia prolongado, Retirado, uno-me a um grupo de crianças que assistem a uma cena e paro ao lado delas. No parapeito, próximo à beira da laje, Um afiador de facas trabalha em sua roda, afiando uma grande faca, Curvando-se, ele segura cuidadosamente a faca sobre a pedra; com o pé e o joelho Dá pisões rítmicos que fazem a roda girar rapidamente, enquanto aperta a faca com mão leve, porém firme, Emitindo, então, em copiosos jatos dourados, As faíscas da roda. A cena, e tudo o que a ela pertence, captura-me e afeta-me, O homem triste, de queixo agudo, com roupas gastas e uma alça larga de couro sobre os ombros, Eu efusivo e fluido, um fantasma que flutua por aí levando sua curiosidade, agora, aqui, encontro-me preso e absorto, O grupo (um ponto despercebido numa vasta região da cidade), As crianças atentas e quietas, enquanto as ruas permanecem barulhentas, orgulhosas, impacientes, O som baixo e rouco do ronronar da pedra giratória, a lâmina levemente pressionada,  med.00400.385.jpg Difundindo, fazendo cair, atirando para os lados, em finos chuveiros de ouro, As faíscas da roda.

A um pupilo

A reforma é necessária? Ela se dará através de ti? Quanto maior a reforma necessária, maior a Personalidade necessária para realizá-la. Tu não vês como seria útil teres olhos, sangue, compleição! Não vês como seria útil teres um corpo tal e uma alma tal que, no momento em que entrasses na multidão, uma atmosfera de desejo e liderança entrasse contigo? Todos ficariam impressionados com a tua Personalidade. Ó ímã! A carne e novamente a carne! Segue, amigo querido, se preciso for desiste de todo o resto e inicia hoje a te habituar à garra, à realidade, à auto-estima, à clareza, à elevação, Não descanses até fixar e publicar em ti a tua própria Personalidade.

Desentranhado das entranhas

Desentranhado das entranhas da mulher, o homem surge desentranhado, e deve sempre surgir desentranhado, Somente quando desentranhado da mais extraordinária mulher da Terra, surgirá o mais extraordinário homem da Terra, Somente quando desentranhado da mulher mais amistosa, deve surgir o homem mais amistoso, Somente quando desentranhado do perfeito corpo de uma mulher pode um homem ser formado por um corpo perfeito, Somente desentranhados a partir dos inimitáveis poemas da mulher, podem surgir os poemas do homem (apenas dessa fonte promanam meus poemas); Desentranhado da mulher forte e arrogante que amo, somente dessa fonte pode surgir o homem forte e arrogante que amo, Desentranhados por meio de vigorosos abraços da mulher musculosa  med.00400.386.jpg que amo, somente dessa fonte podem emanar os abraços vigorosos dos homens, Desentranhados das entranhas do cérebro da mulher provêm todas as entranhas do cérebro do homem, devidamente obediente, Desentranhado da justiça da mulher, toda a justiça é desentranhada, Desentranhada da solidariedade da mulher está toda a solidariedade; Um homem é algo grandioso sobre a Terra e através da eternidade, mas toda partícula de grandeza do homem é desentranhada da mulher; Primeiramente o homem é formado dentro da mulher, posteriormente pode ele assumir a própria forma.

O que sou eu, afinal

Que sou eu, afinal, senão uma criança, satisfeita com o som de meu próprio nome? Repetindo-o mais e mais; Retiro-me para ouvi-lo — e ele não me cansa jamais. Para ti teu nome também; Pensaste que em teu nome não havia nada além de dois ou três sons pronunciáveis?

Cosmos

Que inclui a diversidade e é a natureza, Que é a amplitude da Terra, e a aspereza e a sexualidade da Terra, e a grande caridade da Terra, e o equilíbrio também, Que não enxergou através das janelas dos olhos sem que houvesse algum motivo, ou cujo cérebro não teve uma audiência com mensageiros sem que houvesse algum motivo, Que contém os que crêem e os que não crêem, que é o mais majestoso amante, Que mantém devidamente a sua proporção trina de realismo, espiritualismo, e do estético ou intelectual, Que tendo considerado o corpo encontra todos os seus órgãos e vai em perfeitas condições, Que a partir da teoria da terra e da teoria do seu corpo compreende, por uma sutil analogia, todas as outras teorias,  med.00400.387.jpg A teoria de uma cidade, um poema, e das grandes políticas destes Estados; Que não acredita apenas em nosso globo com seu sol e sua lua, mas também em outros globos com os seus sóis e suas luas, Que, construindo a casa para si, não apenas por um dia, mas para todos os tempos, vê as raças, as eras, as datas, as gerações, O passado, o futuro residindo nela, como também o espaço, inseparavelmente unidos.

Outros podem louvar aquilo de que gostam

Outros podem louvar aquilo de que gostam; Mas eu, desde as margens das corredeiras do Missouri, louvo cousa alguma na arte ou em qualquer outra área, Até que tenha inspirado a atmosfera deste rio e também o perfume das pradarias do oeste, E expirado tudo isso novamente.

Quem aprende minha lição inteira?

Quem aprende minha lição inteira? Patrão, viajante, aprendiz, religioso e ateu, O estúpido e o sábio pensador, pais e novas gerações, mercador, advogado, carregador e cliente, Editor, autor, artista e aluno da escola — são atraídos e são iniciados; Não é uma lição — ela enfraquece as barras de uma boa lição, E essa as de outra, e cada uma as de outra ainda. As grandes leis tomam e espalham sem ter um argumento, Tenho o mesmo estilo, pois sou amigo delas, Eu as amo quites e quites, não paro para fazer salamaleques. Deito-me distraído e ouço lindos contos sobre as coisas e a razão de ser das coisas, Elas são tão maravilhosas que me acotovelo para ouvi-las. Não posso dizer para qualquer pessoa aquilo que ouço — não posso dizê-lo sequer para mim mesmo — é muito maravilhoso.  med.00400.388.jpg Não uma questão diminuta, este globo redondo e delicioso movendo- se com tanta exatidão em sua órbita para sempre e sempre, sem um único erro ou inverdade, por um único segundo, Não penso que ele foi feito em seis dias, nem em dez mil anos, nem em dez bilhões de anos, Nem planejado e construído, uma coisa após a outra, como um arquiteto planeja e constrói uma casa. Não penso que setenta anos é o tempo de um homem ou de uma mulher, Nem que setenta milhões de anos é o tempo de um homem ou de uma mulher, Nem que os anos jamais deterão a minha existência ou a de qualquer outra pessoa. É maravilhoso o fato de que devo ser imortal? Todos são imortais; Sei que é maravilhoso, mas o alcance de minha vista é igualmente maravilhoso e o modo pelo qual fui concebido no ventre de minha mãe é igualmente maravilhoso, E o ter passado da fase de bebê que engatinha, em alguns verões e invernos, para a de um ser que fala e anda — tudo isso é igualmente maravilhoso. E que minha alma te abraça nesta hora sem que haja contato físico entre nós, sem que nos tenhamos visto e talvez nunca venhamos a nos ver, em cada detalhe, é maravilhoso. E que eu possa ter pensamentos tais como estes é também maravilhoso, E que possa te fazer lembrar desses pensamentos e que também tu os terás e saberás que são verdadeiros, é também maravilhoso. E que a lua gira em torno da terra e segue a órbita da terra é igualmente maravilhoso, E que ambas se equilibram com o sol e as estrelas é igualmente maravilhoso.
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Testes

Todos se submetem a eles, no lugar em que eles se encontram, no interior, seguros, inabordáveis para a análise dentro da alma, As tradições não são, as autoridades exteriores não são os juízes, Eles é que são os juízes das autoridades exteriores e das tradições, Eles confirmam no caminho apenas aquilo que os confirma e que os toca; Por tudo isso, eles os têm em si para sempre, para confirmar, distantes ou próximos, sem qualquer exceção.

A tocha

Em minha costa noroeste, no meio da noite, um grupo de pescadores permanece vigiando, Lá fora, no lago que se expande diante deles, outros estão lanceando salmão, A canoa, um objeto fosco e sombrio, move-se através da água turva, Portando uma tocha ardente na proa.

Ó estrela da França

(1870–71)

Ó estrela da França, O brilho de tua esperança e força e fama, Como algum navio orgulhoso que conduziu a frota por muito tempo, Parece hoje um destroço dirigido pelo vento, um enorme navio sem mastro, E em meio à sua tripulação numerosa, enlouquecida, metade afogada, Nem leme, nem piloto. Estrela fosca e golpeada, Orbe não apenas da França, pálido símbolo de minha alma, suas esperanças mais queridas, A luta e a ousadia, fúria divina por liberdade, De aspirações na direção do ideal distante, sonhos entusiastas de fraternidade, De terror para o tirano e para o sacerdote.  med.00400.390.jpg Estrela crucificada — vendida por traidores, Estrela arquejante sobre uma terra de morte, terra heróica, Terra estranha, apaixonante, zombeteira, frívola. Miserável! Contudo, por teus erros, tua vaidade, teus pecados, não hei de censurar-te agora, Tuas aflições inimitáveis e agonias corrigiram-te, E deixaram-te sagrada. Além disso, em meio às tuas muitas faltas, tu sempre mantiveste tuas metas elevadas, E jamais vendeste a ti mesma, não importando a grandeza do preço, Certamente acordaste chorando de teu sono entorpecido, E somente tu, entre tuas irmãs, gigante, rendeste aqueles que te envergonhavam, E que tu não poderias usar, nem usarias as cadeias de sempre, Esta cruz, teu rosto lívido, tuas mãos perfuradas e teus pés, A lança enfiada em teu lado. Ó estrela! Ó embarcação da França, surrada por aqueles que surraste e por muito tempo confundida! Suporta, ó orbe golpeado! Ó navio, prossegue! Certo como o navio de sempre, a Terra em si mesma, Produto de fogo mortal e de caos turbulento, Para adiante, a partir de teus espasmos de fúria e de teus venenos, Emitindo, finalmente, perfeito, poder e beleza, Para adiante, debaixo do sol, seguindo teu curso, Assim tu, ó navio da França! Terminados os dias, as nuvens dispersadas, Vencidas as dores do parto, a libertação por longo tempo buscada, Quando, vê, renascida, alta sobre o mundo europeu! (Com alegria, respondendo desde então, como face longe da face, refletindo a nossa, Colúmbia) Novamente tua estrela, ó França, bela e lustrosa estrela, Na paz celestial, mais clara, mais brilhante do que nunca, Há de brilhar imortal.
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O domador de bois

Em um longínquo condado do norte, na plácida região pastoral, Mora meu amigo fazendeiro, o tema de minha recitação, um famoso domador de bois, Ali são trazidos os de três e os de quatro anos para que ele os amanse, Ele escolherá o boi mais selvagem do mundo e o amansará e o domará, Ele seguirá intimorato sem carregar um chicote, no lugar em que o jovem novilho esfola o terreno para lá e para cá, A cabeça do novilho lança-se sem descanso para cima, no ar, com olhos de fúria, Contudo, observa! Logo sua fúria é submetida — com que rapidez esse domador doma o novilho; Observa! Nas fazendas próximas uma centena de bois jovens e velhos, e ele é o homem que os domou, Todos eles o conhecem, todos eles são afeiçoados a ele; Observa! Alguns são animais tão cheios de beleza, com aparência tão altiva; Alguns têm uma cor polida, alguns são matizados, alguns têm uma linha branca que corre ao longo do dorso, alguns são malhados, Alguns têm chifres amplos e fulgurantes (um bom sinal) — observa! Os couros brilhantes, Observa, os dois que têm estrelas na testa — observa, corpos arredondados e dorso largo, Como se sustentam retos e quadrados sobre suas pernas — que olhos finos e sagazes! Como assistem seu domador — eles querem que ele fique por perto — como eles se voltam para procurá-lo! Que expressão de anseio! Como ficam desconfortáveis quando ele os deixa; E agora, sinto-me maravilhado em pensar naquilo que ele representa para eles (tudo se esvaece: livros, política, poemas se esvaecem), Confesso que invejo apenas a sua fascinação — meu amigo silente, analfabeto, A quem uma centena de bois adora, ali em sua vida nas fazendas, No condado longínquo do norte, na plácida região pastoral.
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O pensamento de um velho homem sobre a escola

(Para a inauguração da Escola Pública, Camden, New Jersey, 1874)

O pensamento de um velho homem sobre a escola, Um homem recolhendo lembranças cheias de juventude e florações daquele tempo, o que os próprios jovens não podem fazer. Agora apenas vos conheço, Ó belos céus da aurora — ó orvalho matinal sobre a relva! E esses eu vejo, esses olhos faiscantes, Esses armazéns de místico significado, essas vidas jovens, Construindo, equipando como uma frota de navios, navios imortais, Para em breve navegar sobre mares imensuráveis, Na viagem da alma. Apenas um punhado de meninos e meninas? Apenas cansativa aula de soletrar, escrever, calcular? Apenas uma escola pública? Ah! mais, infinitamente mais; (Foi assim que George Fox ergueu seu brado de alerta, "Será esta pilha de tijolos e argamassa, esses chãos mortos, janelas, corrimões o que chamais de igreja? Porque isto não é a igreja, absolutamente — a igreja é vida, são almas eternamente vivas".) E tu, América, Calculas o valor real de teu presente? As luzes e sombras de teu futuro, bom ou mau? Para a vida das meninas e dos meninos, o professor e a escola.

Vagando na manhã

Vagando na manhã, Emergindo da noite, de pensamentos melancólicos, tu em meus pensamentos, Anelo pela harmoniosa união! Tu, divino pássaro cantador! Tu envolveste meu país em tempos malignos, com malícia e negra  med.00400.393.jpg aflição, com toda a maldade e traição atirada sobre ti, Esse espanto comum testemunhei — vi o tordo pai alimentando sua cria, O tordo cantante cujos tons de alegria e extática fé, Não falham em certificar e estimular minha alma. Ali tendo ponderado, senti, Se minhocas, cobras, vermes abomináveis podem também ser transformados em canções espirituais, Se pragas assim transformadas tão úteis e abençoadas podem ser, Então que eu possa confiar em ti, em tua sorte, em teus dias, em meu país; Quem sabe se essas podem ser as lições adequadas a ti? Dessas, a tua canção futura poderá surgir com alegres vibrações, Destinadas a espalhar-se pelo mundo.

Música italiana em Dakota

("A décima sétima — a melhor banda regimental que já ouvi.")

Através do ar da noite suave, a tudo envolvendo, Rochas, florestas, forte, canhão, sentinelas marchando, matas sem fim, Em doces correntes, em notas de flauta e cornetas, Elétrica, reflexiva, turbulenta, artificial, (E, contudo, estranhamente se encaixando até mesmo aqui, com significados antes desconhecidos, Mais sutis do que nunca, com mais harmonia, como se tivesse nascido aqui, como se tivesse parentes aqui, Não para os salões decorados da cidade, não para a audiência do salão de ópera, Sons, ecos, tensões que divagam, como aqui mesmo em casa, O amor inocente de Sonnambula, trios com a angústia de Norma, E teu extático coro Poliuto); Irradiado no límpido e amarelo oblíquo crepúsculo, Música, música italiana em Dakota. Enquanto a natureza, soberana deste reino retorcido, Espreitando em horrendo e oculto bárbaro retiro, Mantendo o contato, embora afastada,  med.00400.394.jpg (Como de uma velha raiz ou solo da terra, a sua última flor ou seu último fruto) Escuta satisfeita.

Com todos os teus dons

Com todos os teus dons, América, Mantendo-te segura, rapidamente servindo, examinando o mundo, Poder, riqueza, extensão, outorgados a ti — com esses e outros semelhantes outorgados a ti, O que seria de ti se um único dom te faltasse? (sem jamais poder resolver o maior dos problemas humanos), O dom de mulheres perfeitas adequadas a ti — o que seria se esse dom dos dons te faltasse? O teu altivo feminino? A beleza, a saúde, a compleição, adequadas a ti? As mães feitas para ti?

Minha galeria de fotos

Em uma casa pequena guardo fotografias suspensas, não é uma casa fixa, É redonda, tem apenas algumas polegadas de um lado até o outro; Contudo observa, há espaço suficiente para todos os espetáculos do mundo, todas as lembranças! Aqui os quadros da vida, e aqui os agrupamentos da morte; Aqui, conheces este? Este é o próprio cicerone, Com o dedo erguido ele aponta para as fotografias pródigas.

Os Estados da pradaria

Um novo jardim da criação, sem a solidão primitiva, Denso, alegre, moderno, populoso aos milhões, cidades e fazendas, Com o ferro entrelaçado, composto, preso, muitos em um só, Recebendo contribuições do mundo inteiro — sociedade da liberdade, da lei, da futilidade, O paraíso lotado e produtivo, até o momento, de acúmulos de tempo, Para justificar o passado.
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Orgulhosa música da tempestade

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Orgulhosa música da tempestade, Explosão que tão livre corre, assobiando através dos prados, Forte zunido do topo das árvores da floresta — vento das montanhas, Formas obscuras personificadas — vós, orquestras ocultas, Vós, serenatas de fantasmas com instrumentos prontos, Fundindo com os ritmos da natureza todas as línguas das nações; Vós, cordas deixadas como que por grandes compositores — vós, corais, Vós, sem forma, livres, danças religiosas — vós, do Oriente, Vós, som pálido dos rios, ronco das cataratas torrenciais, Vós, sons de armas distantes com cavalaria a galope, Ecos dos acampamentos com todos os diferentes toques de clarim, Agrupando-se tumultuosamente, enchendo a meia-noite, fazendo- me arquear sem força, Adentrando minha solitária câmara do sono, por que me agarrastes?

2

Avança, ó minha alma, permite que os demais descansem, Ouve, não percas, é a ti que eles servem, Dividindo a meia-noite, entrando na câmara de meu sono, Por vós eles cantam e dançam, ó alma. Uma canção de festival, O dueto da noiva e do noivo, uma marcha de casamento, Com lábios de amor e corações de amantes cheios até o topo de amor, As faces avermelhadas e os perfumes, o séquito infestado cheio de rostos amistosos, jovens e velhos, Para as claras notas da flauta e os sons cantáveis das harpas. Agora se aproxima o som alto dos tambores, Vitória! Viste, embora em meio à poeira e à fumaça, os estandartes rasgados, mas voando? A derrota fragorosa dos confusos? Ouviste aqueles gritos do exército conquistador? (Ah, alma, os soluços das mulheres, os feridos gemendo em agonia, O sibilo e os estalos das chamas, as ruínas enegrecidas, as brasas das cidades,  med.00400.396.jpg O hino fúnebre e a desolação da humanidade.) Agora ares antigos e medievais me alimentam, Vejo e ouço velhos harpistas com suas harpas em festivais gauleses, Ouço os minicantores cantando suas canções de amor, Agora se ouve o som do grande órgão, Trêmulo, enquanto subterrâneo (como os fundamentos ocultos da terra, Nas quais descansam quando se erguem, e se apóiam quando saltam para adiante, Todas as formas da beleza, graça e força, todos os matizes que conhecemos, Verdes hastes de relva e pássaros que gorjeiam, crianças que brincam e jogam, nas nuvens do céu acima) A forte base se ergue e suas pulsações não cessam, Banhando-se, apoiando, fundindo todas as demais, maternidade de todas as outras, E com ele todos os instrumentos em multidões, Os instrumentistas tocando, todos os músicos do mundo, Os hinos solenes e as missas em estimulante adoração, Todos os cantos de corações apaixonados e apelos de tristeza, Os imensuráveis vocalistas doces das idades, E por sua dissolvente afinação no próprio diapasão da Terra, De ventos e florestas e poderosas ondas do oceano, Uma nova composição de orquestra, enfeixadora de anos e de climas, renovadora e multiplicadora, Como nos contam os poetas da Antiguidade, o Paradiso, O extravio desde então, a longa separação, mas agora o fim da divagação, A jornada concluída, o viajante volta para casa, O homem e a arte fundem-se novamente à natureza. Tutti! Pela terra e pelo céu, (O condutor todo poderoso faz agora um sinal com sua batuta.) A estrofe viril dos maridos do mundo, E a resposta de todas as esposas.  med.00400.397.jpg As línguas dos violinos, (Penso, ó línguas, que dizeis a este coração aquilo que ele não pode dizer a si mesmo, Este coração gerador de ânsias, que não pode falar de si mesmo.)

3

Ah, de uma pequena criança, Embora soubeste, alma, como para mim todos os sons se tornaram música, A voz de minha mãe nas cantigas de ninar ou no hino, (A voz, ó vozes suaves, vozes de amoráveis lembranças, Último de todos os milagres, ó queridíssima voz de mãe, de irmã); A chuva, o milho que cresce, a brisa que agita o milho mais durável, A arrebentação cadenciada das ondas marítimas batendo na areia, Os pássaros cantores, o grito agudo do falcão, As notas das aves selvagens à noite, voando baixo, migrando para o norte e para o sul, O salmo na igreja do interior ou em meio às árvores agrupadas, o encontro ao ar livre no campo, O rabequista na taverna, o trovador, a canção há muito sufocada do marinheiro, O gado mugindo, os carneiros balindo, o canto do galo ao amanhecer. Todos os cantos das terras atuais soam em torno de mim, Os ares germânicos de amizade, vinho e amor, Baladas irlandesas, danças alegres, cânticos ingleses, Canções da França, tons escoceses e, acima de tudo, Incomparáveis composições italianas. Através do palco, com palidez na face, e ainda com fantástica paixão, Ataca Norma brandindo a adaga em sua mão. Vejo os pobres olhos enlouquecidos de Lúcia com brilho artificial, Seus cabelos sobre as costas caem soltos e desgrenhados. Vejo o lugar em que Ernani anda no jardim nupcial, Em meio ao perfume das rosas da noite, radiante, segurando a noiva pelas mãos, Ouve o chamado do inferno, o juramento de morte do clarim.  med.00400.398.jpg Para o cruzamento de espadas e os cabelos grisalhos descobertos sob o céu, A clara base elétrica e barítona do mundo, O dueto de trombone, Liberdade para sempre! Da densa sombra das castanheiras espanholas, Próximas às velhas e pesadas paredes de um convento, uma canção gemente, Canção de amor perdido, a tocha da juventude e da vida extinta em desespero, Canção do cisne moribundo, o coração de Fernando está se quebrando. Despertada de suas agonias, liberta afinal, Amina canta, Abundantes como as estrelas e felizes como a luz da manhã, as torrentes de sua satisfação. (A fértil dama vem, O lustroso orbe, Vênus contralto, a mãe florescendo, Irmã de elevados deuses, o ser de Alboni eu ouço.)

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Ouço aquelas odes, sinfonias, óperas, Ouço no Guilherme Tell a música de uma gente excitada e furiosa, Ouço de Meyerbeer: Huguenots, O Profeta ou Robert, Fausto de Gounod, ou Don Juande Mozart. Ouço a música dançante de todas as nações, A valsa, alguma com deliciosa cadência, transcorrendo, banhando-me em bem-aventurança, O bolero para violões que tilintam e versáteis castanholas. Vejo danças religiosas antigas e novas, Ouço o som da lira hebraica, Vejo os cruzados marchando sustentando alta a cruz, ao clangor marcial dos címbalos, Ouço os muçulmanos cantando monotonamente, entremeados por brados frenéticos, sempre que se voltam para Meca, Vejo as arrebatadas danças religiosas dos persas e dos árabes, Novamente, em Elêusis, morada de Ceres, vejo os gregos modernos dançando, Ouço-os batendo palmas quando se inclinam,  med.00400.399.jpg Ouço-os arrastando metricamente os seus pés. Vejo novamente a antiga e selvagem dança coribântica, os dançarinos ferindo-se uns aos outros, Vejo a juventude romana, ao som estridente dos flajolés, jogando suas armas para cima e recolhendo-as, Caindo de joelhos e erguendo-se outra vez. Ouço, da mesquita muçulmana, o chamado do Muezim, Vejo aqueles que adoram o ser interior, sem forma nem sermão, sem argumento ou palavra, Mas silentes, estranhos, devotados, elevados, com cabeças brilhantes, faces extáticas. Ouço a harpa egípcia de muitas cordas, Os cantos primitivos do barqueiro do Nilo, Os hinos sagrados da China imperial, Os sons delicados para o rei (a madeira e a pedra feridas), Ou as flautas hindus e o irritante som metálico da vina, Tocados para um grupo de bailadeiras.

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Agora, Ásia, África, deixai-me, o abraço da Europa me faz crescer, Os órgãos imensos e as bandas eu ouço de uma vasta confluência de vozes, O hino forte de Lutero, Eine feste Burg ist unser Gott, O Stabat Mater dolorosa de Rossini, Ou flutuando em alguma alta catedral escurecida por lindos vitrais coloridos, O apaixonado Agnus Dei ou Gloria in Excelsis. Compositores! Poderosos maestros! E vós, doces cantores de terras antigas, soprani, tenori, bassi! Para vós um novo bardo cantarolando no Oeste, Fazendo reverências, envia seu amor. (Isso nos levou a ti, ó alma, Todos os sentidos, aparências e objetos, levam para ti, Mas agora me parece que o som nos conduz sobre todo o resto.)  med.00400.400.jpg Ouço o canto anual das crianças na catedral de St. Paul, Ou, debaixo do telhado alto de algum salão colossal, as sinfonias, os oratórios de Beethoven, Handel, ou Haydn, A Criação em vagas de divindade me lava. Fazei-me guardar todos os sons (loucamente lutando, choro), Enchei-me com todas as vozes do universo, Dotai-me de suas pulsações, as da natureza também, As tempestades, as águas, os ventos, óperas e cantos, marchas e danças, Expressai, derramai, pois tudo levarei!

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Então acordei suavemente, E parando, refletindo por um momento na música de meu sonho, E refletindo sobre todas as reminiscências, a fúria da tempestade, E todas as canções de sopranos e tenores, E aquelas danças orientais arrebatadas de fervor religioso, E os instrumentos doces e variados, e o diapasão dos órgãos, E todos os lamentos sem arte de amor, de pesar e de morte, Eu disse para minha alma silenciosa e curiosa, saindo de meu quarto de dormir, Vem, pois encontrei a chave que tenho procurado por tanto tempo, Vamos em frente, renovados em meio ao dia, Vibrantemente elevando a vida, andando pelo mundo, o real, Nutridos doravante pelo nosso sonho celestial. E disse ainda mais, Feliz porque aquilo que ouviste, ó alma, não foi o som dos ventos, Nem sonho de uma tempestade furiosa, nem o falcão marítimo batendo suas asas ou gritando asperamente, Nem o vocalismo de uma Itália ensolarada, Nem um majestoso órgão alemão, nem uma vasta confluência de vozes, nem camadas de harmonias, Nem estrofes de maridos e esposas, nem o som de soldados marchando, Nem flautas, nem harpas, nem os chamados dos clarins dos acampamentos, Mas para novos ritmos adequados a ti, Poemas fazendo uma ponte entre a Vida e a Morte, vagamente arejados em ares noturnos, intocados, nunca escritos, Deixando-nos seguir no dia audacioso para escrever.
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Passagem para a Índia

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Cantando meus dias, Cantando os grandes feitos do presente, Cantando o forte e leve trabalho dos engenheiros, Nossas modernas maravilhas (as importantes sete antigas ultrapassadas), No Velho Mundo a leste do Canal de Suez, O Novo atravessado por sua poderosa estrada de ferro, Embutidos sob os mares, cabos eloqüentes e gentis; Contudo, o primeiro a soar, e o que sempre soa, o teu brado, ó alma, O Passado! o Passado! o Passado! O Passado — o escuro insondável retrospecto! O fértil golfo — os dormentes e as sombras! O passado — a infinita grandeza do passado! Pois o que é o presente afinal, senão um broto saído do passado? (Formado como um projétil, lançado, ultrapassa uma certa linha e continua, Então, o presente, inteiramente formado, é impelido pelo passado.)

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Passagem, ó alma, para a Índia! Iluminando os mitos asiáticos, as fábulas primitivas. Não apenas vós, verdades orgulhosas do mundo, Não apenas vós, fatos da ciência moderna, Mas os mitos e a fábulas antigas, fábulas da Ásia, da África, Os raios do espírito lançados na distância, os sonhos nunca afrouxados, Os mergulhos profundos das bíblias e das lendas, Os ousados enredos dos poetas, a religião dos antigos; Ó vós, templos mais belos que os lírios sobre os quais o sol nascente se derrama! Ó vós, fábulas rejeitando o conhecido, esquivando-se do abraço do conhecido, subindo aos céus! Vós, torres altivas e estonteantes, pináculos, vermelhas como rosas, polidas com ouro! Torres de fábulas imortais, criadas a partir de sonhos mortais! Também vós sois bem-vindos para mim, inteiramente como os demais!  med.00400.402.jpg Vós também com alegria eu canto. Passagem para a Índia! Contempla, alma, não vês o propósito de Deus desde o início? Que a terra fosse atravessada, conectada por uma rede, As raças, vizinhos, casar e ser dada em casamento, O oceano a ser cruzado, o distante trazido para perto, As terras para serem soldadas juntas. Um novo culto eu canto, Vós, capitães, viajantes, exploradores, o vosso, Vós, engenheiros, vós, arquitetos, maquinistas, o vosso, Vós, não somente para negócios e para o transporte, Mas, em nome de Deus e em teu nome apenas, ó alma.

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Passagem para a Índia! Observa, alma, por ti dois quadros vivos, Vejo em um o canal de Suez iniciado, aberto, Vejo a procissão de navios a vapor, o Imperatriz Eugênia conduzindo a caravana, Registro do convés a estranha paisagem, o céu puro, a areia lisa à distância, Passo ligeiramente por grupos pitorescos, os operários reunidos, As gigantescas máquinas de drenagem. Em um outra vez, diferente (contudo tua, toda tua, ó alma, a mesma), Avisto meu próprio continente, a estrada de ferro do Pacífico ultrapassando todas as barreiras, Vejo os vagões contínuos dos trens ziguezagueando ao longo do Platte, carregando o frete e os passageiros, Ouço o estrondo e o ímpeto das locomotivas e o agudo apito a vapor, Ouço os ecos que reverberam através do maior cenário do mundo, Atravesso os planos de Laramie, observo as rochas em suas formas grotescas, os topos, Vejo a espora abundante e a cebola selvagem, os áridos desertos estéreis e sem cor, Vejo em relances, ao longe, ou elevando-se imediatamente acima de mim, as grandes montanhas, vejo o rio Ziguezague e as montanhas Wahsatch,  med.00400.403.jpg Vejo a montanha Monumento e a Ninho de Águia, ultrapasso o Promontório, subo o Nevadas. Esquadrinho a nobre montanha Elk e ziguezagueio em torno de sua base, Vejo os limites do Humbolt, avanço com dificuldade pelo vale e cruzo o rio, Vejo as águas claras do lago Tahoe, vejo florestas de pinhos majestosos, Ou cruzando o grande deserto, os planos alcalinos, contemplo encantadoras miragens de águas e prados, Deixando marcas por toda parte, em linhas delgadas e duplicadas, Construindo uma ponte sobre três ou quatro mil milhas de viagem por terra, Ligando o mar do Leste ao mar do Oeste, O caminho entre a Europa e a Ásia. (Ah, Genovês, teu sonho! teu sonho! Séculos depois que tua arte foi posta em teu túmulo, O litoral que descobriste testemunha teu sonho.)

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Passagem para a Índia! Labutas de muitos capitães, histórias de muitos marinheiros mortos, Sobre a minha melancolia roubando e espalhando eles vêm, Como nuvens e nuvenzinhas no céu inatingível. Ao longo de toda a História, descendo as ladeiras, Como um riacho que corre, submergindo agora, e agora outra vez emergindo, Um pensamento incessante, um trem variado — contempla, alma, para ti, para ver-te, eles se erguem, Os planos, as viagens de novo, as expedições; Novamente Vasco da Gama navega adiante, Outra vez o conhecimento ganho, a bússola do marinheiro, Terras descobertas e nações surgidas, tu, América, nascida, Por uma grandiosa razão, cheia da longa provação humana, Tu, redondeza do mundo, finalmente concretizada.

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Ó vasta redondeza, navegando no espaço,  med.00400.404.jpg Inteiramente coberta com poder visível e beleza, Alternando a luz e o dia com a produtiva escuridão espiritual, A indizível alta procissão de sol e lua e as incontáveis estrelas acima, Embaixo, a multiplicidade de grama e água, animais, montanhas, árvores, Com inescrutável propósito, alguma oculta intenção profética, Agora parece que meu pensamento começa a transpor-te. Descendo dos jardins da Ásia, radiantes, Adão e Eva aparecem, depois segue sua prole numerosa, Vagueando, com ardentes desejos, curiosos, explorando sem cessar, Com questionamentos, confusos, sem forma, febris, com corações nunca felizes, Com aquele triste e contínuo refrão, Para onde alma insatisfeita? e Até quando, ó vida escarninha? Ah, quem há de consolar essas crianças febris? Quem justifica essas explorações incessantes? Quem fala o segredo da terra impassível? Quem a ela nos prende? O que é essa natureza separada, tão artificial? O que é esta terra para as nossas afeições? (terra sem amor, sem uma palpitação que responda à nossa, Fria terra, lugar de túmulos.) Contudo, alma, estejas certa de que a primeira intenção permanece e há de ser conduzida adiante, Talvez mesmo agora o tempo tenha chegado. Depois que os mares todos tiverem sido cruzados (como parecem já cruzados), Depois que os grandes capitães e engenheiros tiverem realizado seu trabalho, Depois que os nobres inventores, após os cientistas, o químico, o geólogo, o etnólogo, Finalmente há de vir o poeta digno desse nome, O verdadeiro filho de Deus há de vir entoando suas canções. Então, não somente os teus feitos, ó viajantes, ó cientistas e inventores, hão de ser justificados, Todos esses corações de crianças agitadas hão de ser confortados,  med.00400.405.jpg Toda afeição há de ser inteiramente correspondida, o segredo será contado, Tudo o que está separado e afastado há de ser resgatado e enganchado e reunido, A terra inteira, esta fria, impassível, muda terra, há de ser inteiramente justificada, A trindade divina há de ser gloriosamente realizada e consolidada pelo verdadeiro filho de Deus, o poeta, (Ele de fato há de ultrapassar os estreitos e conquistar as montanhas, Ele há de dobrar o Cabo da Boa Esperança para algum propósito) A Natureza e o Homem não estarão mais apartados e difusos, O verdadeiro filho de Deus há de fundi-los absolutamente.

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Ano em cuja porta escancarada eu canto! Ano do propósito alcançado! Ano do casamento dos continentes, climas e oceanos! (Não o mero doge de Veneza agora se ligando ao Adriático,) Vejo a ti, ó ano, o vasto globo terráqueo entregue, entregue por inteiro, A Europa para a Ásia, África juntando-se, e eles ao Novo Mundo, As terras, as geografias, dançando perante ti, segurando uma guirlanda festiva, Como noivas e noivos de mãos dadas. Passagem para a Índia! Ares refrescantes do Cáucaso distante, berço confortador do homem, O rio Eufrates fluindo, o passado novamente aceso. Olha, alma, o retrospecto trazido adiante, A mais velha, mais populosa, mais rica das paragens da terra, As correntes do Indo e do Ganges e seus muitos afluentes, (Eu andando hoje pelo litoral da América vejo, retomando tudo, A história de Alexandre em suas marchas guerreiras, e sua morte súbita, De um lado a China e do outro a Pérsia e a Arábia, Ao sul, os grandes mares e a baía de Bengala, O fluxo das literaturas, os tremendos épicos, as religiões, as castas, O velho Brahma oculto em um tempo imemorável, o gentil e jovem Buda,  med.00400.406.jpg Os impérios centrais e do sul e todas as suas posses e possuidores, As guerras de Tamerlão, o reino de Aurungzebe, Os comerciantes, governantes, exploradores, muçulmanos, venezianos, bizantinos, os árabes, portugueses, Os viajantes pioneiros até hoje famosos, Marco Pólo e Batouta, o mouro, Dúvidas para serem deslindadas, o mapa incógnito, os espaços para serem preenchidos, O pé do homem inquieto, as mãos nunca em descanso, Tu, ó alma, que não conseguirá ficar sem atender a um desafio. Os navegadores medievais erguem-se diante de mim, O mundo de 1492 despertando para os seus empreendimentos, Algo brotando agora na humanidade como a seiva da terra na primavera, O crepúsculo, o esplendor da cavalaria que declina. E quem és tu, sombra triste? Gigantesca, visionária, tu mesma uma visionária, Com membros majestosos e piedosos olhos resplandecentes, Espalhando por toda parte, em cada olhar teu, um mundo dourado, Matizando-o com cores deslumbrantes. Como o protagonista, Anda para as luzes do palco em alguma cena grandiosa, Dominando todos os demais, vejo o próprio Almirante, (Tipo histórico de coragem, ação, fé), Observa-o navegando de Palos, liderando sua frota, Observa a sua viagem, seu retorno, sua grande fama, Seus azares, caluniadores, contempla-o prisioneiro, algemado, Contempla seu abatimento, pobreza, morte. (Curioso, ergo-me no tempo, anotando os esforços dos heróis, É longo o adiamento? Amargo o ultraje, a pobreza, a morte? Jaz a semente no solo, esquecida ao longo de séculos? Olha, para o tempo apropriado de Deus, Insurge durante a noite, germina, brota, E enche a terra com utilidade e beleza).

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Passagem, de fato, ó alma, para o pensamento original,  med.00400.407.jpg Não apenas as terras e os mares, teu próprio claro frescor, A jovem maturidade de geração e florescimento, Para os domínios de livros sagrados que brotam, Ó alma, não reprimida, eu contigo e tu comigo, Tua circunavegação do mundo tem início, De homem, a viagem de retorno de sua mente, Para o paraíso inicial da razão, De volta, de volta para o nascimento da sabedoria, para inocentes intuições, Outra vez uma bela criação.

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Ó não podemos mais esperar, Nós também tomamos navios, ó alma, Joviais, nós também nos lançamos nos mares abertos, Sem medo dos litorais desconhecidos, em ondas de êxtase, para navegar, Em meio aos ventos flutuantes (tu trazendo-me para ti, eu trazendo-te para mim, ó alma), Cantando livremente, cantando nossa canção de Deus, Cantando nosso canto de prazerosa exploração. Com riso e muitos beijos, (Deixa que outros desaprovem, deixa que outros chorem por causa de pecado, remorso, humilhação) Ó alma, tu me satisfazes e eu a ti. Ah! mais que qualquer sacerdote, ó alma, nós também cremos em Deus, Mas com o mistério de Deus não ousamos brincar. Ó alma, tu me satisfazes e eu a ti, Navegando nestes mares ou nas montanhas, ou despertando durante a noite, Pensamentos, pensamentos silenciosos, de Tempo e Espaço e Morte,como águas fluentes, Sustenta-me, realmente, através de regiões infinitas, Cujos ares eu respiro, cujas ondulações eu ouço, lava-me todo, Banha-me, ó Deus, em ti, ascendendo para ti, Eu e minha alma para subir nas tuas alturas.  med.00400.408.jpg Ó tu, transcendente, Sem nome, a fibra e o sopro, Luz das luzes, derramando universos, tu, o centro de todos eles, Tu, poderoso centro da verdade, o bom, o amoroso, Tu, fonte moral e espiritual — manancial de afeto — tu, reservatório, (Ó minha alma reflexiva — ó sede insatisfeita — não esperas onde estás? Não esperas por acaso por nós, em alguma parte por aí, o Companheiro perfeito? Tu, pulso — tu, motivo das estrelas, dos sóis, dos sistemas, Que, circulando, move-se em ordem, seguro, harmonioso, Através da vastidão sem forma do espaço, Como deveria eu pensar, como emitir um único sopro, como falar, se estou fora de mim, Não poderia lançar, para aqueles, universos superiores? Ligeiramente, murcho no pensamento de Deus, Na Natureza e em suas maravilhas, Tempo e Espaço e Morte, Mas eu, voltando-me, clamo por ti, ó alma, tu que na verdade és o meu Eu, E, vê, gentilmente dominas os orbes, Dominas o Tempo, sorrindo satisfeita na Morte, E enches e te avultas na plena vastidão do Espaço. Maior que estrelas ou sóis, Saltando, ó alma, adiante em tua jornada; Que amor como o teu e o nosso poderia amplificar-se ainda mais? Que aspirações, que desejos podem superar o teu e o nosso, ó alma? Que sonhos de ideal? Que planos de pureza, perfeição, força? Que vibrante vontade de tudo renunciar pelo bem dos outros? De tudo sofrer pelo bem dos outros? Calculando de antemão, ó alma, a chegada de teu momento, Todos os mares cruzados, todos os cabos dobrados, a viagem feita, Cercado, lutaste e venceste, arrostaste Deus, rendeste-te, a meta foi alcançada, Pleno de amizade, de completo amor, tendo encontrado o irmão mais velho, O mais novo derrete-se de carinho em seus braços.
 med.00400.409.jpg

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Passagem para mais do que a Índia! Estão as tuas asas emplumadas de fato para tais vôos? Ó alma, viajaste de fato viagens como essas? Folgaste em águas como essas? Auscultaste humildemente o sânscrito e os vedas? Depois fostes dispensada de tua reverência? Passagem para vós, para vossas praias, vós, ameaçadores enigmas! Passagem para vós, para ganhar o domínio sobre vós mesmos, suprimindo vossos problemas! Vós, espalhados com os destroços de esqueletos que enquanto viveram nunca vos alcançaram. Passagem para mais do que a Índia! Ó segredo da terra e do céu! De vós, ó águas do oceano! Ó tortuosos riachos e rios! De vós, ó florestas e campos! De vós, ó fortes montanhas de minha terra! De vós, ó pradarias! De vós, ó rochas cinzas! Ó vermelho da manhã! Ó nuvens! Ó chuva e neves! Ó dia e noite, passagem para vós! Ó sol e lua e todas vós, estrelas! Sírius e Júpiter! Passagem para vós! Passagem, passagem imediata! O sangue queima em minhas veias! Segue, ó alma! Iça a âncora num instante! Corta as amarras — reboca-te para fora — agita todas as velas! Não estivemos aqui estanques, como árvores, por tempo suficiente? Não rastejamos por aqui o suficiente, comendo e bebendo como meros brutos? Não nos obscurecemos e ofuscamos com livros o suficiente? Navega — dirige-te somente para águas profundas, Imprudente, ó alma, explorando, eu contigo e tu comigo, Pois estamos compromissados a ir aos lugares em que marinheiro algum ousou chegar, E arriscaremos os navios, a nós mesmos e tudo.  med.00400.410.jpg Ó minha alma valente! Ó mais longe, para mais longe navega! Ó alegria ousada, mas segura! Não são esses todos os mares de Deus? Ó mais longe, mais longe, para mais longe navega!

Prece de Colombo

Velho homem batido e naufragado, Atirado nesta praia selvagem, longe, longe de casa, Enclausurado pelo mar e por escuros rostos rebelados, ao longo de doze lúgubres meses, Dolorido, cansado de muitas labutas, doente e perto da morte, Sigo meu caminho junto à borda da ilha, Desabafando um coração pesado. Estou cheio demais de aflição! Por acaso posso não viver mais um dia sequer; Não posso descansar, ó Deus, não posso comer, beber ou dormir, Até que erga minha voz, minha prece, uma vez mais para Ti, Até que respire e me banhe uma vez mais em Ti, comungue Contigo, Apresente-me uma vez mais para Ti. Tu conheces inteiramente os meus anos, minha vida, Vida longa e tumultuada de trabalho ativo, não de mera adoração; Conheces as preces e as vigílias de minha juventude, Tu conheces minhas meditações solenes e visionárias sobre a humanidade, Tu sabes como, antes de começar, devotei-me totalmente para vir Ti, Tu sabes que, com a idade, ratifiquei todos aqueles votos e os mantive estritamente, Tu sabes que não perdi uma só vez a fé e o entusiasmo em Ti, Acorrentado, aprisionado, em desgraça, sem me lamentar, Tudo aceitando de Ti, quando devidamente vem de Ti. Todos os meus empreendimentos estão repletos de Ti, Minhas especulações, meus planos, começaram e foram levados adiante em pensamentos de Ti,  med.00400.411.jpg Navegando nas profundezas ou viajando em terra por Ti; Intenções, significados, aspirações minhas, deixando os resultados para Ti. Ó estou certo de que realmente vieram de Ti, O anseio, o ardor, a vontade inquebrantável, O potente, o que senti, o comando interior, mais forte que palavras, Uma mensagem dos Céus sussurrando em meus ouvidos, mesmo enquanto durmo, Fazendo-me seguir adiante. Por mim, e por isso a obra até aqui realizada, Por mim, a terra dos antigos saciada e terras contidas não saciadas, libertas, Por mim os hemisférios transpostos e ligados, o desconhecido para o conhecido. O fim eu não conheço, tudo está em Ti, Pequeno ou grande não conheço — talvez quais amplos campos, quais terras, Talvez esse bruto e ilimitado rastejar humano que conheço, Transplantado ali pode ele erguer-se para saturar, para gerar conhecimento digno de Ti, Talvez as espadas que conheço possam ali, de fato, ser transformadas em ferramentas para a ceifa, Talvez a cruz inerme que conheço, a cruz morta da Europa, possa brotar e florescer ali. Mais um esforço, meu altar é este árido areal; Que Tu, ó Deus, minha vida iluminaste, Com um raio de luz, constante, inefável, outorgado por Ti, Luz rara, inenarrável, iluminando a própria luz, Para além de todos os sinais, descrições, linguagens; Por isso, ó Deus, seja esta a minha última palavra, de joelhos, aqui, Velho, pobre e paralisado, eu Te agradeço. Meu término está próximo, As nuvens já se fecham sobre mim, A viagem frustrada, o curso disputado, perdido, Entrego-Te meus navios.  med.00400.412.jpg Minhas mãos, meus membros cada vez mais flácidos, Sinto meu cérebro atormentado, desnorteado, Os velhos costados dos navios se vão, eu permaneço, Agarrar-me-ei rapidamente em Ti, ó Deus, apesar do açoite das ondas sobre mim, Tu, Tu, ao menos, eu conheço. O que falo é o pensamento do profeta ou estarei delirando? O que sei sobre a vida? O que sei de mim mesmo? Não conheço nem mesmo minhas obras do passado e do presente, Obscuras e sempre instáveis adivinhações acerca delas se espalham diante de mim, De mundos mais novos e melhores, seus partos poderosos, Escarnecendo de mim, fazendo-me perplexo. E essas coisas vejo repentinamente, o que elas significam? Como se algum milagre, alguma mão divina desvendasse meus olhos, Vastas formas sombrias sorriem através do ar e do céu, E nas ondas distantes navegam navios incontáveis, E hinos em novas línguas, saudando-me, ouço.

Os que dormem

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Vagueio a noite inteira em minha visão, Andando com pisadas leves, ligeiramente e sem ruídos, andando e parando, Inclinando-me com olhos abertos sobre os olhos cerrados dos que dormem, Vagueando e confuso, perdido em mim mesmo, com infortúnios diversos, contraditório, Pausando, contemplando, inclinando-me e parando. Quão solenes parecem eles ali, espichados e quietos, Quão silenciosos respiram, os pequenos infantes em seus berços. As deploráveis fisionomias do tédio, as brancas fisionomias dos corpos, as faces lívidas dos bêbados, os rostos doentios e macilentos dos onanistas,  med.00400.413.jpg Os corpos esquartejados nos campos de batalha, os insanos em suas celas de segurança, os sagrados idiotas, os recém-nascidos emergindo dos portais e os moribundos emergindo dos portais, A noite que os penetra e envolve. O casal dorme calmamente em sua cama, o marido tem a palma da mão no quadril da esposa, e ela tem a palma da mão no quadril do marido, As irmãs dormem amorosamente, lado a lado em sua cama, Os meninos dormem amorosamente, lado a lado em sua cama, E a mãe dorme com a sua criancinha cuidadosamente embrulhada. O cego dorme, e o surdo-mudo dorme, O prisioneiro dorme bem na prisão, o filho fugitivo dorme, O assassino que será executado no dia seguinte, como ele consegue dormir? E a pessoa por ele assassinada, como ela dorme? A fêmea que ama sem ser correspondida dorme, E o macho que ama sem ser correspondido dorme, A mente do ganhador de dinheiro que tramou o dia inteiro dorme, E as disposições enfurecidas e desleais, todas, todas dormem. Ergo-me no escuro com olhos abatidos, por amor aos piores sofredores e os mais insones, Passo minha mão ternamente, para lá e para cá, bem próximo a eles, E os insones caem em suas camas e dormem adequadamente. Agora perfuro a escuridão, novos seres aparecem, A terra foge de mim dentro da noite, Vi que ela era linda e vi que aquilo que não é a terra é lindo também. Vou de leito em leito, durmo próximo aos outros que dormem, cada um de uma vez, Sonho em meu sonho todos os sonhos dos outros sonhadores, E me torno o sonhador dos outros. Sou uma dança — toca aí em cima — o par me faz girar rapidamente!  med.00400.414.jpg Sou aquele que sempre sorri — é lua nova e crepúsculo. Vejo as gratificações sendo escondidas, vejo ágeis fantasmas para qualquer lado que me torno, Esconderijo e esconderijo novamente nas profundezas do solo e do mar e no lugar em que não é solo nem é mar. Cumprem bem os seus deveres aqueles viajantes divinos, Somente de mim nada podem esconder e nada esconderiam se pudessem, Concluo que sou o seu patrão e eles me fazem um afago também, E cercam-me e lideram-me e correm à minha frente quando ando, Para erguer seus ardilosos disfarces, para me representar com braços estirados, e retomar o caminho; Para sempre nos movemos, um grupo de alegres patifes! Com música hilariante e flâmulas amplamente agitadas de prazer! Sou o ator, a atriz, o eleitor, o político, O emigrante e o exilado, o criminoso que estava na cela, Aquele que foi famoso e aquele que há de ser famoso mais tarde, O tartamudo, a pessoa bem formada, a pessoa desgastada ou débil. Eu sou aquela que se adornou e arrumou o cabelo esperançosamente, Meu indolente amante veio e está escuro. Intensifica-te e recebe-me, escuridão, Recebe-me, e meu amante também, ele não me deixará partir sozinho, Rolo sobre ti como sobre uma cama, entrego-me à poeira. Aquele a quem chamo responde e toma o lugar de meu amante, Ele se ergue comigo, silencioso, da cama. Escuridão, tu és mais gentil que o meu amor, sua carne era suada e arquejante, Sinto a umidade quente que ele deixou comigo. Minhas mãos estão estendidas, passo-as em todas as direções, Eu iria aperfeiçoar o litoral sombrio para o qual estás viajando. Sê cuidadosa, escuridão! Aquilo que ele era já me tocou? Pensei que meu amante havia partido, pois, além disso, a escuridão e ele são um,  med.00400.415.jpg Ouço o bater do coração, sigo, desvaneço.

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Desço pelo meu caminho rumo ao oeste, meus nervos são flácidos, Perfume e juventude passam por mim e eu sou seu despertar. É a minha face que está amarela e enrugada, em vez da face da velha mulher, Sento-me na cadeira baixa de fundo de palha e cuidadosamente coso as meias de meu neto. Sou eu, também, a viúva insone que olha para fora à meia-noite, no inverno, Vejo as cintilações do brilho das estrelas sobre a terra pálida e gelada. Uma mortalha enxergo e sou a mortalha, embrulho um corpo e deito-me no esquife, Está escuro aqui embaixo da terra, não é funesto nem doloroso estar aqui, é vazio aqui, concluo. (Parece-me que tudo na luz e no ar deve estar feliz, Quem quer que não esteja em seu esquife e em seu túmulo escuro saiba que tem o suficiente).

3

Vejo um maravilhoso e gigantesco nadador nadando desnudo através dos remoinhos do mar, Seus cabelos castanhos e lisos caem rentes à cabeça, ele dá suas corajosas braçadas, impulsiona o seu corpo com as pernas, Vejo o seu corpo branco, vejo seus olhos destemidos, Odeio as correntes de ligeiros remoinhos que o arremessariam contra as pedras. O que estais fazendo, vós, desordeiras ondas vermelhas que escorrem? Matareis o gigante corajoso? Matá-lo-eis no auge de sua meia-idade? Constante e por longo tempo ele luta, Está confuso, batido, ferido, suporta enquanto a sua força suporta, Os remoinhos agitados estão manchados de sangue, carregam-no, fazem-no rolar, balançar, virar,  med.00400.416.jpg Seu lindo corpo é suportado nos circulantes remoinhos, é continuamente ferido nas rochas, Velozmente e para fora do alcance da visão, o seu corpo valente é conduzido.

4

Viro-me, mas não me desembaraço, Confuso, uma leitura do passado, outra, mas com a escuridão ainda. A praia é cortada como navalha por um vento gelado, o som das armas destroçadas, A tempestade amaina, a lua vem tropeçando através dos destroços. Olho na direção para a qual o navio se dirige desamparadamente, ouço a explosão no momento em que ela se dá, ouço os lamentos de tristeza que se esvaecem cada vez mais. Não posso ajudar com meus dedos torcidos, Posso apenas correr para a arrebentação das ondas, deixando-as ensopar-me e regelar-me. Unido à multidão, faço as buscas, nenhum único oficial é trazido com vida pelas águas. Pela manhã, ajudo a carregar os mortos e colocá-los em fileiras num celeiro.

5

Agora entre os velhos dias de guerra, a derrota no Brooklyn, Washington está de pé, entre as fileiras, ele está nas montanhas entrincheiradas em meio à multidão de oficiais, A expressão de seu rosto é fria e desalentada, ele não pode evitar as lágrimas de choro, A todo instante, ergue o binóculo até os seus olhos, sua face empalidece, Ele assiste o massacre dos valentes sulistas que lhe foram confiados por seus pais. O mesmo afinal e afinal quando a paz é declarada, Ele está de pé no salão da velha taverna, todos os soldados bem amados passam à sua frente, Os oficiais emudecidos e vagarosos aproximam-se dele, um de cada vez,  med.00400.417.jpg O chefe coloca os braços em torno de seus pescoços e os beija na face, Ele beija levemente as faces molhadas, uma após a outra, ele aperta as mãos e se despede do exército.

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Agora, o que me disse um dia a minha mãe, quando nos sentamos juntos para o jantar, Do tempo em que ela era já uma moça crescida e morava na casa de seus pais, numa antiga propriedade rural. Uma velha índia veio uma vez na hora do café da manhã para a velha propriedade rural, Em suas costas, trazia um feixe de caules de junco para fazer cadeiras, Seus cabelos, retos, brilhantes, ásperos, negros, profusos, escondiam parcialmente o seu rosto, Seus passos eram livres e elásticos e sua voz ressoou delicadamente quando ela falou. Minha mãe olhou encantada e assombrada para a estranha, Ela olhou para o frescor de seu rosto empinado e de seus membros grossos e flexíveis, Quanto mais olhava para a índia, mais a amava, Nunca antes tinha visto uma tal beleza e pureza, A índia sentou-se num banco que estava perto do batente da lareira e cozinhou para si, Não tinha presentes para dar à minha mãe, mas deixou recordações e carinho. A velha índia ficou ali a manhã inteira e só partiu lá pelo meio da tarde, Ó minha mãe relutou para que não partisse, Pensou nela a semana toda, esperou que ela voltasse por muitos meses, Lembrou-se dela por muitos invernos e muitos verões, Mas a velha índia jamais retornou, nem se ouviu falar dela outra vez.

7

Um espetáculo da maciez do verão — um contato com algo nunca visto — uma aventura amorosa da luz e do ar, Estou enciumado e subjugado com benevolência, E divertir-me-ei com a luz e com o ar.  med.00400.418.jpg Ó amor e verão, estais nos sonhos e em mim, Outono e inverno estão nos sonhos, o fazendeiro vai com sua parcimônia, Os rebanhos e as plantações aumentam, os celeiros estão bem cheios. Os elementos se fundem na noite, navios mudam de rumo nos sonhos, O marinheiro navega, o exilado volta para casa, O fugitivo retorna sem um arranhão, o imigrante retorna além dos meses e dos anos, O pobre irlandês mora numa casa simples desde a infância, com vizinhos e rostos bem conhecidos, Eles o acolhem calorosamente, ele está descalço novamente, esquece-se de que tem sorte, O holandês viaja para casa e o escocês e o gaulês viajam para casa, e os nativos do Mediterrâneo viajam para casa. Em todos os portos da Inglaterra, França, Espanha, entram navios abarrotados, O suíço anda na direção de suas montanhas, o prussiano segue o seu caminho, o húngaro o seu caminho e o polonês o dele, O sueco retorna e o dinamarquês e o norueguês retornam. Os que voltam para a casa e os que saem de casa, O lindo nadador perdido, o entediado, o onanista, a fêmea que ama sem ser correspondida, o ganhador de dinheiro, O ator e a atriz, aqueles que já se apresentaram e aqueles que esperam pelo início, O garoto carinhoso, o marido e a esposa, o eleitor, o candidato que foi eleito e o candidato que perdeu a eleição, Os grandes que já são conhecidos, os grandes de qualquer tempo futuro, O tartamudo, o doente, o perfeito, o caseiro, O criminoso na cela, o juiz que se sentou e proferiu a sentença, os advogados fluentes, o júri, a audiência, O trocista e o lamentoso, o dançarino, a viúva da meia-noite, a velha índia vermelha, O definhado, o que tem erisipela, o idiota, o que está enganado, O antípoda e todos os que estão entre esses e eles na escuridão, Juro que são medianos agora — um não é melhor do que outro, A noite amou-os e o sono renovou-os. Juro que todos eles são lindos,  med.00400.419.jpg Todos os que dormem são lindos, tudo o que está dentro da luz fosca é lindo, O mais selvagem e mais sanguinário terminou e tudo está em paz. A paz é sempre linda, O mito do céu indica a paz e a noite. O mito do céu indica a alma, A alma é sempre bela, ela aparece mais ou aparece menos, vem ou fica para trás, Vem de seu jardim coberto de folhagens, olha prazenteiramente para si e inclui o mundo, Perfeito e limpo sai previamente como jato dos genitais, e perfeito e limpo adere ao útero, A cabeça bem crescida, bem proporcionada e aprumada, e os intestinos e as juntas bem proporcionados e aprumados. A alma é sempre linda, O universo está devidamente em ordem, tudo está no lugar certo, O que chegou está em seu lugar e o que aguarda estará em seu lugar, O crânio cingido espera, o sangue aguado ou apodrecido espera, O filho do glutão ou do que tem doença venérea espera por longo tempo, e o filho do bêbado espera por longo tempo também, Aqueles que dormem, que viveram e morreram, esperam, os muito adiantados avançarão em suas vezes, e os muito atrasados virão em suas vezes, O diverso não deve ser menos diverso, mas devem fluir e unir-se — eles se unem agora.

8

Os que dormem são muito belos quando se deitam sem roupa, Circulam de mãos dadas sobre a Terra inteira, do leste ao oeste, quando deitam-se sem roupa, Os asiáticos e os africanos estão de mãos dadas, Cultos e incultos estão de mãos dadas, e os machos e as fêmeas estão de mãos dadas, O braço despido da moça atravessa o peito despido de seu amante, eles unem seus corpos sem lascívia, o lábio dele pressiona o pescoço dela, O pai abraça seu filho crescido ou não crescido em seus braços, com  med.00400.420.jpg amor desmedido, e o filho abraça o pai com amor desmedido, Os cabelos brancos da mãe brilham no punho branco da filha, A respiração do menino acompanha a respiração do homem, o amigo é estreitado pelo amigo, O acadêmico beija o professor e o professor beija o acadêmico, o incorreto é feito correto, O chamado do escravo se unifica ao chamado de seu mestre, e o mestre saúda o escravo, O condenado dá um passo fora da prisão, o insano se torna são, o sofrimento das pessoas doentes é aliviado, O suor e as febres cessam, a garganta que não estava saudável está saudável, os pulmões do definhado se recuperam, a cabeça do pobre estressado está livre, As juntas do reumático se movimentam suavemente como costumavam ser, e mais suaves do que nunca, Asfixiantes passagens abertas, o paralisado se torna maleável, Os inchados e os convulsionados e congestionados despertam em boas condições, Eles passam pelo revigoramento e pela química da noite e acordam. Eu também vou além da noite, Permaneço um momento longe de ti, ó noite, mas retorno a ti novamente e te amo. Por que deveria temer confiar-me a ti? Não tenho medo, tenho sido bem conduzido por ti, Amo o dia rico que corre, mas não abandono aquela com que me deito por tanto tempo, Não sei como vim de ti e não sei para onde irei contigo, mas sei que vim bem e hei de ir bem. Só estarei um tempo com a noite e levantar-me-ei bem cedo, Viverei o dia devidamente, ó minha mãe, e devidamente retornarei para ti.

Transposições

Deixai que os reformadores desçam dos pedestais em que se encontram, para sempre bradando — deixai que um parvo ou um insano apareça em cada pedestal;  med.00400.421.jpg Deixai que juízes e criminosos sejam transpostos — deixai que os guardas das prisões sejam presos — deixai que aqueles que eram prisioneiros recebam as chaves; Deixai que aqueles que desconfiam do nascimento e da morte liderem os demais.

Pensar sobre o tempo

1

Pensar sobre o tempo — sobre todo aquele retrospecto, Pensar sobre hoje e sobre as eras contínuas do porvir. Imaginaste que não terias continuidade? Sentiste pavor dos besouros da terra? Temeste que o futuro fosse nada para ti? É nada o hoje? É nada o passado sem início? Se o futuro é nada, tudo isso é, sem dúvida, nada. Pensar que o sol nasceu no leste — que homens e mulheres eram flexíveis, reais, vivos — que tudo estava vivo, Pensar que tu e eu não enxergamos, sentimos, pensamos, nem suportamos a nossa parte, Pensar que estamos aqui agora e suportamos a nossa parte.

2

Nenhum dia se passa, nenhum minuto ou segundo, sem que haja um parto, Nenhum dia se passa, nenhum minuto ou segundo, sem que haja um corpo. As noites enfadonhas passam e os dias enfadonhos também, Passam as dores causadas pelo fato de se ficar muito tempo na cama, O médico, depois de adiar por muito tempo, dá por resposta um olhar silencioso e terrível, As crianças vêm apressadas e chorosas e os irmãos e as irmãs são enviados, Remédios estão intocados na gaveta (o cheiro de cânfora há muito impregna os quartos),  med.00400.422.jpg A mão fiel dos vivos não abandona a mão do moribundo, Os lábios contraídos tocam de leve a testa do moribundo, A respiração cessa, cessa o pulsar do coração, O corpo se estira sobre a cama e os vivos observam-no, Ele é palpável tal qual os vivos são palpáveis. Os vivos observam o corpo com sua visão, Mas um tipo diferente de vivo espreita sem visão e, curiosamente,observa o corpo.

3

Pensar o pensamento da morte misturado ao pensamento da matéria, Pensar em todas essas maravilhas da cidade e do país e em outros fortemente interessados nelas. Pensar sobre a avidez com a qual estamos construindo nossas casas, Pensar que outros devem ser tão ávidos quanto nós, enquanto nós poderíamos ser indiferentes. (Vejo alguém construindo a casa que o serve durante alguns an ou no máximo setenta a oitenta anos, Vejo alguém que constrói a casa que o serve por um tempo ainda mais longo.) Linhas lentas e negras se arrastam sobre a terra inteira — elas nunca cessam — são as linhas de sepultamento, Ele que era Presidente foi enterrado, e ele, que é Presidente agora com certeza será enterrado.

4

Uma reminiscência de um fato vulgar, Um exemplo freqüente da vida e da morte dos trabalhadores, Cada um seguindo a sua classe. A fria pancada das ondas no cais das balsas, elegância e gelo no rio, lama semicongelada nas ruas, Um céu cinza desencorajado, o dia de pouca luminosidade em dezembro, Um carro funéreo e diligências, o funeral de um velho condutor de  med.00400.423.jpg diligências da Broadway, o cortejo quase todo formado por condutores. O trote para o cemitério é constante, os sinos da morte tocam oportunamente, O portal é ultrapassado, o grupo pára ao lado da cova recém-aberta, os vivos desmontam, o carro funéreo é aberto, O caixão é retirado, descido e arrumado na cova, a chibata é colocada sobre o caixão, a terra que está nas pás é prontamente lançada sobre ele, O montículo acima é aplainado com as enxadas — silêncio, Um minuto — ninguém se move ou fala — está feito, Ele é decentemente posto de lado — haverá algo mais? Foi um bom camarada, desabrido, impulsivo, sua aparência não era ruim, Disposto a ajudar um amigo com sua vida e com sua morte, gostava de mulheres, jogava, comia e bebia avidamente, Sabia o que era ser endinheirado, no fim da vida ficou cada vez mais desalentado, doente, dependeu de uma contribuição financeira para viver, Morreu aos quarenta e um anos — e esse foi o seu funeral. Dedo polegar estendido, dedo levantado, avental, capa, luvas, tirante, roupas impermeáveis, açoite escolhido cuidadosamente, Patrão, vigia, partida, cavalariço, alguém passeia contigo, tu passeias com alguém, andadura, homem à frente e homem atrás, Um dia bom de trabalho, um dia ruim de trabalho, animais de criação, animais de pouca qualidade, o primeiro a sair, o último a sair, o retorno à noite, Pensar que tudo isso significa tanto para os outros condutores, e ele, ali, não mais se interessa por isso tudo.

5

Os mercados, os governos, os salários dos empregados, pensar na importância que eles dão para as nossas noites e nossos dias, Pensar que outros trabalhadores dão a eles a mesma grande importância e, contudo, nós damos pouca ou nenhuma importância. O vulgar e o refinado, o que chamas de pecado e o que chamas de bondade, pensar na enorme diferença,  med.00400.424.jpg Pensar que a diferença continuará para outros e, contudo, estamos além da diferença. Pensar em quanto prazer existe, Estás satisfeito na cidade? Quando te envolves nos negócios? Ou planejando uma candidatura e uma eleição? Ou com a tua esposa e tua família? Ou com tua mãe e teus irmãos? Ou com o trabalho doméstico das mulheres? Ou com os lindos cuidados maternais? Isso também flui adiante para os outros, tu e eu fluímos para adiante, Mas, no tempo certo, tu e eu teremos interesse menor em tudo isso. Tua fazenda, lucros, plantações — pensar sobre como tua vida foi passada a limpo, Pensar que ainda haverá fazendas, lucros, plantações e, contudo, que utilidade terão para ti?

6

O que haverá estará bem, porque o que há está bem, Interessar-se está bem, e não se interessar há de estar bem. As alegrias domésticas, o trabalho diário em casa ou no comércio, a construção de casas, não são fantasmas, eles têm peso, forma, lugar, Fazendas, lucros, plantações, mercados, salários, governos, nada disso é fantasma, A diferença entre o pecado e o bem não é uma ilusão, A terra não é um eco, o homem é a sua vida e todas as coisas de sua vida são bem consideradas. Não estás atirado aos ventos, tu colhes com certeza e segurança em torno de ti, Tu mesmo! Tu mesmo! Tu mesmo, para sempre e sempre!

7

Não é para que te anules que nasceste de tua mãe e de teu pai, mas para que tu te identifiques, Não é para que sejas indeciso, mas para que sejas decidido, Algo sem forma e que foi preparado durante muito tempo concluiu-se e formou-se em ti,  med.00400.425.jpg Tu estás, doravante, seguro, não importa o que aconteça. As fibras que foram entrelaçadas estão unidas, a urdidura cruza o tecido, o padrão é sistemático. Todas as preparações foram justificadas, A orquestra tem seus instrumentos suficientemente configurados, o bastão já deu o sinal. O convidado que estava vindo esperou por bastante tempo e está agora alojado, Ele está cheio de beleza e feliz, olhar para ele e estar ao seu lado é suficiente. A lei do passado não pode ser burlada, A lei do presente e do futuro não pode ser burlada, A lei dos vivos não pode ser burlada, ela é eterna, A lei da promoção e da transformação não pode ser burlada, A lei dos heróis e dos benfeitores não pode ser burlada, A lei dos bêbados, informantes, pessoas más, nenhum único til disso pode ser burlado.

8

Linhas lentas e negras avançam incessantemente sobre a terra, Vão sendo conduzidas as do Norte e as do Sul, e aquelas que estão no lado do Atlântico, e aqueles que estão no lado do Pacífico, E as que estão no meio, e todas as que estão no interior do Mississippi, e na terra inteira. Os grandes mestres e o cosmos estão bem em sua jornada, os heróis e os benfeitores estão bem, Os líderes conhecidos e os inventores e os ricos proprietários e os piedosos e os eminentes estão bem, Mas há outros itens nessa prestação de contas, há a prestação de contas estrita de todas e de todos. As hordas intermináveis de ignorantes e maus não são nulas, Os bárbaros da África e da Ásia não são insignificantes, A perpétua sucessão de pessoas superficiais não é nula em sua jornada.  med.00400.426.jpg Dessas e nessas coisas todas, Sonhei que não devemos mudar tanto, e nem as leis que nos regem devem mudar, Sonhei que heróis e benfeitores hão de estar sob os auspícios das leis do presente e do passado, E que os assassinos, bêbados, mentirosos hão de estar sob a lei do presente e do passado, Pois sonhei que a lei sob a qual eles estão agora é suficiente. E sonhei que o propósito e a essência da vida conhecida, a vida transitória, É formar e decidir a identidade para a vida desconhecida, a vida permanente. Se tudo termina apenas em cinzas e estrume, Se os vermes e ratazanas dão cabo de nós, então Alarme! Pois fomos traídos, Então, de fato, a morte está sob suspeição. Suspeitas da morte? Se eu suspeitasse da morte eu deveria morrer agora mesmo, Pensas que eu poderia andar prazenteiramente e bem vestido na direção do aniquilamento? Prazenteiramente e bem vestido ando, Em que rumo caminho não posso definir, mas sei que é bom, O universo inteiro indica que o destino é bom, O passado e o presente indicam que o destino é bom. Quão maravilhosos e perfeitos são os animais! Quão perfeita é a terra e as coisas instantâneas que há sobre ela! O que é chamado de bom é perfeito, e o que é chamado de ruim é igualmente perfeito, Os vegetais e minerais são todos perfeitos, e os fluidos imponderáveis são perfeitos; Vagarosamente e com certeza eles passaram a esse estado, e vagarosamente e com certeza eles ainda passarão.

9

Juro que penso agora que todas as coisas têm uma alma eterna!  med.00400.427.jpg As árvores têm, enraizadas no solo! As ervas do mar têm! Os animais! Juro que penso que não há nada que não seja a imortalidade! Que o esquema primoroso é para ela, e a deriva nebulosa é para ela, e a adesão é para ela! E toda a preparação é para ela — e a identidade é para ela — e a vida e a matéria são juntas para ela!
 med.00400.428.jpg

Sussurros da morte celeste

Aventuras-te agora, ó alma

Aventuras-te agora, ó alma, Anda comigo na direção da região desconhecida, Onde nenhum solo é para os pés, nem há caminhos a seguir? Não há mapas lá, nem guia, Nenhuma voz se ouve, nenhum toque de mão humana é sentido, Nem face com carne viçosa, nem lábios, nem olhos estão na terra. Não a conheço, ó alma, Nem tu a conheces, tudo é um enigma diante de nós, Tudo nos espera sem ser imaginado naquela região, naquela terra inacessível. Até que as amarras sejam soltas, Todas, exceto as amarras eternas, de Tempo e Espaço, Nem a escuridão, a gravitação, o sentido, nem qualquer limite a nos conter. Então, nos arrojaremos e flutuaremos, No Tempo e no Espaço, ó alma, preparados para eles, Iguais, equipados finalmente, (ó alegria! ó fruto de todos!) neles para nos realizar, ó alma.

Sussurros da morte celeste

Sussurros da morte celeste eu ouço, Conversa labial da noite, corais sibilantes,  med.00400.429.jpg Passos gentis que sobem, brisas místicas que adejam suaves e baixas, Ondulações de rios invisíveis, marés de uma corrente fluindo, para sempre fluindo, (Ou será esse o som das lágrimas ao cair? As águas imensuráveis das lágrimas humanas?) Vejo, apenas vejo na direção do céu, grandes massas de nuvens, Com tristeza e devagar elas rolam, silenciosamente inflam e se misturam, E, às vezes, na distância algumas estrelas meio escuras e entristecidas, Aparecem e desaparecem. (Algum parto, certamente, algum nascimento solene de imortalidade; Nas fronteiras, impenetráveis aos olhos, Alguma alma está fazendo a passagem.)

Cantando o quadrado deífico

1

Cantando o quadrado deífico, avançando a partir do Um, emergindo dos lados, Saindo do velho e do novo, saindo do quadrado inteiramente divino, Sólido, de quatro lados (todos os lados necessários), a contar deste lado, Jeová eu sou, Velho Brahma eu, e eu Saturno sou; O tempo não me afeta — eu sou o Tempo, velho, moderno como qualquer um, Impersuadível, inexorável, executando julgamentos honrados, Como a Terra, o Pai, o velho e bronzeado Cronos, com leis, Idade além da calculável e, contudo, sempre novo, sempre rolando com aquelas poderosas leis. Inexorável, não perdôo homem algum — todo aquele que peca morre — eu terei a vida daquele homem; Assim sendo, que ninguém espere misericórdia — as estações do ano, a gravitação, os dias designados têm misericórdia? Também eu não tenho. Mas tal como as estações e a gravitação, e como todos os dias designados que não perdoam, Aplico deste lado julgamentos inexoráveis, sem o mínimo remorso.
 med.00400.430.jpg

2

O mais ameno Consolador, o prometido avança, Com mão gentil estendida, o poderosíssimo Deus eu sou, Predito por profetas e poetas em suas profecias e poemas mais arrebatados, A contar deste lado, vê! O Senhor Cristo olha fixamente! Hermes eu — vê! Minha é a face de Hércules, Todo tristeza, labuta, sofrimento, eu, erguendo-os, absorvo-os em mim, Muitas vezes fui rejeitado, escarnecido, aprisionado e crucificado, e muitas vezes isso ocorrerá novamente, Do mundo inteiro desisti por meus queridos irmãos e irmãs, pelo bem da alma, Trilhando meu caminho através das residências dos homens, ricos e pobres, com o beijo da afeição, Pois eu sou a afeição, eu sou o Deus que traz a animação, com esperança e caridade que a todos abraça, Com palavras indulgentes como as que são ditas às crianças, com palavras frescas e sanas, as minhas apenas, Jovem e forte, sigo sabendo claramente que estou destinado a uma morte terrestre; Mas minha caridade não tem morte — minha sabedoria não morre, nem cedo nem tarde, E o amor doce que leguei, aqui e em qualquer lugar, não morre jamais.

3

Indiferente, insatisfeito, tramando revoltas, Companheiro de criminosos, irmão de escravos, Ladino, desprezado, lacaio, ignorante, Com rosto de pária e sobrancelha gasta, negra, mas nas profundezas de meu coração orgulhoso como qualquer outro, Erguido, agora e sempre, contra aqueles que, ao desprezar-me, pensam poder controlar-me, Moroso, cheio de perfídia, cheio de reminiscências, chocante, com muitas artimanhas, (Embora tenham imaginado que me tornei confuso e disperso e que minhas artimanhas chegaram ao fim, isso nunca ocorrerá) Desafiante, eu, Satã, vivo ainda, ainda pronuncio palavras, aparecendo oportunamente em novas terras (e em terras antigas também),  med.00400.431.jpg Permanente, aqui do meu lado, guerreiro, igual a qualquer um, real como qualquer um, Nem o tempo nem as mudanças hão de me transformar ou transformar minhas palavras.

4

Santa Spirita, sopro, vida, Além da luz, mais iluminado que a luz, Além das chamas do inferno, cheio de alegria, saltando facilmente sobre o inferno, Além do Paraíso, perfumado somente com meu próprio perfume, Incluindo toda a vida na terra, tocando, incluindo Deus, incluindo o Salvador e Satã, Etéreo, imanente a tudo (pois sem mim o que seria tudo? O que seria Deus?), Essência das formas, vida das identidades reais, permanente, positiva (a saber: o invisível), Vida do grande mundo redondo, o sol e as estrelas, e do homem, eu, a alma geral, Aqui termina o quadrado, o sólido, eu o mais sólido, Respiro também por meio destas canções.

Sobre ele, a quem amo dia e noite

Sobre ele, a quem amo dia e noite, ouvi dizer que estava morto, E sonhei que fui ao local em que haviam sepultado aquele a quem amo, mas ele não estava naquele lugar, E sonhei que vagueei procurando entre os sepulcros para encontrá-lo, E descobri que todos os lugares são sepulcros; As casas cheias de vida eram igualmente cheias de morte (esta casa está cheia de morte agora), As ruas, os navios, os lugares de diversão, Chicago, Boston, Filadélfia, Manhattan, estavam tão repletos de mortos quanto de vivos, E mais repletos, ó vastamente mais repletos de mortos do que de vivos; E meu sonho, doravante, contarei para todas as pessoas de todas as eras, E estou agora compromissado com meu sonho, E agora desejo desconsiderar as sepulturas e repartir o que tenho com elas,  med.00400.432.jpg E se os memoriais dos mortos fossem colocados indiferentemente, em toda parte, mesmo na sala em que como ou no quarto em que durmo, eu me sentiria satisfeito, E se o corpo de alguém que amo, ou se meu próprio corpo se transformar oportunamente em pó e for derramado no mar, sentir-me-ei satisfeito, Ou se for distribuído aos ventos, sentir-me-ei satisfeito.

Ainda, ainda, tuas horas de depressão

Ainda, ainda, tuas horas de depressão, conheço-te também, Bolas de chumbo, vós que prendeis e obstruís meus tornozelos, Enterrado numa câmara mortuária — eu ouço a hegemônica voz escarnecedora, A matéria é a conquistadora — matéria, a única triunfante, continua adiante. Gritos desesperados fluem incessantemente em minha direção, O chamado de meu amor mais próximo, erguendo a voz, alarmado, incerto, Navegarei pelo mar rapidamente, vem e me diz, Vem e me diz para onde avanço velozmente, revela o meu destino. Compreendo tua angústia, mas não posso ajudar-te, Me aproximo, ouço, observo, a boca triste, a expressão de teus olhos, tua muda inquirição, Para onde vou desde a cama em que me reclino, vem e me diz; Idade avançada, alarmada, incerta — a voz de uma jovem mulher, apelando para mim, pedindo conforto; Uma voz de um jovem, Não posso escapar?

Como se um fantasma me acariciasse

Como se um fantasma me acariciasse, Senti que não estava sozinho andando aqui na praia, Mas aquele que pensei que estivesse comigo, como agora quando ando na praia, aquele a quem amo, aquele que me acariciou,  med.00400.433.jpg Quando me encostei e olhei através da luz brilhante, ele desapareceu inteiramente, E aparecerem em seu lugar aqueles que me odeiam e que escarnecem de mim.

Garantias

Não preciso de garantias, sou um homem preocupado com sua própria alma; Não duvido daquilo de que estou ciente; de sob os pés e ao lado das mãos e da face estão agora olhando rostos dos quais não estou ciente, faces calmas e reais, Não duvido que a majestade e a beleza do mundo estejam latentes em cada partícula do mundo, Não duvido que eu seja alguém ilimitado e que os universos sejam ilimitados, e em vão procuro pensar em quão ilimitados serão, Não duvido que os orbes e os sistemas dos orbes façam o seu esporte ligeiro através do ar de propósito, e de que um dia eu serei um candidato tão qualificado quanto eles, e mais até do que eles, Não duvido que afazeres temporários continuem e por milhões de anos, Não duvido que os interiores tenham seus outros interiores, e exteriores tenham seus outros exteriores, e que a visão tenha outra visão, e que a audição tenha outra audição, e que a voz tenha outra voz, Não duvido que a morte dramaticamente lamentada de rapazes tenha sido preparada, e que as mortes de jovens mulheres e as mortes de criancinhas tenham sido preparadas, (Pensaste que a Vida seria tão bem preparada e a Morte, o sentido de toda a Vida, não seria preparada?) Não duvido que os naufrágios no mar, não importa que horrores contenham, não importa a esposa de quem, os filhos de quem, marido, pai, amante, tenham sucumbido, sejam preparados ponto a ponto, Não duvido que o que quer que possivelmente aconteça em qualquer lugar e a qualquer tempo seja preparado na inerência das coisas, Não penso que a Vida faça provisão de tudo, e prepare para o Tempo e para o Espaço, mas acredito que a Morte Divina prepare para tudo.
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Anos de areia movediça

Anos de areia movediça que me rodopiam, não sei até onde, Teus esquemas, políticas, falhas, linhas concedidas, substâncias que escarnecem de mim e de mim se esquivam, Apenas o tema que eu canto, a alma grandiosa e fortemente possuída, não se esquiva, O ser de cada um não deve jamais ser concedido — essa é a substância final — a única que, de todas as coisas, é certa, Da política, dos triunfos, das batalhas, da vida, o que finalmente permanece? Quando os espetáculos terminam, o que é certo, exceto o Ser de cada um?

Aquela música sempre está em torno de mim

Aquela música sempre está em torno de mim, incessantemente, sem início ou fim e, contudo, por muito tempo ignorante, eu não a ouvi, Mas agora ouço o coral e estou elevado, Um tenor, forte, subindo com poder e saúde, com notas alegres de crepúsculo que ouço, Um soprano, a intervalos, navegando vagarosamente na crista de ondas imensas, Um baixo transparente tremendo deliciosamente sob e através do universo, O triunfante tutti, os gemidos do funeral com doces flautas e violinos, com tudo isso preencho meu ser, Não ouço simplesmente o volume do som, sou movido por significados primorosos, Ouço as diferentes vozes ziguezagueando para dentro e para fora, esforçando-se, lutando com veemência colérica para superarem umas às outras em emoção; Não penso que os artistas as conhecem — mas agora penso que começo a conhecê-las.
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Que navio aturdido no mar

Que navio aturdido no mar — condenados indo para o verdadeiro ajuste de contas? Ou exilados para evitar a prisão e seguir o canal — necessita de um timoneiro perfeito? Aqui, marinheiro! Aqui, navio! Leva a bordo o mais perfeito timoneiro, Alguém que, em uma nau pequenina, embarcando e remando, eu, saudando-te, ofereço.

Uma aranha paciente e silenciosa

Uma aranha paciente e silenciosa, Registrei o lugar de um pequeno promontório em que ela estava isolada, Registrei o modo como, para explorar as vastas redondezas vazias, Ela lançou adiante filamentos, filamentos, filamentos que saíram de dentro dela, Sempre os desenrolando, sempre os acelerando incansavelmente. E tu, ó minha alma, no lugar em que estás, Cercada, destacada, em imensuráveis oceanos de espaço, Meditando incessantemente, aventurando-se, lançando-se, procurando as esferas para conectá-las, Até a ponte que terá de ser formada para ti, até o cabo flexível da âncora, Até que o fibra fina que atiras prenda-se em alguma parte, ó minha alma.

Vivendo sempre, sempre morrendo

Ó vivendo sempre, sempre morrendo! Os meus sepultamentos do passado e do presente, Ó quando ando vigorosamente para adiante, material, visível, imperioso como sempre; Ó esse que fui por anos, agora morto (não me lamento, estou satisfeito), Ó para desligar-me destes corpos meus, para os quais me volto, para olhar o lugar em que os joguei,  med.00400.436.jpg Passo adiante (Ó vivendo! Sempre vivendo!) e deixo os corpos para trás.

Para alguém que brevemente morrerá

Entre todos os outros, reparo em ti e tenho uma mensagem para ti, Estás para morrer — deixe que outros te digam o que quiserem, não posso prevaricar, Sou exato e impiedoso, mas amo-te — não há fuga para ti. Suavemente, imponho minha mão direita sobre ti, tu apenas a sentes, Não discuto, inclino minha cabeça para perto de ti e oculto parte dela, Sento-me quieto ao teu lado, permaneço fiel, Sou mais que enfermeiro, mais que pai ou vizinho, Absolvo-te de tudo exceto de teu corpo espiritual, que é eterno, tua essência certamente escapará, O corpo que abandonarás será apenas excremento. O sol arroja-se através, em direções não procuradas, Fortes pensamentos e a confiança te preenchem, sorris, Esquece-te de que estás doente, como eu também esqueço de que estás doente, Não vês os remédios, não te importas com os amigos que choram, estou contigo, Excluo os outros de ti, não há nada para que haja comiseração, Não sinto comiseração, congratulo-me contigo.

Noite nas pradarias

Noite nas pradarias, O jantar acabou, o fogo no chão queima baixo, Os emigrantes enfastiados dormem, enrolados em seus cobertores; Sozinho, eu ando — paro e observo as estrelas, o que penso agora nunca antes imaginara. Agora absorvo imortalidade e paz, Admiro a morte e coloco em teste proposições.  med.00400.437.jpg Que abundante! Que espiritual! Que sumário! O mesmo velho homem e alma — as mesmas velhas aspirações e a mesma satisfação. Eu pensava no mais esplêndido dos dias até ver o que o não-dia exibiu, Eu pensava que este orbe era o bastante, até que miríades de outros orbes arremessaram-se tão silenciosamente em minha volta. Agora, quando os grandes pensamentos de espaço e eternidade me preenchem, hei de avaliar-me por eles, E agora, tocado pelos que vivem em outros orbes, que nasceram tão longe quanto aqueles que vivem na Terra, Ou aqueles que esperam para nascer, ou ainda os que foram para além daqueles que são da Terra, De agora em diante, não os ignoro mais do que ignoro a minha própria vida, Ou as vidas da Terra que nasceram tão longe quanto eu, ou os que esperam para nascer. Vejo agora que a vida não pode revelar-me tudo, tal qual o dia não o pode, Vejo que tenho de aguardar aquilo que será revelado pela morte.

Pensamento

Sento-me com outros em uma grande festa e, de repente, enquanto a música está tocando, Vem à minha mente (sua procedência desconheço) um espectro feito de bruma de um naufrágio no mar, De certos navios que navegam, saídos do porto com bandeirolas voadoras e beijos flutuantes, aquele é o último, Do solene e tenebroso mistério sobre o destino do Presidente, A flor da ciência marítima de cinqüenta gerações, fabricado à frente da Costa Nordeste, afundando — do navio a vapor chamado Ártico, afundando, No velado quadro vivo — as mulheres reúnem-se no convés, pálidas, heróicas, aguardando o momento que se aproxima — ó o momento! Um imenso soluço — algumas bolhas — a espuma branca espiralada, e então as mulheres se vão,  med.00400.438.jpg Naufragando ali, enquanto o fluxo da água impassível continua — e agora refletindo: será que aquelas mulheres se foram de fato? Então as almas se afogam e são destruídas? Apenas a matéria triunfa?

A última invocação

Ao final, gentilmente, Saído das paredes da poderosa fortaleza, Do fecho dos robustos cadeados, da guarda das portas bem cerradas, Deixa-me bater as asas. Deixa-me deslizar silenciosamente para adiante; Com a chave da suavidade destrancar as trancas — com um sussurro, Abre as portas, ó alma. Gentilmente — não sejas impaciente, (Forte é teu abraço, ó carne mortal, Forte é teu abraço, ó amor).

Quando assistia aos agricultores arando a terra

Quando assistia aos agricultores arando a terra, Ou ao semeador semeando os campos, ou ao ceifeiro ceifando, Eu vi ali também, ó vida e morte, vossas analogias; (Vida, vida é o cultivo, e Morte é a colheita proporcional.)

Reflexivo e vacilante

Reflexivo e vacilante, As palavras o Morto escrevo, Pois os Mortos estão vivendo, (Talvez sejam os únicos que vivem, os únicos reais, E eu, a aparição, o espectro.)
 med.00400.439.jpg

Tu, mãe, com tua progênie à altura

1

Tu, mãe, com tua progênie à altura, Tu, variada cadeia de diferentes Estados e, contudo, uma única identidade, Uma canção especial eu cantaria antes de ir, sobre todo o resto, Por ti, o futuro. Eu semearia uma semente por ti de infinita nacionalidade, Modelaria teu conjunto incluindo corpo e alma, Apresentaria bem no futuro a tua União real e o modo como ela poderia ser alcançada. Os caminhos para a casa, procuro fazer, Mas deixo a própria casa para aqueles que virão. A crença eu canto e a preparação; Pois se a Vida e a Natureza são grandes no presente, São ainda maiores por tudo aquilo que está por vir, A partir daquela fórmula, por ti eu canto.

2

Como um pássaro forte, liberto das amarras, Alegre, partindo para os amplos espaços do céu, Tal é o pensamento que eu teria sobre ti, América, Tal seria o recital que eu te daria. Os conceitos de poetas de outras terras eu não traria para ti, Nem as celebrações que para eles foram por tanto tempo dedicadas, Nem a rima, nem o clássico, nem o perfume da corte estrangeira ou a biblioteca fechada; Mas um odor, eu traria, como o das florestas de pinheiros no Maine, ou o vento das pradarias de Illinois, Com os ares abertos da Virgínia ou Geórgia ou Tennessee, ou das terras altas do Texas, ou dos pântanos da Flórida, Ou a corrente negra do Saguenay, ou a larga amplitude azul do Huron, Com exibição das cenas de Yellowstone, ou Yosemite, E murmurando no fundo, a tudo permeando, eu traria os sons sussurrantes do mar, Aqueles sons infinitos dos dois Grandes Mares do mundo.  med.00400.440.jpg E para a tua sensibilidade, refrãos sensíveis, Mãe aterradora, Prelúdios do intelecto elevando esses e tu, fórmulas mentais apropriadas a ti, reais e saudáveis e grandes como esses e tu, Tu, ascendendo mais alto, mergulhando mais fundo do que sabíamos, tu, União transcendental! Por ti o fato que será justificado, fundido com o pensamento, Pensamento de homem justificado, fundido com o de Deus, Através de tua idéia, vê, a realidade imortal! Através de tua realidade, vê, a idéia imortal!

3

Cérebro do Novo Mundo, que missão é a tua, Formular o Moderno — a partir da incomparável grandeza do moderno, A partir de ti, incluindo a ciência, remodular poemas, igrejas, arte, (Remodelar pode significar descartá-los, terminá-los — talvez o trabalho deles esteja concluído, quem sabe?) Pela visão, a mão, a concepção, no pano de fundo do poderoso passado, os mortos, Delinear com fé absoluta o vivo presente. Entretanto, tu, vivendo o presente, cérebro, herdeiro dos mortos, o antigo cérebro do Mundo, Tu, deitado e encolhido como um bebê não nascido, dentro de teu invólucro por tanto tempo, Tu, cuidadosamente preparado para isso, por tanto tempo — talvez não tenhas saído de teu invólucro, mas tenhas, por outro lado, amadurecido, Isso resultou em ti — a essência do tempo que já se foi está contida em ti, Os poemas, as igrejas, a arte, inconscientes de si mesmos, com seus destinos referendados para ti; Tu, o que és senão as maçãs, crescidas por um tempo longo, longo, longo. Os frutos de tudo o que se plantou na Antiguidade, amadurecendo hoje em ti.

4

Navega, navega o melhor que puderes, navio da Democracia, De valor é tua carga, não pertence apenas ao Presente, O Passado também se encontra armazenado em ti,  med.00400.441.jpg Não abraçaste somente a tua aventura, não apenas a do continente do Oeste, O currículo da Terra inteira flutua sobre a tua quilha, ó navio, e é afiançado em teu mastro, A ti foram confiados os viajantes do Tempo, as nações antecedentes afundam ou nadam contigo, Com todas as suas lutas antigas, mártires, heróis, épicos, guerras, tu sustentas os outros continentes, O que é deles, o que é deles é igualmente teu, o triunfante porto da destinação; Guia, então, com mão boa e forte e com olho cauteloso, ó timoneiro, pois levas grandes companheiros, A venerável Ásia sacerdotal navega hoje contigo, E a real Europa feudal navega contigo.

5

Lindo mundo de novos e mais soberbos nascimentos que se erguem diante de meus olhos, Como uma nuvem dourada sem limites que enche o céu ocidental, Emblema da maternidade geral, erguida sobre todas as coisas, Sagrada forma da portadora de filhas e filhos, De teu útero fértil, emites teus bebês gigantes numa procissão interminável, Consentindo essa gestação, dando e tirando força e vida contínua, Mundo do real — mundo de dois em um, Mundo da alma, nascido ao lado do mundo do real solitário, conduzido para a identidade, corpo, por meio dele sozinho, E contudo apenas para começar, incalculáveis massas de preciosos materiais compostos, Pelos ciclos da história à frente enviado por todas as nações e línguas para cá enviado Pronto, aqui reunido, um libertador, vasto, elétrico mundo, para ser construído aqui, (O verdadeiro Novo Mundo, o mundo da ciência órbica, da moral, das literaturas do porvir), Tu, mundo maravilhoso, ainda indefinido, sem forma, nem eu te defino, Como posso perfurar a cobertura impenetrável do futuro? Sinto tua grandeza sinistra tão maligna quanto boa, Assisto-te enquanto avanças, absorvendo o presente, transcendendo o passado,  med.00400.442.jpg Vejo tua luz iluminando e tua sombra sombreando como se fosse abarcar o globo inteiro, Mas não me encarrego de definir-te, mal posso compreender-te, Digo apenas teu nome, tua profecia, como agora, Apenas profiro-te! Tu, em teu futuro, Tu, em tua única vida permanente, carreira, tua própria mente solta, teu espírito elevado, Tu, como um outro sol, igualmente necessário, radiante, ardente, movendo-se prontamente, frutificando tudo, Tu, erguendo-te em potente vibração e alegria, em grande hilaridade sem fim, Espalhando permanentemente a nuvem parada no céu por tanto tempo, que pesou por tanto tempo sobre a mente do homem, A dúvida, a suspeita, o horror, de uma gradual, de uma certa decadência do homem; Tu, em tua maior, mais saudável geração de fêmeas, machos — tu, em teus atletas, moral, espiritual, Sul, Norte, Oeste, Leste, (Para os teus seios imortais, Mãe de Todos, todas as tuas filhas, filhos, acarinhados do mesmo modo, para sempre iguais), Tu, em teus próprios músicos, cantores, artistas, ainda não nascidos, mas certos, Tu, em tua riqueza moral e civilização (até que ela venha, tua mais orgulhosa civilização deve permanecer em vão), Tu, em teu suprimento geral, em teu culto que a todos inclui — tu, que não te fechas em uma única bíblia, em um único salvador, meramente, Teus salvadores sem conta, latentes em ti, tuas bíblias incessantes dentro de ti, iguais a quaisquer outros, divinos como quaisquer outros, (Tu, formulando teu caminho elevado, não em tuas duas grandes guerras, nem em teu século de crescimento visível, Mas muito mais nestas folhas e cantos, teus cantos, grande Mãe!) Tu, em uma educação desenvolvida em ti, em professores, estudos, estudantes, nascidos de ti, Tu, em tuas democráticas fêtes en-masse, teus festivais altamente originais, óperas, palestras, pregadores, Tu, em teus acabamentos (as preparações somente agora concluídas, o edifício atado em sólidas fundações),  med.00400.443.jpg Tu, em teus pináculos, intelecto, pensamento, teus prazeres racionais mais elevados, teu amor e tua aspiração divina, Em tua vinda literária resplendente, teus oradores de pulmão cheio, teus bardos sacerdotais, teus cósmicos menestréis, Estes! Estes em ti (certos para vir), hoje profetizo.

6

Terra que tolera todos, que aceita todos, não os bons apenas, mas todos os bons por ti, Terras nos domínios de Deus para se tornar um domínio de si mesma, Sob a lei de Deus para ser uma lei de si mesma. (Vê, onde se erguem três estrelas inigualáveis, Para que sejam tuas estrelas de natalidade, meu país, Unidade, Evolução, Liberdade, Estabelecidas no céu da Lei.) Terra de fé sem precedentes, fé em Deus, Teu solo, teu próprio subsolo, todo sublevado, A terra geral nas profundezas, há tanto tempo caprichosamente recôndita, desde agora com sulcos que a desnudam, Aberta por ti para a luz do céu por benefício ou fardo. Não apenas para o sucesso, Não para uma bela navegação, sempre sem intermitência, A tempestade há de borrifar tua face, as trevas da guerra e daquilo que é pior do que a guerra há de cobrir-te inteiramente, (Foste competente para fazer guerra, com suas lutas e provações? Sê competente para a paz, com suas provas, Pois a luta e o violento esforço das nações vem finalmente na próspera paz, não na guerra.) Muitas máscaras sorridentes da morte hão de se aproximar de ti para iludir-te, e tu estando doente hás de delirar, O câncer pálido espalha suas garras abomináveis, apegando-se sobre teus seios, procurando atacar-te nas profundezas, Definhamento do pior tipo, definhamento moral, há de colorir de vermelho tua face com expressão de pressa, Contudo, hás de encarar tua sina, tuas enfermidades, e suplantá-las a todas, Quaisquer que sejam elas no presente e quaisquer que venham a ser através do tempo,  med.00400.444.jpg Cada uma delas há de se erguer e passar e cessar, saindo de ti, Enquanto tu hás de girar na espiral do Tempo, saindo de ti mesma, libertando-te, fundindo-te. Igualitária, natural, tua mística União (misturando o mortal ao imortal), Há de pairar rumo à realização do futuro, o espírito do corpo e a mente, A alma, seus destinos, A alma, seus destinos, o real que é real, (O sentido de todas essas aparições do real) Em ti, América, a alma, seus destinos, Teu globo dos globos! Tua maravilha nebulosa! Por muitas agonias que atravessaste, convulsões de aquecimento e resfriamento (por meio dessas, tu te solidificando), Teu orbe mental, moral — teu Novo, de fato novo, Mundo Espiritual! O Presente não te contém — pois tão vasto é o teu crescimento, Tão incomparável é teu vôo, tal geração é a tua, Que apenas o FUTURO pode conter-te.

Um retrato de Paumanok

Dois barcos com suas redes boiando em frente à praia, praticamente imóveis, Dez pescadores esperando — eles descobrem um denso cardume de savelhas — jogam as pontas das redes de arrastão na água, Os pescadores remam em direção oposta e os barcos se separam, cada um fazendo uma rota circular na direção da praia, cercando as savelhas, A rede é puxada pelo guindaste, movido por aqueles que desembarcam, Alguns pescadores descansam em seus barcos, outros têm os seus tornozelos mergulhados na água, sustentados por fortes pernas, Os barcos afundam parcialmente, a água espirra contra eles, Espalhadas na areia, em pilhas e dentro de sulcos, tiradas da água, as savelhas pintadas de verde e preto.
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Do meio-dia à noite estrelada

Teu orbe suspenso inteiramente encantador

Teu orbe suspenso inteiramente encantador! Teu meio-dia quente de outubro! Inundando, com brilhante luz, a cinza areia da praia, O sibilante mar próximo com longínquo horizonte e espuma, E as fulvas faixas e as sombras e o azul que se espalha; Ó sol do meio-dia refulgente! A ti uma palavra especial. Ouve-me, ilustre! Tu me amas, pois sempre tenho te amado, Ainda quando bebê me aquecendo ao sol, depois como um menino solitário nos limites de alguma floresta, sob teus raios que, à distância, tocam o suficiente, Homem maduro, jovem ou velho, como agora, lanço-te minha invocação. (Não podes me enganar com tua mudez, Sei que perante o homem correto toda a Natureza se rende, Embora respondendo sem palavras, os céus e as árvores, ouvem a voz dele — e tu, ó sol, Pois por causa de tuas agonias, as tuas perturbações irrompem repentinamente e lançam chamas gigantescas, Eu as compreendo, conheço aquelas chamas, aquelas perturbações muito bem.) Tu, que com calor e luz frutíferos, Sobre miríades de fazendas, sobre terras e águas do Norte e do Sul, Sobre o curso infinito do Mississippi, sobre as planícies gramadas do Texas, as florestas do Canadá,  med.00400.446.jpg Sobre todo o globo que volta a sua face para ti, que brilhas no espaço, Tu, que imparcialmente a tudo envolves, não apenas continentes e mares, Tu, que para uvas e ervas e pequenas flores selvagens concedeste com tamanha liberalidade, Derrama, derrama-te no que é meu e em mim, com apenas um efêmero raio de teus milhões de milhões, Ataca através destes cantos. Não lances apenas teu sutil deslumbramento e tua força para esses, Prepara o final da tarde de mim mesmo — prepara minhas sombras de longo alcance, Prepara minhas noites estreladas.

Faces

1

Saracoteando pela calçada ou passeando a cavalo pelas estradas, vê, que faces! Faces de amizade, precisão, cuidado, suavidade, devaneio, A face espiritual presciente, a face benevolente, comum, de boas-vindas, A face de quem entoa a canção, a grande face natural de advogados e juízes, ampla no topo da nuca, As faces de caçadores e pescadores abaulada nas sobrancelhas, a face barbeada e branca dos cidadãos ortodoxos, A face pura, extravagante, ansiosa, questionadora dos artistas, A face feia de alguma linda alma, a face bonita detestável ou desprezível, As sagradas faces das crianças, a face iluminada da mãe de muitos filhos, A face de um namorado, a face da veneração, A face de um sonho, a face de uma rocha imóvel, A face ausente do seu bom e do seu mau, uma face castrada, Um falcão selvagem, suas asas cortadas com uma tesoura, Um garanhão que finalmente se rende às correias e à faca do castrador. Saracoteando pelo pavimento, então, ou cruzando incessantemente a balsa, faces e faces e faces, Vejo-as e não reclamo, e estou satisfeito com todas elas.
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2

Supões que eu poderia estar satisfeito com todas elas se pensasse sobre o final de cada uma? Essa agora é uma face lamentável demais para um homem, Algum verme abjeto suplicando para ser, bajulando para ser, Alguma larva branca abençoando aquilo que cai em seu buraco. Essa face é um focinho de cão farejando o lixo, Ninho de cobras na boca, ouço a ameaça sibilante. Essa face é uma neblina mais fria que a do mar ártico, Seus icebergs dormentes e trêmulos esmigalham-se à medida que seguem. Essa é uma face de ervas amargas, essa é uma emética, não precisam de rótulos, E são mais do que está na gaveta dos remédios, láudano, caucho, ou banha de porco. Essa face é uma epilepsia, sua língua sem palavras concede o choro sobrenatural, Suas veias distendem-se pescoço abaixo, seus olhos giram até que mostrem nada além de seus brancos, Seus dentes rangem, as palmas das mãos são cortadas pelas unhas retorcidas, O homem cai no chão debatendo-se e espumando, enquanto especula bem. Essa face é mordida por vermes e minhocas, E esta é a faca de algum assassino com uma bainha meio puxada. Essa face deve ao sacristão seu lúgubre pagamento, Um sino de morte incessante toca lá.

3

Fisionomias de meus iguais, lograr-me-íeis com vossa marcha dobrada e cadavérica? Bem, não podeis lograr-me.  med.00400.448.jpg Vejo o vosso fluxo circular nunca apagado, Vejo por baixo de vossas desfigurações e disfarces de maldade. Desdobrai-vos e deformai-vos como quiserdes, cutucai com enredadas partes dianteiras de peixes ou de ratos, Sereis libertas de vossas focinheiras, certamente sereis. Eu vi a face do néscio mais difamado e babão que mantinham no asilo, E sabia, para minha consolação, o que eles não sabiam, Eu sabia dos agentes que esvaziaram e quebraram meu irmão, Os mesmos que esperaram para limpar o lixo da moradia derrubada, E eu hei de olhar novamente de tempos em tempos, Hei de encontrar o verdadeiro proprietário perfeito e intocado, tão bom quanto eu mesmo em cada polegada.

4

O senhor avança, e ainda avança, Sempre a sombra adiante, a mão sempre puxando os retardatários, A partir dessa face emergem estandartes e cavalos — ó soberbo! Vejo o que está vindo, Vejo no alto os bonés dos pioneiros, vejo a rebentação dos corredores abrindo caminho, Ouço os tambores da vitória. Essa face é um bote salva-vidas, Essa é a face barbada que comanda, ela não pede das outras o que é estranho, Essa face é fruta saborosa pronta para ser comida, Essa face de um garoto honesto saudável é o programa de todo o bem. Essas faces sustentam o testemunho, sonolentas ou despertas, Elas mostram que se originam do próprio Mestre. Não faço exceção daquilo que disse — vermelhos, brancos, negros, são todos divinos, Em cada casa está o óvulo, ele se apresenta depois de mil anos. Manchas ou rachaduras na janela não me perturbam, Alguém alto e suficiente ergue-se atrás de mim e faz-me sinais, Eu leio a promessa e aguardo pacientemente.  med.00400.449.jpg Esta é a face de um lírio inteiramente amadurecido, Ela fala ao homem de quadril flexível, próximo aos piquetes do jardim, Vem cá, ela grita ruborizadamente, aproxima-te de mim, homem de quadril eu possa, Enche-me com mel esbranquiçado; inclina-te para mim, Coça para mim a tua barba irritada, coça o meu peito e meus ombros.

5

A velha face da mãe de muitos filhos, Psiu! Estou inteiramente satisfeito. Calma e atrasada está a fumaça da manhã do primeiro dia, Ela pende baixa nas fileiras de árvores próximas das cercas, Ela pende fina próxima do sassafrás e da cereja do mato e da salsaparrilha que está sob elas. Vi as moças ricas com seus vestidos no sarau, Por muito tempo, ouvi o que os cantores estavam cantando, Ouvi quem floresceu em juventude carmesim, da branca espuma e do azul aquático. Observa aquela mulher! Ela espreita de seu chapéu quacriano, sua face é mais clara e mais bela que o céu. Senta-se em uma poltrona sob a varanda coberta da casa da fazenda. O sol apenas brilha sobre a sua velha cabeça branca. Sua ampla camisola é feita de linho creme, Seus netos cultivaram a fibra de linho e sua neta fiou-a com a roca. O melodioso caráter da terra, O final além do qual a filosofia não pode e nem deseja ir, A mãe justificada do homem.
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O trombeteiro místico

1

Ouve, algum louco trombeteiro, algum músico estranho, Pairando invisível no ar, vibram tons caprichosos esta noite. Ouço-te, trombeteiro! Ouvindo com atenção, colho as tuas notas, Agora se derramando, girando como uma tempestade em minha volta, Agora mais baixo, submetido, agora perdido na distância.

2

Aproxima-te, ser incorpóreo, por acaso em ti ressoa Algum morto compositor, por acaso tua vida reflexiva Foi recheada de elevadas aspirações, ideais sem forma, Ondas, oceanos musicais, surgindo caóticos, Que agora o extático fantasma, inclinando-se perto de mim, tua corneta ecoando, repicando, Entregando-se a ouvido algum, senão ao meu, mas ao meu se entregando livremente, Para que eu possa traduzir-te.

3

Toca, trombeteiro! Livre e bem definido, sigo-te, Enquanto em teu líquido prelúdio, alegre, sereno, O mundo irritante, as ruas, as horas barulhentas do dia se retiram, Uma calma sagrada desce como orvalho sobre mim, Ando pela noite fria e refrescante com passos paradisíacos, Sinto a relva, o ar úmido e as rosas; Tua canção expande meu espírito anestesiado, e penhorado, lanças-me liberto, Flutuando e aquecendo-me sobre o lago do céu.

4

Toca novamente, trombeteiro! E para os meus olhos sensuais, Resgata os velhos cortejos cívicos, apresenta o mundo feudal. Que encantos opera a tua música! Tu fizeste passar diante de mim Damas e cavaleiros mortos há muito; os barões estão nos salões de seus castelos, os trovadores estão cantando,  med.00400.451.jpg Cavaleiros armados avançam para reparar seus erros, alguns em busca do sagrado Graal; Vejo o torneio, vejo os concorrentes vestindo pesadas armaduras em faustosos cavalos mordentes, Ouço os gritos, os sons das pancadas e dos golpes de aço, Vejo os exércitos tumultuosos dos Cruzados — ouve o tinir dos címbalos, Vê o lugar em que os monges passam antes da partida, sustentando, no alto, a cruz.

5

Toca novamente, trombeteiro! E por teu tema, Toma agora o tema que tudo abarca, o que se dissolve e o que se estabelece, O amor, que é o pulso de tudo, a sustentação e a agonia, Os corações do homem e da mulher, todos por amor, Nenhum outro tema além do amor — tecendo, envolvendo, a todos difundindo o amor. Ó como os fantasmas imortais se aglutinam em minha volta! Vejo o vasto alambique trabalhando sempre, vejo e conheço as chamas que aquecem o mundo, O brilho, o alvor, os corações palpitantes dos que amam, Alguns tão cheios de bem-aventurança e alguns tão silenciosos, escuros e próximos da morte; Amor, que é a terra inteira para os amantes — amor, que zomba de tempo e de espaço, Amor, que é o dia e a noite — amor, que é o sol e a lua e as estrelas, Amor, que é carmesim, suntuoso, doente com o perfume, Nenhuma outra palavra além das palavras de amor, nenhum outro pensamento além do amor.

6

Toca novamente, trombeteiro — evoca os alarmas de guerra. Prontamente, ao teu feitiço, um zunido horrorizado viaja como um trovão distante, Vê o lugar em que os homens armados se apressam — vê, em meio às nuvens de poeira, o brilho das baionetas, Vejo as faces encardidas dos canhoneiros, registro a luz rósea em meio à fumaça, ouço o estampido das armas;  med.00400.452.jpg Não apenas a guerra — tua canção temerosa, selvagem artista, traz todas as visões do medo, Os feitos de salteadores cruéis, rapinagem, assassinato — ouço os gritos pedindo ajuda! Vejo navios afundando no mar, observo no convés e abaixo do convés os terríveis quadros vivos.

7

Ó trombeteiro, parece-me que sou eu mesmo o instrumento que tocas, Tu derreteste meu coração e meu cérebro — tu moveste, arrastaste e mudaste-os à vontade; E agora tuas notas mal-humoradas enviam a escuridão através de mim, Levaste contigo toda a luz vibrante, toda a esperança, Vejo os escravizados, os subjugados, os feridos, os oprimidos de toda a terra, Sinto a vergonha desmedida e a humilhação de minha raça, ela se tornou toda minha, Meus, também, as vinganças da humanidade, os erros das idades, os feudos confusos e ódios, Derrota proferida sobre mim que pesa — tudo perdido — o inimigo é vitorioso, (Contudo, em meio às ruínas, o orgulho colossal se ergue inabalável até o fim; resistência, firmeza até o fim.)

8

Agora, trombeteiro, teu encerramento, Concede um esforço maior que todos os anteriores, Canta para minha alma, renova a minha fé debilitada e a minha esperança, Anima minha crença retrógrada, dá-me alguma visão de futuro, Dá-me uma única vez a tua profecia e prazer. Ó canção alegre, exultante, culminante! Um vigor maior do que o da terra está em tuas notas, Marchas de vitória — homem emancipado — o conquistador afinal, Hinos para o Deus universal, provenientes do homem universal — tudo alegria! Uma raça renascida emerge — um mundo perfeito, todo prazer! Mulheres e homens em sabedoria, inocência e saúde — tudo alegria! Ridentes bacanais dissolutos cheios de alegria!  med.00400.453.jpg Guerra, tristeza, sofrimento terminados — a exuberante terra purgada — nada resta, exceto a alegria! O oceano cheio de alegria — a atmosfera toda de alegria! Alegria! Alegria! Em liberdade, adoração, amor! Alegria no êxtase da vida! Ser, meramente, é o bastante! Respirar é o bastante! Alegria! Alegria! Por toda parte a alegria!

Para uma locomotiva no inverno

Tu, pela minha narrativa, Tu, na propulsão da tempestade, tal como agora, a neve, o dia de inverno terminando, Tu, em tua panóplia, tua compassada palpitação dupla e tua batida convulsiva, Teu negro corpo cilíndrico, placa dourada e teu metal prateado, Tuas pesadas barras laterais, barras paralelas e de conexão, girando, correndo em teus flancos, Teu ritmo, resfolego e ronco agora dilatados, que se afilam na distância, Teu grande farol projetado, fixado na frente, Teus longos, pálidos, flutuantes estandartes de vapor, tingidos de delicados tons purpúreos, As nuvens densas e sombrias vomitadas de tua chaminé, Teu chassi tricotado, tuas molas e válvulas, a cintilação trêmula de tuas rodas, A seqüência de vagões atrelados a ti, obedientes, apenas seguindo, Através do vendaval ou da calmaria, agora rápida, agora lenta, porém sempre avançando, continuamente, Modelo do que é moderno — emblema do movimento e do poder — pulso do continente, Desta vez, vem servir à Musa e fundir-te em versos, pois que também aqui te vejo, Com tempestade e rajadas de vento e a neve que cai, De dia, o toque de teus sinos alerta pelo som de suas notas, À noite, teus silenciosos sinais no balanço das lâmpadas. Beleza feita de garganta ameaçadora! Desliza através de meus cantos com tua música sem lei, tuas lâmpadas agitadas durante a noite,  med.00400.454.jpg Tua risada feita de um assobio louco, ecoando, roncando como um terremoto, a todos inflamando, Lei completa de ti mesma, em teus próprios trilhos firmemente agarrada, (Tua não é a doçura cortês da harpa que faz chorar ou do piano lisonjeiro) As vibrações de teus guinchos devolvidas pelas rochas e montanhas, Lançadas sobre as amplas pradarias, através dos lagos, Fechada para os livres céus e alegre e forte.

Ó Sul magnético

Ó Sul magnético! Ó Sul perfumado e brilhante! Meu Sul! Ó temperamento acelerado, sangue rico, impulso e amor! Bem e mal! Ó tudo em querido para mim! Ó queridas para mim as coisas de meu nascimento — tudo o que se move e as árvores do lugar em que nasci — os grãos, as plantas, os rios, Queridos para mim os meus próprios rios preguiçosos, onde eles fluem, distantes, sobre planos de areias prateadas ou através de brejos, Queridos para mim o Roanoke, o Savannah, o Altamahaw, o Pedee, o Tombigbee, o Santee, o Coosa e o Sabine, Ó pensativo, peregrinando ao longe, retorno com minha alma para me refugiar nas suas margens novamente, Outra vez na Flórida flutuo em lagos transparentes, flutuo no Okeechobee, cruzo a terra do outeiro, atravesso clareiras agradáveis ou densas florestas, Vejo os papagaios nas florestas, vejo o mamoeiro e a cliftônia florindo; Outra vez, navegando no meu navio costeiro no convés, afasto-me da costa da Geórgia e subo pela costa das Carolinas, Vejo o lugar em que o Carvalho americano está crescendo, vejo o pinheiro amarelo, a perfumada árvore da baía, o limão e a laranja, o cipreste, o gracioso palmito, Passo pelo promontório e adentro o estuário de Pamlico através de uma angra e lanço meu olhar para o interior; O algodoeiro! Os campos de arroz crescendo, açúcar, cânhamo! Os cactos protegidos por espinhos, o loureiro com grandes flores, A extensão ao longe, a riqueza e a aridez, as velhas florestas carregadas de visgo e de limo,  med.00400.455.jpg O odor dos pinheiros e a escuridão, a terrível quietude natural (aqui, nesses brejos densos, o pirata carrega a sua arma, e o fugitivo tem a sua cabana escondida); Ó estranha fascinação desses mal conhecidos e quase intransitáveis brejos, infestados de répteis, onde ressoam os urros dos jacarés, os sons tristes da coruja noturna e do felino selvagem, e o sibilo da cascavel, O pássaro-das-cem-línguas, o mímico americano, cantando a manhã inteira, cantando através da noite enluarada, O beija-flor, o peru selvagem, o guaxinim, o gambá, Um campo de milho do Kentucky, o alto, gracioso, milho bem maturado, magro, agitado, verde brilhante, com borlas, com lindas espigas embainhadas em suas cascas; Ó meu coração! Ó dores suaves e penetrantes, não posso suportá-las, partirei; Ó ser proveniente da Virgínia, o lugar onde cresci! Ó ser da Carolina! Ó vontades irrepreensíveis! Ó retornarei para o velho Tennessee e nunca mais peregrinarei.

Mannahatta

Eu estava pedindo algo específico e perfeito para a minha cidade, Em conseqüência do que, repara!, originou-se o seu nome aborígine. Agora vejo o que há em um nome, uma palavra, líquida, saudável, indomável, musical, auto-suficiente, Vejo que a palavra de minha cidade é aquela palavra antiga, Porque vejo aquela palavra aninhada em ninhos de baías aquáticas, soberbas, Ricas, margeadas densamente, circundadas por navios à vela e navios a vapor, uma ilha de dezesseis milhas de comprimento, com fundamentos sólidos, Um sem-número de ruas povoadas, altas torres de ferro, magras, fortes, leves, esplêndidas, elevando-se no rumo de claros céus, Marés rápidas e amplas, bem amadas por mim, na direção do pôr-do-sol, As correntes marítimas fluindo, as pequenas ilhas, ilhas maiores adjacentes, as alturas, as vilas, Os incontáveis mastros, os brancos barcos a vapor nas margens, as  med.00400.456.jpg barcaças, as balsas, os negros barcos marítimos a vapor, bem modelados, As ruas do centro da cidade, as casas de negócio dos assalariados, as casas de negócio dos vendedores de navio e os corretores financeiros e as ruas fluviais, Imigrantes chegando, quinze mil ou vinte mil em uma semana, As carretas rebocando bens, a raça masculina dos condutores de cavalos, os marinheiros de rosto bronzeado, O ar de verão, o sol radiante brilhando e as nuvens navegando no alto, As neves do inverno, as cascavéis, o gelo quebrado no rio, passando em toda a extensão para cima e para baixo com a maré cheia e a maré vazante, Os mecânicos da cidade, os mestres, bem formados, de lindos rostos, olhando diretamente nos olhos, Trotadouros abarrotados, veículos, Broadway, as mulheres, as lojas e os espetáculos, Um milhão de pessoas — de modos livres e soberbos — vozes abertas — hospitalidade — os jovens mais corajosos e amistosos, Cidade de águas correntes e cintilantes! Cidade de postes e pontas! Cidade aninhada em baías! Minha cidade!

Tudo é verdade

Ó eu, há tanto tempo um homem de fé indolente, Erguendo-me a distância, negando porções de mim mesmo por tanto tempo, Somente hoje consciente da sólida verdade inteiramente derramada, Descobrindo hoje que não há mentira ou forma de mentira, e não pode haver mentira alguma, mas que ela cresce sobre si, tal como a verdade faz sobre si mesma, Ou como age qualquer lei da terra ou qualquer produção natural da terra. (Isto é curioso e pode não ser percebido imediatamente, mas precisa ser percebido, Sinto em mim que represento falsidades, tal como os demais, E que isso é o que faz o Universo.)  med.00400.457.jpg Onde falhou um retorno perfeito, indiferente a mentiras ou à verdade? Está sobre o solo ou na água ou no fogo? Ou no espírito do homem? Ou na carne e no sangue? Meditando entre mentirosos e retirando-me asperamente para o centro de mim mesmo, vejo que de fato não há mentirosos nem mentiras afinal, E que nada falha ao seu perfeito retorno, e aquilo que se conhece por mentiras são retornos perfeitos, E cada coisa representa exatamente a si mesma e aquilo que a aperfeiçoou, E que a verdade inclui tudo e é sólida tanto quanto o espaço é sólido, E que não há falha ou vácuo no montante da verdade — mas que tudo é verdade, sem exceção; E doravante celebrarei qualquer coisa que vejo ou sou, E cantarei e sorrirei e nada negarei.

Uma canção-enigma

Aquilo que eludem este verso e qualquer verso Não é escutado pelo ouvido mais agudo, não é formado no olho mais lúcido ou na mente mais astuta, Nem erudição, nem fama, nem felicidade, nem riqueza, E, entretanto, é o pulso de todo coração e de toda vida através do mundo inteiro, incessantemente, Aquilo que tu e eu e todos perseguimos sempre e sempre deixamos escapar, Aberto, todavia, é um segredo, o real do real, uma ilusão, Sem custo, concedido para cada um e, contudo, nunca tem o homem como possuidor, É o que os poetas, em vão, procuram colocar em rima, historiadores tentam expressar em prosa, É o que o escultor não conseguiu ainda cinzelar, nem o pintor pintar, O que o vocalista nunca cantou, nem o orador nem o ator jamais proferiu, Invocando-te aqui e agora, lanço o desafio de minha canção. Indiferente, em meio ao público, em um refúgio particular, na solidão, Atrás da montanha e da floresta,  med.00400.458.jpg Acompanhante das ruas mais ocupadas, através da assembléia, Isso e suas radiações planam constantemente. No olhar de belos bebês inconscientes, Ou, estranhamente, nos mortos postos em caixões, Nos espetáculos de demolição ou nas estrelas à noite, Como um filme de sonhos, dissolvente e delicado, Escondendo-se e, contudo, atrasando. Incluem-no dois pequenos sopros de palavra, Duas palavras, todavia, tudo o que há do início ao fim, nelas incluído. Quão ardentemente procurado! Quantos navios navegaram e naufragaram por ele! Quantos viajantes saíram de suas casas e jamais retornaram! Quanto gênio ousadamente arriscado e perdido por ele! Que incontáveis estoques de beleza, amor, aventurados por ele! E quanto de todos os mais soberbos feitos, desde o início dos Tempos, podem ser atribuídos a ele — e continuarão a ser até o fim! O quanto todos os heróicos martírios deram-se por ele! De que modo se justificam por ele os horrores, os males, as batalhas da terra! De que modo as chamas brilhantes, fascinantes e ligeiras dele têm atraído os olhos dos homens, em todos as idades e em todas as terras. Rico como o crepúsculo na costa norueguesa, o céu, as ilhas e os penhascos, Ou as luzes da meia-noite, silenciosas, cintilantes, setentrionais, inacessíveis. Por acaso Deus cria o enigma, tão vago e entretanto tão exato, A alma por ele, e todo o universo visível por ele, E, finalmente, o céu por ele.

Sempre mais alto

Quem foi mais longe? Pois eu iria mais longe, E quem tem sido justo? Pois eu seria a pessoa mais justa da terra, E quem é mais cauteloso? Pois eu seria mais cauteloso,  med.00400.459.jpg E quem tem sido mais feliz? Ó julgo que sou eu — penso que ninguém jamais foi mais feliz do que eu, E quem a tudo esbanjou? Pois esbanjo constantemente o melhor do que tenho, E quem é mais orgulhoso? Pois penso que tenho razões para ser o filho vivo mais orgulhoso — pois sou o filho da vigorosa cidade de telhados altos, E quem tem sido ousado e verdadeiro? Pois eu seria o ser mais ousado e verdadeiro do universo, E quem é benevolente? Pois eu demonstraria maior benevolência que os demais, E quem tem recebido o amor do maior número de amigos? Pois eu sei o que é receber o amor apaixonado de muitos amigos, E quem possui um corpo perfeito e enamorado? Pois não acredito que alguém possua um corpo mais perfeito e enamorado do que o meu, E quem pensa os pensamentos mais amplos? Pois eu cercaria aqueles pensamentos, E quem compôs hinos adequados para a terra? Pois eu estou louco de um êxtase devorador para compor os hinos mais alegres para a terra inteira.

Ah, pobrezas, encolhimentos e recuos amuados

Ah, pobrezas, encolhimentos e recuos amuados, Ah, vós, inimigos que me venceram em conflito, (Pois o que é a minha vida ou a vida de qualquer homem senão um conflito com inimigos, a velha e incessante guerra?) Vós, degradações, vós pelejais com paixões e apetites, Vós, dores lancinantes de amizades insatisfeitas (ah! os ferimentos mais agudos entre todos!), Tu, labuta de articulações dolorosas e chocadas, tu, maldade, Vós, línguas superficiais conversadoras à mesa (a minha língua a mais superficial que qualquer outra); Vós, resoluções quebradas, raivas atormentadoras, vós, tédios sufocados! Ah, não penseis ter finalmente triunfado, meu ser real tem que ainda emergir, Ele ainda há de marchar à frente para dominar, até que tudo esteja sob meus pés,  med.00400.460.jpg Ele ainda há de se erguer como o soldado da última vitória.

Pensamentos

Da opinião pública, De uma calma e fria ordem, mais cedo ou mais tarde, (que impassiva! que definida e final!), Do Presidente, com o rosto pálido, perguntando-se em segredo, O que o povo dirá afinal? Do juiz frívolo — do Congressista corrupto, Governador, Prefeito — desses tais se erguendo indefesos e expostos, Do sacerdote resmungão e gritador (logo, logo abandonado), Da redução, ano a ano, de venerabilidade e das ordens dos oficiais, dos estatutos, dos púlpitos, das escolas, Das para sempre crescentes e cada vez mais fortes e mais ampliadas intuições de homens e mulheres, e da auto-estima e da Personalidade; Do verdadeiro Novo Mundo — das Democracias resplendentes da massa, Da conformidade dos políticos, exércitos, marinhas, para eles, Do sol que brilha para eles — da luz inerente, maior que o resto, Do envolvimento de tudo por eles, e da efusão de tudo que deles provém.

Médiuns

Hão de se erguer nos Estados, Hão de relatar a Natureza, as leis, a fisiologia, e a felicidade, Hão de ilustrar a Democracia e o cosmos, Hão de ser nutritivos, amorosos, perceptivos, Hão de ser homens e mulheres completos, sua postura musculosa e flexível, sua bebida será a água, seu sangue será limpo e claro, Hão de se deleitar inteiramente com o materialismo e a visão dos produtos, hão de se deleitar inteiramente com a visão do bife, da madeira, da farinha de fazer pão, de Chicago, a grande cidade, Eles hão de ser treinados para ir a público e para tornarem-se oradores e oradoras, Fortes e doces devem ser as suas línguas, poemas e matéria-prima  med.00400.461.jpg para poemas — hão de vir de suas vidas, hão de ser realizadores e descobridores, Deles e de suas obras devem emergir divinos transmissores, para transmitir evangelhos, Personagens, eventos e retrospectos hão de ser transmitidos nos evangelhos, árvores, animais, águas, hão de ser transmitidos, Mortes, o futuro e a fé invisível hão de ser transmitidos.

Tece, minha vida intrépida

Tece, tece, minha vida intrépida, Tece ainda um soldado forte e pleno para as grandes campanhas que virão, Tece o sangue vermelho, tece nervos como se fossem cordas, tece os sentidos, tece a visão, Tece certezas duradouras, tece dia e noite, a trama, a urdidura, tece incessantemente, não te canses, (Não sabemos qual a utilidade, ó vida, nem sabemos o objetivo, o fim, nem de fato devemos saber, Mas sabemos o trabalho, a necessidade contínua que há de prosseguir, a marcha de paz envolta na morte tanto quanto a guerra continua), Pois as grandes campanhas de paz são tecidas com o mesmo fio metálico, Não sabemos por que nem o que e, contudo, tece, para sempre tece.

Espanha, 1873-74

Saída da escuridão das mais pesadas nuvens, Saída das ruínas feudais e dos esqueletos amontoados de reis, Saída dos velhos destroços europeus, as múmias quebradas, Catedrais arruinadas, palácios em migalhas, tumbas de sacerdotes, Vê, a fisionomia da Liberdade fresca e não escurecida olha para frente; (Um lampejo de teu rosto de Mãe, Colúmbia, Uma luz significativa como a de uma espada, Radiante em tua direção.)  med.00400.462.jpg Nem penses que te esquecemos, maternal; Encoberta que estiveste por tanto tempo? Será que as nuvens hão de se fechar sobre ti outra vez? Ah, mas tu te mostraste para nós — conhecemo-te, Tu nos deste uma prova certeira, um lampejo de ti, Tu esperaste aí como todos os lugares de teu tempo.

Próximo à ampla praia de Potomac

Próximo à ampla praia de Potomac Próximo à ampla praia de Potomac, mais uma vez, língua antiga, (Ainda proferindo, ainda ejaculando, não podes jamais terminar esse murmúrio?) Novamente velho coração, tão alegre, novamente para ti, teu sentido, a primavera plena de vida retornando, Novamente o frescor e os perfumes, novamente o céu de verão da Virgínia, azul cristalino e prata, Novamente a manhã púrpura das montanhas, Novamente a relva imortal, tão silenciosa, verde e suave, Novamente as rosas vermelhas — sangue florescendo. Perfumai este meu livro, ó rosas vermelhas-sangue! Lava sutilmente com tuas águas cada linha, Potomac! Dá-me de ti, ó primavera, antes que eu termine, para que eu possa inserir-te entre estas páginas! Ó manhã púrpura das montanhas, antes que eu termine, de ti! Ó relva imortal, de ti!

Dos longínquos desfiladeiros de Dakota

25 de junho de 1876

Dos longínquos desfiladeiros de Dakota, Terras das ravinas selvagens, os melancólicos Sioux, a longa caminhada solitária, o silêncio, Talvez, hoje, uma triste lamentação, talvez uma nota de clarim pelos heróis. O boletim da batalha, A emboscada dos índios, a astúcia, o ambiente fatal,  med.00400.463.jpg As companhias da cavalaria lutando até o fim em heroísmo implacável, No centro do pequeno círculo, usando seus cavalos chacinados como parapeito, A queda de Custer e de todos os seus oficiais e soldados. Continua ainda a velha, velha lenda de nossa raça, O mais elevado da vida sustentado pela morte, O antigo estandarte perfeitamente mantido, Ó lição oportuna, ó como te acolho com prazer! Quando sentado em dias escuros, Deprimido, aborrecido, através da densidade e da escuridão do tempo, em vão procurando pela luz e pela esperança, De lugares insuspeitos, uma experiência ameaçadora e momentânea, (O sol lá no centro, embora escondido, A vida elétrica para sempre no centro.) Irrompe a luz de um raio. Tu, de graciosos cabelos fulvos em batalha, Vi por um momento, com cabeça ereta, empurrando sempre adiante, suportando uma brilhante espada nas mãos, Agora culminando na morte a esplêndida febre de teus feitos, (Não trago hino fúnebre para eles ou para ti, trago um alegre soneto triunfal), Desesperado e glorioso, sim, na derrota o mais desesperado e o mais glorioso, Depois de muitas batalhas, nas quais nunca rendeste uma arma ou uma cor, Deixando para trás de ti uma doce memória aos soldados, Tu te rendeste.

Antigos sonhos de guerra

No sono, à meia-noite, de muitos rostos de angústia, Com o olhar, em primeiro plano, dos que foram feridos mortalmente (daquele indescritível olhar), Com os mortos tendo em suas costas os braços amplamente estendidos,  med.00400.464.jpg Eu sonho, sonho, sonho. Das cenas da Natureza, campos e montanhas, Dos céus tão cheios de beleza após a tempestade, à noite, a lua tão espectralmente brilhante, Brilhando docemente, brilhando sobre o chão, onde cavamos as trincheiras e acumulamos os montes de terra, Eu sonho, sonho, sonho. Há muito, tudo isso passou, faces e trincheiras e campos, Através da carnificina movi-me com uma serenidade calosa, ou para longe dos caídos, Para frente corri naquele tempo — mas, agora, com suas formas à noite, Eu sonho, sonho, sonho.

Estamenha densamente matizada

Estamenha densamente matizada Estamenha densamente matizada! Bandeira de estrelas! Longa é ainda a tua estrada, profética bandeira — longa é ainda a tua estrada e marcada pela morte sangrenta, Pois o prêmio que vejo resultando ao final é o mundo, Vejo todos os seus navios e portos entretecidos com as tuas linhas, ambicioso estandarte; Sonhadas novamente, as bandeiras dos reis, sustentadas no alto, ostentadas sem rivalidade? Ó apressa-te bandeira do homem comum — ó com passo certo e constante, ultrapassando as altivas bandeiras dos reis, Anda suprema para os céus, símbolo poderoso — corre mais, acima de todos eles, Bandeira de estrelas! Estamenha densamente matizada!

O melhor que vejo em ti

Para U. S. G., que retornou de seu roteiro pelo mundo

O melhor que vejo em ti Não são tuas andanças pelas grandes estradas da história, Sempre realçadas no tempo por quadros de deslumbrantes vitórias de guerra, Ou o fato de teres sentado no lugar em que se sentou Washington, governando em paz,  med.00400.465.jpg Ó tu, o homem que a Europa feudal festejou, em torno de quem a venerável Ásia reuniu-se, Aquele que andou com reis, a passo firme, na caminhada circular pelo mundo; Mas em terras estrangeiras, as tuas caminhadas com reis — Aquelas pradarias soberanas do Oeste, Kansas, Missouri, Illinois, Com milhões de Ohio, de Indiana, companheiros, agricultores, soldados, todos do front, Anonimamente contigo, andando com os reis, a passo firme, na caminhada circular pelo mundo —, Foram todas justificadas.

Espírito que formou este cenário

Escrito em Platte Cañon, Colorado

Espírito que formou este cenário, Essas pilhas de rocha caídas, horrendas e vermelhas, Esses picos que imprudentemente ambicionam os céus, Esses desfiladeiros, essas correntes claras e turbulentas, esse frescor desnudo, Essas agrestes formações informes, por razões autônomas, Conheço-te, espírito selvagem — já, unidos, comungamos, Minhas também são tais formações agrestes, por razões autônomas; Não foi dito sobre os meus cantos que eles se afastaram da arte? Que deixei de fundir dentro deles as regras da precisão e da delicadeza? Que a pulsação comedida do lirista, a graça do templo ornamentado,que as colunas e os arcos polidos foram esquecidos? Mas tu revelaste aqui — espírito que formou este cenário, Que meus cantos lembraram-se de ti.

Quando ando, nestes dias majestosos

Quando ando, nestes dias majestosos banhados de paz, (Pois a guerra, a porfia de sangue terminara, e por essa razão, ó ideal terrífico, Contra grande improbabilidade, tendo, há um momento, vencido com glória,  med.00400.466.jpg Agora andas vigorosamente, contudo talvez na direção de guerras mais densas, quando a hora chegar, Talvez para te engajares na hora certa em rivalidades ainda mais terríveis, em perigos, Em campanhas mais longas e crises, em trabalhos mais difíceis que todos os demais.) Em minha volta, ouço aquela notoriedade do mundo, política, produção, Os anúncios das coisas reconhecidas, a ciência, O incentivado crescimento das cidades e a disseminação dos inventos. Vejo os navios (eles durarão alguns anos), As grandes fábricas com seus capatazes e empregados, E ouço a aprovação a tudo isso, e a isso não me oponho. Mas também anuncio coisas sólidas, Ciência, navios, política, cidades, fábricas não são nulos, Como uma grande procissão musical, com o som que se derrama das cornetas ao longe, movendo-se em triunfo, e erguendo-se a uma visão maior, Elas representam as realidades — tudo está como deveria ser. Então, minhas realidades; O que será tão real quanto o que é meu? Liberdade e a média divina, libertação para todos os escravos na face da terra, As promessas arrebatadoras e a iluminação dos videntes, o mundo espiritual, as canções duradouras deste século, E nossas visões, as visões dos poetas, o anúncio mais sólido que quaisquer outros.

Uma meia-noite clara

Uma meia-noite clara Esta é a tua hora, ó alma, teu vôo livre na ausência de palavras, Longe dos livros, longe da arte, o dia esquecido, o dever cumprido, Tu emergindo plena, silenciosa, contemplativa, refletindo sobre os temas que mais amas, A noite, o sono, a morte e as estrelas.
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Canções de despedida

À medida que a hora se aproxima

À medida que a hora se aproxima, uma nuvem ameaçadora, Um terror do outro mundo que desconheço, obscurece-me. Devo avançar, Hei de atravessar os Estados por um momento, mas não posso dizer até onde ou por quanto tempo, Talvez bem cedo, de dia ou à noite, enquanto eu estiver cantando, minha voz venha a cessar de repente. Ó livro, ó cantos! Deverá tudo somado resultar apenas nisso? Devemos mal chegar a este início de nós? — e contudo é suficiente, ó alma; Ó alma, positivamente nós surgimos — é o suficiente.

Anos de modernidade

Anos de modernidade! Anos do não levado a termo! Teus horizontes erguem-se, vejo-os despedirem-se rumo a dramas mais puros, Não vejo apenas a América, não apenas a nação da Liberdade, mas outras nações se preparando, Vejo tremendas entradas e saídas, novas combinações, a solidariedade das raças, Vejo aquela força avançando com poder irresistível no palco do mundo, (Será que as antigas forças, as antigas guerras, cumpriram seus papéis? Concluíram-se adequadamente os seus atos?)  med.00400.468.jpg Vejo a Liberdade, completamente armada e vitoriosa e muito orgulhosa, tendo a Lei de um lado e a Paz do outro, Um trio estupendo tudo produzindo adiante contra a idéia da casta; Que históricos desenredos são esses dos quais tão rapidamente nos aproximamos? Vejo homens marchando e contramarchando com rapidez, aos milhões, Vejo rompidas as fronteiras e os limites das velhas aristocracias, Vejo removidos os marcos divisórios dos reis europeus, Vejo, neste dia, o povo elaborando o seu marco divisório (todos os demais se desfazem); Nunca questões tão agudas foram levantadas como neste dia, Nunca foi o homem comum, sua alma, mais enérgico, mais como um Deus, Vê, como ele se apressa e se apressa, sem permitir que as massas descansem! Seu pé audaz está em toda parte da terra e do mar, ele coloniza o Pacífico, os arquipélagos, Com o navio a vapor, com o telégrafo elétrico, o jornal, os motores de guerra em quantidade, Com isso e com a disseminação das fábricas pelo mundo, ele interliga toda a geografia, conecta todas as terras; Que sussurros são esses, ó terras, correndo adiante de vós, passando no fundo dos mares? Estão todas as nações comungando? Haverá um único coração no globo? Está a humanidade se organizando em massa? Pois vê! — tiranos tremem, coroas empalidecem, A terra, descansando, confronta uma nova era, talvez uma guerra divina geral, Ninguém sabe o que virá a seguir, tais são as potências que enchem os dias e as noites; Anos proféticos! O espaço adiante em que me movo, quando tento em vão penetrá-lo, ele está cheio de fantasmas, Feitos não nascidos, coisas que em breve serão, projetam sua sombra em minha volta, Essa correria e esse calor incríveis, essa estranha e extática febre de sonhos, ó anos! Teus sonhos, ó anos, como eles penetram através de mim! (Não sei se durmo ou se estou desperto);  med.00400.469.jpg A América e a Europa já realizadas empalidecem, retirando-se nas sombras atrás de mim, As não realizadas, mais gigantescas do que nunca, avançam, avançam sobre mim.

Cinzas dos soldados

Cinzas dos soldados do Sul e do Norte, Quando medito em retrospectiva, cantarolando em pensamento, A guerra retoma uma vez mais, e tuas formas aparecem aos meus sentidos, E novamente o avanço dos exércitos. Silenciosos como as brumas e os vapores, Erguendo-se de seus túmulos nas trincheiras, De cemitérios disseminados por toda a Virgínia e o Tennessee, De todos os ponteiros das bússolas dos túmulos incontáveis, Em nuvens flutuantes, em grandes miríades, ou em esquadrões de dois ou três ou sozinhos eles vêm, E em silêncio se reúnem em minha volta. Não toqueis agora uma nota sequer, ó trombeteiros, Não na vanguarda de minha cavalaria, desfilando em cavalos corajosos, Com sabres desembainhados e cintilantes, e carabinas em suas coxas (ah, meus corajosos cavaleiros! Meus belos cavaleiros de rostos bronzeados! Que vida, que alegria e orgulho, Com todos os perigos que foram os vossos.) Nem vós, tocadores de tambor, nem na hora do toque da alvorada, Nem o longo toque de tambor advertindo o acampamento, nem mesmo o toque abafado por um enterro, Nada de vós desta vez, ó tocadores de tambor que carregam meus tambores de guerra. Mas afora isso e os empórios de riqueza e os passeios públicos lotados, Acolhendo em torno de mim os companheiros próximos, aqueles que não podem ser vistos pelos demais e não têm voz,  med.00400.470.jpg Os mortos reanimados e reavivados, a poeira e os escombros revividos, Eu canto este canto de minha alma silenciosa em nome de todos os soldados mortos. Rostos tão pálidos com olhos maravilhosos e muito queridos, chegai-vos mais perto, Aproximai-vos, mas não faleis. Fantasmas de perdidos incontáveis, Invisíveis aos demais, doravante transformai-vos em meus companheiros, Segui-me sempre — não me abandoneis enquanto eu estiver vivo. Doces são as bochechas florescentes dos vivos — doces são as vozes musicais soando, Mas doces, ah! doces são os mortos com seus olhos silentes. Queridíssimos companheiros, tudo terminou há muito, Mas o amor não terminou — e que amor, ó companheiros! Perfume dos campos de batalha erguendo-se, desprendendo-se do fedor. Perfumai, portanto, o meu canto, ó amor, amor imortal, Dai-me, para que eu me banhe nelas, as lembranças de todos os soldados mortos, Vesti-os com uma mortalha, embalsamai-os, revesti-os completamente com um orgulho suave. A todos perfumai — fazei-os inteiros, Fazei com que essas cinzas sejam nutridas e floresçam, Ó amor, a todos dissolvei, fazei com que todos frutifiquem com a química mais apurada. Concedei-me a incansabilidade, fazei de mim uma fonte, Fazei com que eu exale o amor de mim mesmo, onde quer que eu vá, como um orvalho perene, Pelas cinzas de todos os soldados mortos do Sul ou do Norte.
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Pensamento

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Destes anos eu canto, De como eles se passam e de como se passaram através de dores convulsivas, como através de partos, De como a América ilustra o nascimento, a juventude musculosa, a promessa, a certeza de auto-realização, o sucesso absoluto, a despeito das pessoas — ilustra o mal tanto quanto o bem, A veemente luta tão ameaçadora pela unidade; Quantos ainda se apegam desesperadamente aos modelos que se foram, às castas, aos mitos, à obediência, à compulsão, e à infidelidade, Quão poucos os que enxergam a chegada dos novos modelos, os atletas, os estados do Oeste ou a liberdade ou a espiritualidade, ou têm qualquer fé nos resultados, (Mas eu vejo os atletas e vejo os resultados da guerra gloriosa e inevitável, e novamente conduzindo a outros resultados.) Como aparecem as grandes cidades — as massas democráticas, turbulentas, obstinadas, tal como eu as amo, De como o giro, a disputa, a luta corporal do mal e do bem, o soar e o ressoar, continua e continua, De como a sociedade espera uniformizada e está, por agora, entre as coisas que se foram e as que acabam de se iniciar, De como a América é o continente das glórias, e do triunfo da liberdade e das Democracias e dos frutos da sociedade, e tudo o que teve início, E de como os Estados estão completos em si mesmos — e de como todos os triunfos e glórias estão completos em si mesmos, para conduzir adiante, E de como estes meus e os dos Estados, por sua vez, hão de ser convulsionados e serão úteis a outros partos e a outras transições, E de como todos os povos, as visões, as combinações e as massas democráticas também serão úteis — e de como cada fato e a própria guerra, com todos os seus horrores, serão úteis, E de como agora, a qualquer momento, cada um é útil para a delicada transição da morte.
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De sementes caindo no solo dos nascimentos, Da estável concentração da América, no interior, para cima, nos lugares impregnáveis e populosos, Do que Indiana, Kentuchy, Arkansas e os demais, hão de ser, Do que em alguns anos aparecerá lá em Nebraska, Colorado, Nevada e nos outros lugares, (Ou distante, subindo para o Pacífico Norte para Sitka ou Aliaska,) De que a folhagem da América é a preparação — e de que todos os lugares, Norte, Sul, Leste e Oeste são, Desta União selada em sangue, do preço solene que foi pago, e do anônimo que foi perdido, sempre presente em minha mente; Do uso temporário de materiais em nome da identidade, Do presente, que passa, que se despede — da evolução de homens mais completos do que os que já viveram, De todas as inclinações para baixo, lá onde como uma mãe fresca e generosa o Mississippi flui, De poderosas cidades do interior ainda não conhecidas e insuspeitas, Dos novos e bons nomes, os modernos desenvolvimentos, de domicílios inalienáveis, De uma vida livre e original lá, de dieta simples e limpa e de sangue doce, De flexibilidade, rostos majestosos, olhos claros, e físico perfeito, lá, De imensos resultados espirituais nos anos futuros do Oeste, em cada lado do Anahuacs, Destas canções, bem compreendidas, lá (sendo compostas para aquela área) De desprezo nativo pela densidade e pelo ganho, lá, (Ó ele me espreita dia e noite — que ganho existe, afinal, para a crueldade e para a liberdade?)

Canção do crepúsculo

Esplendor do dia terminado, flutuando e alimentando-me, Hora profética, hora que retoma o passado, Inflando minha garganta, tu, divina média, Tu, terra e vida, até que eu cante o último clarão do raio. Abre a boca de minha alma exprimindo alegria,  med.00400.473.jpg Olhos de minha alma enxergando a perfeição, Vida natural de mim louvando fielmente as coisas, Corroborando para sempre para o triunfo das coisas. Ilustres são todos! Ilustre é aquilo que denominamos espaço, esfera de espíritos incontáveis, Ilustre o mistério da locomoção em todos os seres, mesmo no mais minúsculo inseto, Ilustre é o atributo da fala, os sentidos, o corpo, Ilustre é a luz que passa — ilustre o reflexo pálido sobre a lua nova no céu do oeste, Ilustre é tudo o que vejo ou ouço ou toco, até o último. O bom está em tudo, Na satisfação e no autodomínio dos animais, No retorno anual das estações, No júbilo da juventude, Na força e no ardor da virilidade, Na grandiosidade e na delicadeza da idade senil, Nas soberbas visões da morte. Maravilhoso é partir! Maravilhoso é estar aqui! O coração injeta o sangue homogêneo e inocente! Respirar o ar, que delicioso! Falar — andar — capturar algo com as mãos! Preparar-se para dormir, ir para a cama, olhar para a minha carne de coloração rosada! Estar consciente de meu corpo, tão satisfeito, tão grande! Ser este incrível Deus que sou! Ter ido adiante entre outros Deuses, esses homens e mulheres que amo. Maravilhosa a forma como te celebro e celebro a mim mesmo! De como meus pensamentos fazem parte sutil dos espetáculos em torno! De como as nuvens passam acima de nossas cabeças silenciosamente! De como a terra se lança mais e mais! E de como o sol, a lua, as estrelas se lançam mais e mais! De como a água canta e brinca! (certamente ela está viva!)  med.00400.474.jpg De como as árvores se levantam e ficam de pé, com troncos fortes, com galhos e folhas! (Certamente há um "algo mais" em cada uma das árvores, alguma alma vivente.) Espanto das coisas — até mesmo da menor das partículas! Ó espiritualidade das coisas! Ó força musical fluindo pelas idades e continentes, agora me alcançando na América! Eu tomo as tuas cordas fortes, tranço-as e passo-as à frente com grande vibração. Eu também cantarolo o sol, atrasado ou ao meio-dia, ou como agora, pondo-se, Eu também pulso com a inteligência e a beleza da terra e com tudo o que cresce na terra, Eu também senti o irresistível chamado de mim mesmo. Quando desci o Mississippi num barco a vapor, Quando devaneei pelos prados, Quando vivi, quando olhei através das janelas de meus olhos, Quando avancei na manhã, na hora em que contemplei a luz surgindo do Leste, Quando me banhei na praia do Mar do Leste, e mais uma vez na praia do Mar do Oeste, Quando vaguei pelas ruas do interior de Chicago, quaisquer qu sejam as ruas pelas quais eu tenha vagado, Ou cidades ou florestas silenciosas, ou mesmo em meio aos sítios de guerra, Onde quer que eu tenha estado, encarreguei-me de satisfação e triunfo. Canto o paroxismo das igualdades modernas ou antigas, Canto os finalés infinitos das coisas, Digo que a Natureza continua, que a glória continua, Louvo com elétrica voz, Pois não vejo uma única imperfeição no universo, E ao final não vejo uma causa ou efeito lamentável no universo. Ó sol que se põe! Embora o tempo tenha chegado, Ainda canto sob ti, se ninguém mais o faz, nessa adoração irrestrita.
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Igualmente em teus portais, morte

Igualmente em teus portais, morte, Adentrando teu solo soberano, escuro, ilimitável, Para as memórias de minha mãe, para a divina mistura, para a maternidade, Para ela, sepultada e distante e, contudo, não sepultada, não desligada de mim, (Vejo outra vez o benigno rosto calmo ainda fresco e lindo, Sento-me ao lado da forma no esquife, Beijo e beijo convulsivamente outra vez os velhos doces lábios, as faces, os olhos fechados no caixão.) Para ela, a mulher ideal, prática, espiritual, o amor que para mim é o melhor de toda a terra, Imprimo uma linha monumental, antes de ir, entre estas canções, E aqui estabeleço uma lápide.

Meu legado

O homem de negócios de vastas aquisições, Depois de árduos anos fazendo levantamento de resultados, preparando-se para a partida, Lega casas e terras para seus filhos, deixa ações como herança, bens, fundos para uma escola ou hospital, Deixa dinheiro para certos companheiros, para que comprem lembranças, souvenirs de pedras preciosas e ouro. Mas eu, fazendo o levantamento de minha vida, fazendo o fechamento, Com nada para apresentar, para legar de meus anos preguiçosos, Nem casas, nem terras, nem lembranças de pedras preciosas ou ouro para os meus amigos, Contudo, certas lembranças da guerra deixo para ti e para os que virão, E pequenos souvenirs de acampamentos e soldados, com meu amor, Encaderno e deixo como herança este feixe de canções.
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Melancólico ao meditar sobre a morte dela

Melancólico ao meditar sobre a morte dela, ouvi a Mãe de Todos, Em desespero sobre os corpos dilacerados, meditando sobre as formas que cobrem os campos de batalha. (Quando a última arma cessou, mas o cheiro da fumaça de pólvora permanecia) Quando ela chamou por sua terra com voz entristecida, enquanto se aproximava em silêncio, Absorve-os bem, ó minha terra, ela bradou, encarrego-te de não perder meus filhos, de não perder um único átomo, E vós, riachos, absorvei-os bem, levando deles o sangue querido, E vós, manchas locais, e vós, ares que nadam acima, levemente impalpáveis, E todos vós, essências de solo e crescimento, e vós, profundezas de meus rios, E vós, encostas das montanhas, e vós, florestas tingidas de vermelho pelo sangue que goteja de meus queridos filhos, E vós, árvores, que em vossas raízes profundas legareis o mesmo sangue para todas as árvores futuras, Meus mortos absorvei no Sul ou no Norte — absorvei os corpos de meus homens jovens, e seu sangue precioso, precioso, O qual, guardando-o em confiança, devolvei-me fielmente dentro de muitos anos, Na essência invisível e no odor da superfície e da relva, dentro de séculos, Nos ares que vêm soprados dos campos, os meus queridos devolvei- me, dai-me os meus heróis imortais, Exalai-os para mim daqui a séculos, respirai-me as suas respirações, não deixeis que um único átomo se perca, Ó anos e túmulos! Ó ar e solo! Ó meus mortos, um doce aroma! Exalai-os para a perenemente doce morte, daqui a anos, daqui a séculos.

Acampamentos verdes

Não solitário naqueles acampamentos de brancos, velhos companheiros de guerras, Quando, dada a ordem de avanço, após uma longa marcha,  med.00400.477.jpg Com os pés doloridos e o cansaço, logo que a luz do dia diminui, paramos para a noite, Alguns de nós tão fatigados, carregando a arma e a mochila, caem para dormir em nossas trilhas, Outros armam as pequenas tendas, e os fogos acesos começam a lançar faíscas, Paliçadas em postos avançados estabelecidas para alertar em meio à escuridão, E uma palavra fornecida para a senha, cuidado ou segurança, Até o toque alto dos tambores na alvorada, Levantamo-nos renovados, passados pela noite e pelo sono, e retomamos nossa jornada, Ou nos encaminhamos para a batalha. Repara, os acampamentos das tendas verdes, Que os dias de paz vão preenchendo e os dias de guerra vão preenchendo, Com um exército místico (é ele também ordenado a avançar? Está ele também parado apenas por um momento, Até que a noite e o sono passem?) Agora, naqueles acampamentos verdes, naquelas tendas que pintam o mundo, Os pais, os filhos, os maridos, as esposas, nelas, os velhos e os jovens, Dormindo sob a luz do sol, dormindo sob a luz da lua, satisfeitos e silenciosos ali, afinal, Observa o poderoso campo de bivaque e acampamento de espera de todos, De todas as corporações e generais, e o Presidente sobre as corporações e todos os generais, E de cada um de nós, ó soldados, e de cada um e de todos nas fileiras em que lutamos, (Ali, todos nós, sem ódio, encontramo-nos). Pois atualmente, ó soldados, nós também acampamos em nosso lugar no acampamento verde de bivaque, Mas não precisamos de paliçadas em postos avançados, nem de uma palavra como senha, Nem daqueles que tocam os tambores para anunciar a manhã.
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O soluçar dos sinos

(Meia-noite, 19 e 20 de setembro de 1881)

O soluçar dos sinos, as repentinas notícias de morte em toda parte, Os dorminhocos despertam, a comunicação do Povo, (Muito bem conhecem aquela mensagem no escuro, Muito bem respondem, reagem dentro de seus peitos, de seus cérebros, as tristes reverberações,) O apaixonado toque dos sinos e o retinir — cidade para cidade, unindo-se, soando, passando, Aquelas batidas do coração de uma nação durante a noite.

Quando eles se aproximam do fim

Quando eles se aproximam do fim, Daquilo que está subjacente às canções precedentes — de minhas metas que estão nelas, Da semente que procurei nelas plantar, De alegria, doce alegria, através de muitos anos, nelas, (Por elas, por elas eu vivi, nelas minha obra está completa) De muitas aspirações afetuosas, de muitos sonhos e planos; Fundidos em uma canção através do Espaço e do Tempo e da eterna identidade que flui, Para a Natureza que esses abarca, abarcando Deus — para todos os prazenteiros, os elétricos, Para o sentido da Morte, e aceitando, exultando na Morte por sua vez o mesmo tanto que na vida, A iniciação do homem nas canções; Para fazer-te sólido, fendendo-te em diversas vidas, E estabelecer uma conexão com as montanhas e rochas e riachos, E os ventos do norte, e as florestas de carvalho e os pinheiros, Contigo, ó alma.

Alegria, colega de bordo, alegria!

Alegria, colega de bordo, alegria! (Satisfeito com minha alma, à morte eu brado), Nossa vida está terminada, nossa vida começa,  med.00400.479.jpg O tempo longo, longo, de ancoragem deixamos, Enfim, o navio está vazio, ele salta! Prontamente se afasta do litoral, Alegria, colega de bordo, alegria!

O desejo inenarrável

O desejo inenarrável O desejo inenarrável pela vida e a terra nunca assegurada, Agora, viajante, navega adiante para procurar e encontrar.

Portais

Qual é o destino dos que estão no conhecido senão o de elevar-se e adentrar o Desconhecido? E qual o destino dos que vivem senão a Morte?

Estes cânticos

Estes cânticos cantados para estimular minha passagem pelo mundo que vejo, Para que sejam completos, eu os dedico ao Mundo Invisível.

Agora finale para a margem

Agora finale para a margem Agora terra e vida finale e adeus, Agora, Viajante, parte (muito, muito ainda para ti está por vir), Com freqüência tens te aventurado o suficiente sobre os mares, Cuidadosamente viajando, estudando os mapas, Retornando oportunamente ao porto e aos nós das amarras; Mas agora obedece teu acalentado desejo secreto, Abraça teus amigos, deixa tudo em ordem, Não mais retornando ao porto e aos nós das amarras, Parte em tua viagem infinita, velho Marinheiro.
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Até breve!

Para terminar, anuncio o que vem depois de mim. Lembro-me de ter dito antes que minhas folhas brotariam totalmente, Eu ergueria minha voz aprazível e forte com referência às consumações. Quando a América fizer o que foi prometido, Quando através destes Estados andarem cem milhões de pessoas soberbas, Quando os demais partirem, deixando as pessoas extraordinárias e apoiando-as, Quando gerações das mais perfeitas mães denotarem a América, Então haja para mim e para os meus a nossa devida fruição. Pressionei para entrar por meu direito próprio, Cantei o corpo e a alma, a guerra e a paz cantei e as canções da vida e da morte, E as canções do nascimento e mostrei que há muitos nascimentos. A todos ofereci o meu estilo, jornadeei com passos confiantes; E enquanto meu prazer ainda é total, sussurro Até breve! E tomo as mãos da jovem mulher e do jovem homem pela última vez. Anuncio a elevação das pessoas naturais, Anuncio a justiça triunfante, Anuncio a liberdade e a eqüidade sem comprometimentos, Anuncio a justificação da candura e a justificação do orgulho. Anuncio que a identidade destes Estados é uma única identidade singular, Anuncio a União mais e mais consolidada, indissolúvel, Anuncio os esplendores e a majestade que farão todas as políticas prévias da Terra parecerem insignificantes. Anuncio a adesão, digo que há de ser ilimitada, solta, Digo que ainda hás de encontrar o amigo por que procuravas, Anuncio um homem ou mulher vindo, talvez sejas tu (Até breve!), Anuncio o grande indivíduo, fluido como a Natureza, casto, afetuoso, compassivo, inteiramente armado.  med.00400.481.jpg Anuncio uma vida que há de ser copiosa, veemente, espiritual, ousada, Anuncio um fim que há de encontrar com leveza e alegria a sua tradução. Anuncio miríades de jovens, cheios de beleza, gigantescos, de sangue doce, Anuncio uma raça de esplêndidos e selvagens homens velhos. Ó mais densos e mais rápidos — (Até breve!) Ó aglomerando-se perto demais sobre mim, Prevejo algo demasiado, algo que significa mais do que eu imaginava, Parece-me que estou morrendo. Apressa-te, garganta, e soa o que está no fim, Saúda-me — saúda os dias uma vez mais. Faz ressoar o velho brado uma vez mais. Gritando com eletricidade, usando a atmosfera, Lançando olhares a esmo, absorvendo tudo o que noto, Continuo prontamente, mas desço por um momento, Entregando curiosas mensagens embrulhadas, Quentes faíscas, sementes etéreas que caem na poeira. Eu mesmo sem conhecê-las, obedecendo minha missão, sem jamais ousar questioná-la, Para as eras e eras futuras, contudo, o desenvolvimento das sementes deixando, Erguendo-me para as tropas retiradas da guerra, promulgando para eles as tarefas que tenho, Para as mulheres legando certos sussurros de mim, suas afeições por mim mais claramente explicando, Para rapazes meus problemas oferecendo — eu sem brincadeiras — testando os músculos de seus cérebros, Então passo, vocal por algum tempo, visível, contrário, Mais tarde um eco melodioso, para ele me curvando apaixonadamente (a morte fazendo-me realmente imorredouro), O melhor de mim então, quando não mais visível, no rumo daquilo para o que venho me preparando sem cessar. E o que há mais, a não ser o fato de que demoro e paro e faço reverência e me estendo com a boca não fechada?  med.00400.482.jpg Haverá um singelo adeus final? Cessam minhas canções, eu as abandono, Por detrás da tela onde me escondo, avanço pessoalmente apenas para ti. Companheiro, este não é um livro, Aquele que toca isto toca um homem, (Será noite? Estamos juntos aqui, sozinhos?) Eu sou aquele que abraças e aquele que te abraça, Eu salto destas páginas para dentro de teus braços — a morte me chama. Ó como teus dedos me entorpecem, Tua respiração cai em torno de mim, tal como o orvalho, teu pulso embala os tímpanos de meus ouvidos, Sinto-me imerso da cabeça aos pés, É delicioso, basta. Basta, ó feito improvisado e secreto, Basta, ó presente deslizante — basta, ó passado resumido. Querido amigo, quem quer que sejas, leva este beijo, Dou-o especialmente a ti, não me esqueças, Sinto-me como aquele que realizou o seu trabalho durante o dia e que se retira por um tempo, Recebo agora novamente de minhas muitas interpretações, de meus avatares ascendendo, enquanto outros sem dúvida esperam por mim, Uma esfera desconhecida mais real do que a que sonhei, mais direta, lança raios despertadores sobre mim, Até breve! Lembra-te de minhas palavras, posso novamente retornar, Amo-te, deixo a materialidade, Sou eu um desencarnado, triunfante, morto.
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Primeiro anexo: Areias nos setenta

Mannahatta

O nome adequado e nobre de minha cidade retomado, Escolha de nome aborígine, com maravilhosa beleza, significado, Uma ilha rochosa fundada — praias em que sempre batem festivamente as rápidas ondas do mar que vêm e vão.

Paumanok

Beleza do mar! Esticada e se aquecendo ao sol! Um lado banhado por teu oceano interno, largo, com comércio abundante, barcos a vapor, veleiros, E o outro acariciado pelos ventos do Oceano Atlântico, ameaçador ou gentil — poderosas armações deslizando nas trevas, na distância. Ilha de regatos doces de água potável — ar saudável e solo! Ilha de praia salina e brisa e salmoura!

De Montauk Point

Ergo-me como que sobre algum poderoso bico de águia, Absorvendo o mar que está a leste, examinando (nada além de mar e de céu), As ondas se lançando, a espuma, os navios na distância, A inquietude selvagem, as brancas, encrespadas cristas — aquele ímpeto esperado e esperado das ondas, Para sempre procurando a orla.
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Para aqueles que falharam

Para aqueles que falharam, em vasta aspiração, Para soldados anônimos caídos no front, na vanguarda, Para calmos, devotados engenheiros — para os viajantes excessivamente ardentes — para os timoneiros em seus navios, Para muitos uma canção arrogante e quadro sem reconhecimento — eu erigiria um monumento laureado, Alto, alto acima dos demais — para todos os interrompidos antes de seu tempo, Possuídos por algum estranho espírito de fogo, Extintos por uma morte prematura.

Um cântico encerrando sessenta e nove

Um cântico encerrando sessenta e nove — um resumé — uma repetição, Minhas linhas prosseguindo nas mesmas alegrias e esperanças, De ti, ó Deus, Vida, Natureza, Liberdade, Poesia; De ti, minha Terra — teu rio, prados, Estados — tu, Bandeira matizada que amo, Teus agregados inteiramente retidos — do norte, do sul, do leste e do oeste, teus itens todos; De mim mesmo — o coração aprazível batendo ainda em meu peito, O corpo naufragado, velho, pobre, paralisado — a estranha inércia caindo como uma mortalha em torno de mim, Correndo em meu sangue indolente, os fogos ardentes que ainda não se extinguiram, A fé não diminuta — os grupos de amorosos amigos.

Os soldados mais corajosos

Corajosos, corajosos foram os soldados (hoje de renome) que viveram através da luta; Contudo os mais corajosos avançaram para o front e caíram, anônimos, desconhecidos.
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Uma fonte de tipo

Este meu potencial — essas vozes não lançadas — poderes apaixonantes, Ira, discussão ou louvor, ou cômico olhar de soslaio, ou prece devota, (Não incomparável, corpo, burguês, mera cartilha mais longa) Esses oceanos que se erguem para a fúria e para a morte, Ou amainados em calmaria e sol reluzente e sono, Dentro das pálidas fendas, dormitando.

Quando aqui me sento para escrever

Quando aqui me sento para escrever Quando aqui me sento para escrever, doente e envelhecido, O meu fardo menor não é o enfado dos anos, não são as dúvidas, Nem o desalento sem graça, as dores, a letargia, a constipação, a lamúria, o tédio, Eis o filtro de minhas canções cotidianas.

Meu canário

Nós consideramos grandioso, ó alma, penetrar os temas de livros poderosos, Absorvendo profunda e plenamente o que vem de pensamentos, peças, especulações? Mas agora, de ti para mim, pássaro engaiolado, sentir o teu gorjeio alegre, Enchendo o ar, a solidão da sala, a longa manhã, Não tem a mesma grandeza, ó alma?

Perguntas para o meu septuagésimo ano

Avizinhas-te, aproximas-te, curioso Embora obscuro, espectro incerto — trazes a vida ou a morte? Força, fraqueza, cegueira, mais paralisia e peso maior? Ou plácidos céus e sol? Agitarás levemente as águas ainda? Acaso hás de podar-me para sempre? Ou deixar-me-ás aqui como agora?  med.00400.486.jpg Apático, tal qual um papagaio velho, cantando com voz de taquara rachada, guinchando?

Os mártires de Wallabout

Maior que a memória de Aquiles ou Ulisses, Mais, muito mais há em ti do que na tumba de Alexandre, Nessas cargas de cinzas sepulcrais, escamas e estilhaços de ossos bolorentos, Que já foram homens vivos — que já foram coragem decidida, aspiração, força, Os degraus para o que és hoje e aqui, América.

O primeiro dente-de-leão

O primeiro dente-de-leão Simples e fresco e belo, do final do inverno emergindo, Como se nenhum artifício de moda, negócios, política, já houvesse existido, À frente de seu recanto ensolarado abrigado na relva — inocente, dourado, calmo como a alvorada, O primeiro dente-de-leão da primavera apresenta seu rosto confiável.

América

Centro de iguais filhas, iguais filhos, Todos, todos semelhantemente encarecidos, crescidos, não crescidos, jovens ou velhos, Fortes, amplos, belos, resistentes, capazes, ricos,  med.00400.487.jpg Perenes com a Terra, com a Liberdade, com a Lei e com o Amor, Uma grande, saudável, elevada, Mãe estabelecida, Assentada sobre o diamante do Tempo.

Memórias

Quão doces as descobertas silenciosas do passado! Peregrinações como que em sonhos — a meditação de velhos tempos retomados — seus amores, alegrias, pessoas, viagens.

Hoje e tu

Os vencedores designados em um jogo estendido; O curso do Tempo e das nações — Egito, Índia, Grécia e Roma; O passado inteiro, com todos os seus heróis, histórias, artes, experimentos, O seu estoque de canções, investigações, viagens, professores, livros, Armazenados por agora e por ti — para pensares neles! A herança toda converge em ti!

Depois da fascinação do dia

Depois que a fascinação do dia passa, Apenas a escuridão, a noite escura apresenta aos meus olhos as estrelas; Depois do clangor majestoso do órgão, ou do coro, ou da banda perfeita, Silente, minha alma oblíqua, move a verdadeira sinfonia.

Abraham Lincoln nascido em 12 de fevereiro de 1809*

Hoje, de cada um e de todos, um sopro de prece — uma pulsação de pensamento, Pela memória Dele — pelo nascimento Dele.
Publicado em 12 de fevereiro de 1888.  med.00400.488.jpg

Selecionado dos espetáculos de maio

Pomares de maçã, as árvores todas cobertas com botões; Campos de trigo atapetados na distância e próximos em verde esmeralda vital; O eterno, inexaurível frescor de cada início de manhã; A amarela, dourada, transparente névoa da quente tarde de sol, Os arbustos aspirantes de lilases com profusas flores púrpuras ou brancas.

Dias Serenos

Não apenas de um amor bem-sucedido, Nem riqueza, nem honra da meia-idade, nem vitórias políticas ou de guerra; Mas quando a vida míngua e todas as paixões turbulentas se acalmam, Quando deslumbrantes, vaporosos, silenciosos matizes cobrem o céu no início da noite, Quando a maciez, a plenitude, o repouso, se espalham pelo quadro, como um ar mais fresco e mais balsâmico, Quando os dias assumem uma luminosidade mais branda e a maçã está, finalmente, dependurada, pronta e indolentemente madura na árvore, Então para os dias produtivos mais quietos, os mais felizes de todos! Os serenos dias férteis e bem-aventurados!

Fantasias em Navesink

O timoneiro na neblina

Navegando a vapor pelas correntezas setentrionais — (uma antiga lembrança do St. Lawrence, Um repentino lampejo de memória retorna, não sei por quê, Aqui, esperando pelo nascer do sol, contemplando do alto desta montanha)* Navesink: a entrada inferior de uma encosta marítima da Baía de Nova Iorque. (N. do E.)  med.00400.489.jpg Outra vez, pela manhã — uma pesada neblina em disputa com o amanhecer, Outra vez a nau estremecida e lutadora desvia-se de mim — eu avanço através das rochas batidas pela espuma que quase me tocam, Outra vez registro o lugar em que na popa o pequeno e magro timoneiro indiano Aparece em meio à bruma, com rosto elevado e mão dominadora.

Se pudesse escolher

Se pudesse escolher os maiores bardos para registrá-los, Para desenhar os seus retratos grandiosos, lindos, e seguir os seus exemplos à vontade, Homero com todas as suas guerras e guerreiros — Heitor, Aquiles, Ajax, Ou Shakespeare, emaranhado em aflições, Hamlet, Lear, Otelo — as belas damas de Tennyson, Com o melhor engenho e a melhor métrica os melhores, ou escolha de conceitos para esgrimir em rima perfeita, deleite dos cantores; Esses, esses, ó mar, todos esses eu barganharia alegremente: Transferirias para mim o teu ardil, ondulação de uma onda, Ou soprarias um sopro dos teus sobre meus versos, E deixaria o teu odor ali!

Vós, marés, com perfume incessante

Vós, marés, com perfume incessante! Vós, poderes que fazeis esta obra! Vós, forças invisíveis, centrípetas, centrífugas, espargidas pelo espaço, Harmonia do sol, da lua, da terra, e de todas as constelações, Quais são as vossas mensagens de estrelas distantes para nós? Quais Sírius? Quais Capela? Que coração central — e que pulso — dá vida a tudo? Que ilimitado conjunto de tudo? Que sutil simulação e significado em vós? Que pistas para tudo existe em vós? Que fluidos, que vasta identidade, Sustentando a unidade do universo com todas as suas partes — como se ele navegasse em um navio?
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Fim do refluxo e a luz do dia minguando

Fim do refluxo e a luz do dia minguando, Frescor marítimo perfumado em direção à terra, cheiros de carriço e sal chegando, Com muita meia voz enviada dos remoinhos, Muitas confissões camufladas — muitas palavras soluçadas e sussurradas, Como que de falantes distantes ou recônditos. Como se arrastam para baixo e para fora! Como resmungam! Poetas anônimos — artistas maiores que quaisquer outros, com acalentados desígnios perdidos, Indiferença do amor — um coro de queixas das eras — as últimas palavras da esperança, Algum brado desesperado de suicida, Vou embora para o deserto ilimitado, e nunca mais retornarei. Para o olvido, então! Adiante, adiante, e faças tua parte, sepultando-te, refluxo da maré, Adiante na tua hora, tu, furiosa desaguada!

E contudo não apenas tu

E contudo não apenas tu, crepúsculo e sepultado refluxo da maré, Nem vós, vós, desígnios perdidos sozinhos — nem falhas, nem aspirações; Eu vos conheço — vós que vos disfarçais em divinos — vossa aparência de deslumbramento; Devidamente por vós, de vós, a maré e a luz outra vez — virando devidamente as dobradiças, Devidamente, as necessárias partes em desarmonia se afastando, se misturando, Tecendo a partir de vós, a partir do Sono, da Noite, da própria Morte, O ritmo do eterno Nascimento.

Orgulhosamente, chega a inundação

Orgulhosamente, chega a inundação Orgulhosamente, chega a inundação, bradando, espumando, avançando,  med.00400.491.jpg Por longo tempo ela se sustenta nas alturas, com largo seio mais intumescendo, Todas as palpitações, dilatações — as fazendas, as florestas, as ruas das cidades — operários no trabalho, Velas mestras, gáveas, lanças de guindaste, aparecem em alto mar — estandartes de fumaça dos navios a vapor — debaixo do sol matinal, Carregada de vidas humanas, garbosamente amarrada para fora, garbosamente amarrada para dentro, Ostentada em muitos mastros, a bandeira que amo.

Próximo àquela longa esquadra de ondas

Próximo àquela longa esquadra de ondas, eu, chamado à minha consciência, a mim mesmo voltando, Em cada crista, alguma luz ou sombra ondula — alguma recordação, Alegrias, viagens, estudos, silenciosos panoramas — cenas efêmeras, A longa guerra do passado, as batalhas, as visões dos hospitais, os feridos e os mortos, E eu através de todas as etapas do passado — minha juventude indolente — idade avançada à mão, Meus três lustros de vida somados e mais, e o passado, Por quaisquer dos grandes ideais testado, sem intenção, e o conjunto de tudo é nada, E ainda assim uma gota dentro da engrenagem do esquema de Deus — uma onda, ou parte de uma onda, Como uma das vossas, vós, oceano estrondoso.

Então, finalmente

Então, finalmente, captando dessas margens, desta encosta, De vós, ó marés, o místico sentido humano; Somente pela vossa lei, vossa dilatação e retração, abraçando-me igualmente, O cérebro que enforma a voz que canta esta canção.
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Dia de eleição, novembro de 1884

Se eu precisasse escolher, ó Mundo Ocidental, a tua cena mais poderosa para apresentar, Não seria tu, Niagara — nem vós, ilimitadas pradarias — nem vós, imensas fendas dos desfiladeiros, Colorado, Nem tu, Yosemite — nem Yellowstone, com todos aqueles espasmódicos jatos oblíquos de gêiser subindo aos céus, aparecendo e desaparecendo, Nem os cones brancos do Oregon — nem o cinturão poderoso de lagos do Huron — nem a corrente do Mississippi: A humanidade deste hemisfério, agitada como agora, eu escolheria — esta voz ainda pequena vibrando — o dia para que a América escolha, (O coração dela não está entre os escolhidos — o próprio ato principal, a escolha quadrienal), A extensão do Norte e do Sul erguida — na borda do mar e no interior — do Texas ao Maine — os estados de pradaria — Vermont, Virgínia, Califórnia, A última distribuição de urnas do Leste para o Oeste — o paradoxo e o conflito, Os incontáveis flocos de neve caindo — (um conflito sem espada, E contudo mais que todas as guerras da Roma antiga, ou guerras modernas de Napoleão), a escolha pacífica de todos, Uma humanidade boa ou doente — acolhendo as disputas mais sombrias, a escória: Espumando e fermentando o vinho? Serve para purificar — enquanto o coração arfa, a vida brilha: Essas rajadas tempestuosas de vento bafejando preciosos navios, Inflaram as velas de Washington, Jefferson, Lincoln.

Com lábios arrogantes vigorosos, ó Mar

Com lábios arrogantes vigorosos, ó mar! Onde dia e noite ando seguindo a arrebentação das ondas, ao longo da costa, Criando imagens para os meus sentidos das tuas sugestões estranhas e variadas, (Vejo e plenamente registro aqui tua fala e tua palestra),  med.00400.493.jpg Tuas tropas de cavalos de corrida de crina branca correndo para a meta, Tua face ampla, sorridente, atingida por pequenos raios faiscantes do sol, Tuas crias carrancudas e escuras — teus frouxos furacões, Tua postura indomável, caprichos, voluntariedade; Grande como a tua arte que está acima do resto, tuas muitas lágrimas — uma escassez de toda a eternidade em tua satisfação, (Nada além dos maiores esforços, erros, derrotas, poderia fazer-te o maior — nem menor poderia fazer-te) Teu estado solitário — algo que sempre procuraste e procuraste, sem contudo jamais ganhar, Com certeza algum direito retido — alguma voz, em imensa fúria monótona, de amante da liberdade enclausurado, Algum coração vasto, como o de um planeta, acorrentado e esfolado naqueles quebradores, Inchado no comprimento, com espasmo e respiração ofegante, E a raspagem rítmica de tuas areias e ondas, E o sibilo da serpente, e os selvagens repiques de risada, E as meias-vozes do rugido dos leões ao longe, (Soando, apelando ao ouvido surdo do céu — mas, agora, harmonia uma vez, Um fantasma na noite é teu confidente uma vez), A primeira e a última confissão do globo, Surgindo, murmurando do abismo de tua alma, A história de uma paixão cósmica elemental, Que contaste à tua alma afim.

A morte do General Grant

À medida que os atores, um por um, altivos, se retiraram, Daquela grande peça sobre o palco eterno da história, Aquele apavorante ato parcial de guerra e paz — do conflito entre o antigo e o novo, Lutado com ira, medo, obscuras aflições e muitas longas incertezas; Tudo passou — e desde então, recuaram aos túmulos incontáveis, amadurecendo, Os vitoriosos e os desaparecidos — os de Lincoln e de Lee — e, agora, tu a eles se unindo,  med.00400.494.jpg Homem de dias poderosos — e igual aos dias! Para ti das pradarias! — dura tem sido a tua parte, emaranhada e íngreme, Para a admiração tem ela sido encenada!

Jaqueta vermelha (do topo do mastro)

(Improviso na inauguração do monumento e resepultamento do velho orador Iroquois, na cidade de Buffalo, 9 de outubro de 1884)

Sobre esta cena, o espetáculo, Ofertado hoje pela moda, erudição e riqueza, (Não apenas por capricho — mas com algumas sementes do mais profundo significado), Talvez, no topo do mastro (quem sabe?) de formas fundidas das nuvens distantes no céu, Como alguma velha árvore, ou pedra ou penhasco, excitado com sua alma, Produto do sol da natureza, estrelas, direto da terra — uma elevada forma humana, Em camisa de caça de película, armado com o rifle, com um sorriso meio irônico, movendo seus lábios de fantasma, Tal como um dos fantasmas de Ossian, olha para baixo.

Monumento de Washington, fevereiro de 1885

Ah, não este mármore, morto e frio; Longe de sua base e erguendo-se para cima — as zonas esféricas circulando, abrangendo, Tu, Washington, és o mundo inteiro, o inteiro continente — não somente o teu, América, Mas também da Europa, em todas as partes, castelo de senhor ou cabana de operário, Ou gélido Norte, ou abafado Sul — do africano — do árabe em sua tenda, Da velha Ásia distante com venerável sorriso, estabelecida em meio às suas ruínas; (Saúda o antigo, o novo herói? Não é ele senão o mesmo — o herdeiro legitimado, sempre continuado,  med.00400.495.jpg Coração e braço indômito — demonstrações da linha jamais rompida, Igual coragem, prontidão, paciência, fé — e mesmo na derrota não se dá por derrotado) Onde houver um navio, ou casa construída na terra, ou dia ou noite, Por entre cidades e as ruas prolíficas das cidades, dentro ou fora das casas, fábricas ou fazendas, Agora, no porvir, ou no passado — onde desejos patriotas existiram ou existem, Onde quer que a Liberdade — sustentada pela Tolerância, acalentada pela Lei — Se ergue, ali está sendo erigido o teu verdadeiro monumento.

Daquela tua alegre garganta

Daquela tua alegre garganta, vinda do ártico descampado e vazio, Aprenderei a lição, pássaro solitário — deixa-me também acolher as chuvas gélidas, Até mesmo o gelo mais profundo, como agora — um pulso entorpecido, um cérebro sem nervos, Antiga terra cercada dentro de sua baía de inverno — (frio, frio, ó frio!) Estes cabelos nevados, meu braços débeis, meus pés gelados, Por eles a tua fé e as tuas leis eu tomo e gravo-as até a última; Não apenas a zona de verão — não os cantos da juventude, ou as marés quentes do sul apenas, Mas seguradas por lentas massas de gelo flutuante, acumulado no gelo do norte, a acumulação resultante de anos, Tudo isso, com o coração alegre, eu também canto.

Broadway

Que marés rápidas de seres humanos, de dia ou à noite! Que paixões, vitórias, perdas, ardores, nadam em tuas águas!  med.00400.496.jpg Que remoinhos de maldade, bem-aventurança e tristeza sobre a tua haste! Que curiosas olhadelas questionadoras — clarões de amor! Olhares de soslaio, inveja, escárnio, desprezo, esperança, aspiração! Teu portal — tua arena — tu entre miríades de linhas longas desenhadas e de grupos! (Quem poderia senão as tuas lajes, teus parapeitos, tuas fachadas, contar histórias inimitáveis; Tuas ricas janelas, e imensos hotéis — tuas calçadas largas.) Tu, de infinitos pés escorregadios, requebrados, embaralhados! Tu, tal como o próprio mundo com suas partes coloridas — como a vida infinita, corajosa, escarnecedora! Teu espetáculo e tua lição visionada, indescritível, vasta!

Para captar a cadência final das canções

Para captar a cadência final das canções, Para penetrar no mais íntimo saber dos poetas — para conhecer os poderosos, Jó, Homero, Ésquilo, Dante, Shakespeare, Tennyson, Emerson; Para diagnosticar os delicados e instáveis matizes do amor e do orgulho e da dúvida — para verdadeiramente compreender, Para a esses abarcar, é preciso a mais aguçada faculdade e o preço de ingresso: A idade avançada, e aquilo que ela trás de suas experiências passadas.

Velho Salt Kossabone

Há muito tempo, aparentado pelo lado de minha mãe, Sobre o velho Salt Kossabone, vou contar-vos como ele morreu: (Tinha sido marinheiro durante a vida inteira — tinha quase 90 anos — vivia com sua neta casada, Jenny; Casa na montanha, com a vista para a baía próxima e para um cabo na distância, e estendendo-se para o mar aberto); Quando a tarde terminava, nas horas da noitinha, foi por muitos anos seu hábito, Sentar-se ao lado da janela em sua grande poltrona, (Algumas vezes, de fato, ficava ali a metade do dia),  med.00400.497.jpg Assistindo à chegada e à partida dos navios, e resmungando sozinho — E agora o encerramento de tudo: Um brigue que tinha dificuldade para sair, um dia, confundiu-se por muito tempo — marés cruzadas e muita erraticidade, Finalmente, quando a noite caiu, a brisa bateu corretamente, mudando a sorte da embarcação, E rapidamente contornando o cabo, adentrou altivo na escuridão, partindo enquanto o velho assistia, "Ele está livre — ele segue, agora, a sua destinação" — essas foram suas últimas palavras — quando Jenny veio, ele estava ali, sentado e morto, O holandês Kossabone, velho Salt, aparentado pelo lado de minha mãe, há muito tempo.

O tenor morto

Como quem desce ao palco outra vez, Com chapéu e plumas espanhóis, e andadura inimitável, Retornando das murchas lições do passado, eu chamaria, contaria e possuiria, Quanto de ti! A revelação da voz cantante de ti! (Tão firme — tão suave e fluida — outra vez o timbre trêmulo e másculo! A perfeita voz cantante — a lição mais profunda de todas para mim — a maior provação e o maior teste de todos) Como que por entre aqueles esforços destilado — como os ouvidos arrebatados, a alma de mim, absorvendo, O coração de Fernando, o brado apaixonante de Manrico, de Ernani, do doce Gennaro, Envolvo desde então, ou procuro envolver, transmutando dentro de meus cantos, De liberdade e de amor e de fé livres e cantáveis, (Como a correlação dos perfumes, das cores, da luz solar): Desde esses, por esses, com esses, uma linha corrida, morto tenor, Uma folha de outono que voou, caindo no túmulo fechado — a terra cavada— Em memória de ti.
 med.00400.498.jpg

Continuidades

(De uma conversa que tive recentemente com um espiritualista alemão)

Nada está realmente perdido para sempre, ou pode ser perdido, Nenhum nascimento, identidade, forma — nenhum objeto do mundo. Nem vida, nem força, nem qualquer coisa visível; As aparências não devem enganar, nem esfera trocada deve confundir teu cérebro. Amplos são o tempo e o espaço — amplos são os campos da Natureza. O corpo, indolente, idoso, frio — as brasas deixadas por fogos anteriores, A luz, no olho reduzida, há de crescer devidamente outra vez; O sol agora baixo no oeste ergue-se continuamente para as manhãs e para o meio-dia; Para as nuvens congeladas as leis invisíveis da primavera retornam sempre, Com relva e flores e frutas de verão e milho.

Yonnondio

(O sentido dessa palavra é lamento pelos aborígines. É um termo Iroquois; e tem sido usado para o nome de pessoas)

Uma canção, um poema em si mesmo — a própria palavra é um hino fúnebre, Em meio aos desertos, às rochas, à tempestade e à noite de inverno, Chamam-me tais estranhos quadros de sílabas nebulosas, Yonnondio — eu vejo, distante no Oeste ou no Norte, uma ravina ilimitada, com planaltos e montanhas escuras, Vejo enxames de líderes destemidos, curandeiros, e guerreiros, Esvoaçando como nuvens de fantasmas, passam e se vão na penumbra, (Raça das florestas, de paisagens livres, e de quedas d'água! Não deixam para o futuro pinturas, poemas, discursos) Yonnondio! Yonnondio! — sem jamais terem sido desenhados eles desaparecem; O hoje dá passagem e enfraquece — as cidades, as fazendas, as fábricas enfraquecem; Um som harmonioso abafado, um gemido é sustentado através do espaço por um momento,  med.00400.499.jpg Então, vazio e findo e quieto e inteiramente perdido.

Vida

Sempre a alma do homem desencorajada, resoluta, enfrentando dificuldades; (Exércitos antigos falharam? Então enviamos exércitos novos — e outros mais novos); Sempre o mistério lançado de todas as eras da terra, antigas ou novas; Sempre os olhos ávidos, aclamações, as palmas de boas-vindas, o aplauso sonoro; Sempre a alma insatisfeita, curiosa, não convencida afinal; Igualmente enfrentando dificuldades — igualmente em batalha.

"Indo a algum lugar"

Minha amiga cientista, minha mais nobre amiga, (Agora sepultada em um túmulo inglês — e esta é uma folha de recordação em teu nome,) Findou-se o nosso diálogo — "A soma, concluindo tudo o que sabemos do conhecimento antigo ou moderno, de profundas intuições, "De todas as Geologias — Histórias — de toda a Astronomia — da Evolução, de toda a Metafísica, "É que todos estamos avançando, ganhando velocidade lentamente, certamente melhorando, "Vida, a vida uma marcha sem fim, um exército sem fim (sem parada, mas que termina oportunamente), "O mundo, a raça, a alma — no espaço e no tempo os universos, "Tudo unido servindo-se mutuamente — tudo certamente indo para algum lugar."

Pequeno o tema de meu Canto

Da edição de 1869 de Folhas de Relva

Pequeno o tema de meu Canto e, contudo, o maior — a saber: eu canto o meu próprio Ser, pessoa em si e à parte, isso, para a  med.00400.500.jpg missão do Novo Mundo, eu canto. A fisiologia, o que vai da cabeça aos pés, eu canto, não apenas a fisionomia, nem o cérebro somente é digno da Musa, eu digo que a forma completa é muito mais valorosa. A fêmea, tanto quanto o macho, eu canto. Nem cessa no tema do Ser de alguém. Falo a palavra do moderno, a palavra da Massa. Meus dias eu canto, e as Terras — com o interstício que conheço de Guerra desafortunada. (Ó amigo, quem quer que sejas, finalmente chegando até aqui para iniciar, sinto através de cada folha o aperto de tua mão, o qual retribuo. E então, em nossa jornada, andando pela estrada, e mais de uma vez, unidos e ligados seguimos.)

Verdadeiros conquistadores

Velhos fazendeiros, viajantes, operários (não importa quão incapacitados ou vergados), Velhos marinheiros, saídos de muitas viagens perigosas, tempestade e naufrágio, Velhos soldados das campanhas, com todos os seus ferimentos, derrotas e cicatrizes; É suficiente que eles tenham sequer sobrevivido — aqueles cujas longas vidas não foram amedrontadas! Seguindo além de suas dificuldades, provações, lutas, para terem sequer emergido — e somente por isso, Verdadeiros conquistadores sobre todos os demais.

Os Estados Unidos para os críticos do Velho Mundo

Aqui primeiramente os deveres de hoje, as lições do concreto, Riqueza, ordem, viagem, abrigo, produtos, abundância, Como da construção de algum edifício diverso, vasto, perpétuo, De onde se erguem, inevitavelmente pontuais, os altos telhados, as luminárias, As pontas solidamente plantadas nas alturas, mirando as estrelas.
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O pensamento tranqüilizador de todos

Continua aquela corrida, quaisquer que sejam as especulações do homem, Em meio às escolas que mudam, teologias, filosofias, Em meio às proclamadas apresentações, novas e antigas, As silentes leis vitais da terra redonda, os fatos, os modos continuam.

Agradecimentos em idade avançada

Agradecimentos em idade avançada — agradecimentos antes que eu me vá, Pela saúde, o sol do meio-dia, o ar intangível — pela vida, meramente pela vida, Pelas preciosas e sempre prolongadas memórias (de ti, minha mãe querida — de ti, pai — de vós, irmãos, irmãs, amigos), Por todos os meus dias — não apenas aqueles dias de paz, mas igualmente os dias de guerra, Pelas palavras gentis, carinho, presentes de terras estrangeiras, Pelo abrigo, vinho e carne — pela doce apreciação, (Tu, distante, obscuro desconhecido — jovem ou velho — sem conta, inespecífico, leitor, amado, Nunca nos encontramos, e nunca havemos de nos encontrar — e contudo almas que se abraçam, por muito tempo, proximamente e por muito tempo); Pelos seres, grupos, amor, feitos, palavras, livros — pelas cores, formas, Por todos os homens fortes e valentes — devotados, ousados — que se arremessaram à frente para socorrer a liberdade, em todos os anos, em todas as terras, Por aqueles homens mais valentes, mais fortes, mais devotados — (um laurel especial antes que me vá, para os escolhidos na guerra da vida, Os canhoneiros da canção e do pensamento — os grandes artilheiros — os mais adiantados líderes, capitães da alma): Como soldados que retornaram de uma guerra finda — como viajante entre miríades, pela longa procissão retrospectiva, Agradecimentos — agradecimentos plenos de alegria! — agradecimentos de um soldado, de um viajante.
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Vida e morte

Os dois antigos, simples problemas sempre entrelaçados, Lar próximo, enganoso, presente, confuso, preso, A cada era que se sucede indissolúvel, passado, Até os nossos dias — e nós continuamos na mesma.

A voz da chuva

E quem és tu? Disse eu para a chuva que caía suavemente, E ela, é estranho narrar, deu-me uma resposta, esta que aqui traduzo: Sou o Poema da Terra, disse a voz da chuva, Eterna, ergo-me imponderável para além da terra e do mar sem fundo, Subo ao céu, de onde, vagamente formada, sou transformada inteiramente e, contudo, permaneço igual, Desço para lavar as secas, os átomos, as camadas de poeira do globo, E tudo aquilo nesses elementos sem mim seria apenas sementes, potenciais, não nascidas; E para sempre, dia e noite, devolvo a vida à minha própria origem, e a faço pura e a embelezo; (Pois a canção, emitida de seu lugar de nascimento, depois de realizada, divaga, E, importando-se ou não, regressa oportunamente com amor.)

Logo as folhas do inverno hão de estar aqui

Logo as folhas do inverno hão de estar aqui; Logo essas ligaduras geladas hão de se desprender e derreter — Um breve momento, E ar, solo, onda, derramados hão de estar em sua maciez, florescimento e crescimento — mil formas hão de se erguer Desse barro morto e desse gelo, como se saíssem de túmulos inferiores, Teus olhos, teus ouvidos — todos os teus melhores atributos — tudo o que demanda a cognição de beleza natural, Há de acordar e de se completar. Tu hás de perceber os espetáculos simples, os delicados milagres da terra, Dentes-de-leão, trevos, a relva cor de esmeralda, os perfumes e as flores da manhã,  med.00400.503.jpg Os pequenos arbustos, o amarelo e o verde dos salgueiros, a ameixa e as cerejas que brotam, Com elas o pisco-de-peito-ruivo, a cotovia e o tordo, entoando suas canções — o pássaro azul esvoaçando; Tais são as cenas que a encenação anual traz consigo.

Enquanto não esquecemos o passado*

Enquanto não esquecemos o passado, Hoje, ao menos, a controvérsia inteiramente suprimida — e a paz, a fraternidade erguidas; Por sinais recíprocos nossas mãos, do Norte e do Sul, Assentam-se sobre os túmulos de todos os soldados mortos, Norte ou Sul, (Nem pelo passado apenas — mas pelos significados do futuro,) Grinaldas de rosas e galhos de palmeiras.

O veterano moribundo

(Um incidente ocorrido em Long Island — na primeira parte do presente século)

Em meio a estes dias de ordem, tranqüilidade, prosperidade, Em meio às canções atuais de beleza, paz, decoro, Lanço uma lembrança — (é provável que te ofenda, Eu a ouvi em minha meninice) — Passada mais de uma geração desde aquele tempo, Um bizarro velho homem selvagem, um lutador que trabalhava sob as ordens diretas de Washington, (Grande, valente, limpo, com sangue quente, pouco falante, bastante espiritualista, Havia lutado nas fileiras — lutado bem — durante toda a guerra Revolucionária), Deitado morria — filhos, filhas, diáconos da igreja, com amor se debruçavam sobre ele, Aguçando seus sentidos, seus ouvidos, em direção de seus sussurros, de suas palavras mal captadas: Publicado em 30 de maio de 1888.  med.00400.504.jpg "Deixai-me voltar novamente para os meus dias de guerra, Aos lugares e aos cenários — para a formação da linha de batalha, Para os batedores que vão à frente reconhecendo o terreno, Para os canhões, para a horrenda artilharia, Para os auxiliares a galope, carregando ordens, Para os feridos, os caídos, o calor, o suspense, O forte perfume, a fumaça, o barulho ensurdecedor; Fora com vossa vida de paz! — vossas alegrias de paz! Devolvei-me a velha vida de batalhas selvagens!"

Lições mais fortes

Aprendeste lições apenas daqueles que te admiraram e foram gentis contigo e estiveram ao teu lado? Não aprendeste grandes lições daqueles que te rejeitaram e bateram-se contra ti? Ou daqueles que te trataram com desprezo, ou disputaram a passagem contigo?

Um crepúsculo nos prados

Com reflexos de ouro, castanho e violeta, deslumbrante prata, cor de esmeralda, castanho claro, A amplitude inteira da Terra e os poderes multiformes da Natureza consignados uma vez para as cores; A luz, o ar geral possuído por elas — cores desconhecidas até agora, Sem limite, confinadas — não no céu do Oeste apenas — o alto meridiano — no Norte, no Sul, em todos, Pura cor luminosa lutando com as sombras silentes até o fim.

Vinte anos

Lá, no antigo ancoradouro, na areia, sento-me, conversando com um recém-chegado: Ele embarcou como um menino inexperiente e navegou para longe (despertou, adquirindo algumas repentinas e veementes noções); Desde então, por vinte anos ou mais deu voltas e voltas,  med.00400.505.jpg E deu voltas e voltas no globo — e agora ele retorna: Como o lugar está mudado — todos os antigos referenciais se foram — os pais morreram; (Sim, ele retorna para ficar definitivamente no porto — para estabelecer-se— tem uma bolsa bem cheia — nenhum lugar servirá além deste); O pequeno bote a remos que o trouxe da corveta encontra-se agora preso por uma corda, Ouço as ondas que batem, a quilha incansável, o balanço na areia, Vejo o kit do navegador, o saco de lona, a grande caixa atada com bronze, Examino minuciosamente o rosto todo marron-framboesa e barbeado — a estrutura corajosa e forte, Vestido com um terno castanho avermelhado de bom pano escocês: (Então — qual foi a história que contou sobre aqueles vinte anos? E o que será do futuro?)

Brotos de laranja da Flórida pelo correio

Uma prova menor que a do velho Voltaire e, contudo, mais grandiosa, Prova deste tempo presente, e de ti, de tua larga expansão, América, Para a minha simples cabana do Norte, sob as nuvens externas e a neve, Trazidos com segurança por mil milhas sobre terra e maré, Uns três dias desde que, em seu próprio solo, haviam germinado, Agora aqui, em meu quarto, a sua doçura desabrochando, Um punhado de brotos de laranja, vindos pelo correio, da Flórida.

Crepúsculo

As sombras macias voluptuosas narcóticas, O sol acaba de ir-se, a luz ansiosa dispersada — (eu também terei partido em breve, estarei disperso) Uma névoa — nirvana — descanso e noite — olvido.
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Vós, tardias e esparsas folhas de mim

Vós, tardias e esparsas folhas de mim em ramos do inverno que se aproxima, E eu uma bem aparada árvore do campo ou de uma fileira de pomar; Vós, lembranças diminutas e abandonadas — (não a brotação de maio, ou o florescimento do trevo de julho — não o grão de agosto agora); Vós, pálidas ripas de bandeira — vós, estandartes sem valor — vós que ficais além do tempo, Contudo, minhas folhas queridas do coração, todo o resto confirmando, As mais fiéis — as mais firmes — permanecem.

Não descarnados, contudo ramos apenas latentes

Não descarnados, contudo ramos apenas latentes Não descarnados, contudo ramos apenas latentes, ó canções! (sórdidas e nuas, como as garras das águias), Mas talvez em algum dia ensolarado (quem sabe?) em alguma primavera futura, algum verão — rebentando, Em folhas verdejantes, ou sombra acolhedora — em fruta nutritiva, Maçãs e uvas — emergindo como fortes membros das árvores — ao ar fresco, livre, aberto, E o amor e a fé, como rosas perfumadas florescendo.

O Imperador morto*

Hoje, com a cabeça pendente e os olhos, tu também, Colúmbia, Menos pela coroa poderosa tristemente derrubada — menos pelo Imperador, Tua verdadeira condolência exalaste, remeteste sobre muitas milhas de mar salgado, De luto por um homem velho e bom — um pastor fiel, um patriota.
Publicado em 10 de março de 1888.  med.00400.507.jpg

Como a chama sinalizadora dos gregos

(Por ocasião do décimo oitavo aniversário de Whittier, 17 de dezembro de 1887)

Como a chama sinalizadora dos gregos, conforme o que dizem os registros antigos, Ergueu-se do alto da colina, com aplauso e glória, Dando as boas-vindas para algum veterano especial, algum herói, Tingindo de vermelho rosado a terra que havia servido, Então, Eu, de cima da costa de Mannahatta, orlada de navios, Ergo alto uma tocha inflamada por ti, Velho Poeta.

O navio desmantelado

Em alguma lagoa afastada, alguma anônima baía, Em águas inertes, solitárias, ancorado próximo à margem, Um velho navio sem mastro, cinzento e batido, desabilitado, terminado, Depois de viagens livres por todos os mares da terra, rebocado afinal e bem amarrado, Jaz enferrujando, mofando.

Agora, canções precedentes, adeus

Agora, canções precedentes, adeus — por todos os sinônimos de despedida, (Trens de uma linha cambaleante em muitas estranhas procissões, vagões, De altos e baixos — com intervalos — de anos antigos, meia-idade ou juventude,) "Na cabine dos navios", ou "A ti, causa antiga" ou "Poetas do porvir" Ou "Paumanok", "Canção de mim mesmo", "Cálamo", ou "Adão" Ou "Rufai, rufai! Tambores!" ou "Na direção do solo forrado de folhas caminham", Ou "Ó Capitão! meu Capitão!", "Cosmos", "Anos de areia movediça", ou "Pensamentos", "Tu, mãe, com tua progênie à altura", e muitos, muitos outros não especificados,  med.00400.508.jpg Das fibras de meu coração — da garganta e da língua — (O sangue quente que pulsa de minha vida, O anseio pessoal e a forma por mim — não apenas o papel, o tipo automático e a tinta) Cada canção minha — cada pronunciamento no passado — tendo a sua longa, longa história, Da vida ou da morte, ou ferimento do soldado, ou perda ou segurança do país, (Ó céus! Que aparatoso trem entre todos, iniciado e sem fim! Comparado, de fato, àquilo! Deplorável e feito em pedaços, até mesmo em seu melhor!)

Uma bonança quando a noite cai

Uma bonança quando a noite cai Após uma semana de angústia física, Inquietude e dor, um calor febril, Quando o final do dia se aproxima, calma e bonança vêm, Três horas de paz e de descanso reparador para o cérebro.*

Os cumes tremulantes da idade avançada

O toque da chama — o fogo iluminador — o mais alto olhar afinal, Sobre a cidade, a paixão, o mar — sobre pradarias, montanhas, florestas — a própria terra; Os matizes mutáveis arejados, diferentes de todos, no crepúsculo que cai, Objetos e grupos, ângulos, faces, reminiscências; A visão mais calma — o cenário dourado, claro e amplo: Tanto na atmosfera, os pontos de vista, as situações de onde as esquadrinhamos, Esta canção e a canção precedente foram adicionadas durante uma tarde de junho de 1888, em meu septuagésimo aniversário, durante uma crise de enfermidade. É evidente que nenhum leitor e provavelmente ser humano algum em tempo qualquer jamais terá fases de ação emocional e solene como essas que me envolvem. Sinto nelas um fim e um encerramento de tudo.  med.00400.509.jpg Trazidas exclusivamente por eles — tanto (talvez o melhor) daquilo a que antes não dávamos importância; As luzes que de fato deles emanam — dos cumes tremulantes da idade avançada.

Depois do jantar e da conversa

Depois do jantar e da conversa — após o fim do dia, Como um amigo adiando para os amigos a sua última retirada, Adeus e adeus com a emoção nos lábios repetindo, (Tão difícil para as suas mãos soltar aquelas mãos — não mais se encontrarão, Não mais para a comunhão da tristeza e da alegria, de velhos e jovens, Uma extensa viagem na distância o aguarda, sem retorno), Evitando, adiando a separação — procurando desviar a última palavra sempre tão pequena, E mesmo à porta de saída, tornando-se — encargos supérfluos chamando de volta — até mesmo quando desce os degraus, Algo para se prolongar um minuto adicional — as sombras da noite que cai se aprofundando, As despedidas, as mensagens ficando mais tênues — mais difusos ficam o semblante e a silhueta daquele que avança, Para em breve ser perdida para sempre na escuridão — relutante, ó tão relutante em partir! Loquaz até o fim do fim.
 med.00400.510.jpg

Segundo anexo: Adeus, minha ilusão

Nota à guisa de prefácio para o segundo anexo

Concluindo Folhas de Relva — 1891

Não seria melhor evitar falar (nesta minha idade avançada e nesta paralisia) de tais diminutos penduricalhos e pintas ornamentais (máculas talvez, manchas), já que uma longa e poeirenta jornada se segue, deixando para que sejam testemunhadas mais tarde? Não tenho tido temor suficiente dos toques descuidados, desde o início — e nem agora — nem das repetições papagaiescas — nem dos chavões e dos lugares-comuns. Talvez eu seja democrático demais para esse tipo de abstenção. Além disso, não está a área de versos, tal qual originalmente planejei em minha teoria, suficientemente ilustrada — e o tempo maduro o suficiente para que eu me retire em silêncio? — (de fato não há clima para altos brados nem mercado para o meu tipo de expressão poética).

Em resposta, ou melhor, como desafio, para essa sorte de bem elaborada interrogação, aqui vai esta pequena coleção, e a conclusão de minhas coleções anteriores de poemas. Embora não esteja aqui reunido um esclarecimento completo, é válido imprimi-lo (certamente não tenho nada novo para escrever) — pois entretenho as horas de meu septuagésimo segundo ano de vida — horas de confinamento forçado em meu cubículo — dando forma a essa pequena coleção de poemas da idade avançada:

Últimas gotículas que se seguem a uma chuva espontânea, De muitas destilações límpidas e aguaceiros do passado; (Vão elas fazer germinar alguma coisa? Meras exalações que são — as da terra e as do mar — as da América;  med.00400.511.jpg Poderão elas filtrar qualquer emoção profunda? Qualquer coração e qualquer mente?)

Contudo é possível que assim seja, sinto-me disposto a desenvolver a oportunidade do momento e depois encerrar. Nos últimos dois anos emiti, durante as calmarias da doença e da exaustão, certos chilros — lentos e moribundos provavelmente (indubitavelmente) — os quais agora posso reunir e aprimorar enquanto ainda posso ver corretamente — (pois meus olhos já me avisaram plenamente que minha visão está escurecendo, e meu cérebro cada vez mais palpavelmente negligencia ou se recusa a fazer, mês após mês, mesmo as tarefas e as revisões mais leves).

De fato, aqui estou eu nestes anos atuais de 1890 e 1891 (a cada quinzena que se sucede sentindo-me mais duro e mais profundamente encalhado), tal como algum horrível e antigo crustáceo dilapidado, envolvido em sua casca dura, ou concha batida pelo tempo (sem pernas, absolutamente sem locomoção) atirada e deixada para secar no alto das areias da praia, indefesa, impedida de ir a qualquer lugar — sem alternativa além de me comportar em silêncio, enquanto passo os dias que ainda me estão designados, tentando descobrir se ainda há algo para a concha horrível, batida pelo tempo, que possa ser tirado finalmente, dos bons espíritos inatos e das primitivas pulsações centrais que existem lá no fundo, em alguma parte de sua velha concha grisalha . . . . . . . . . . . . . (Leitor, tu deves permitir um pouco de alegria neste ponto — primeiramente porque não há muitos desses poemetos a seguir que falem sobre a morte, e também porque estas horas (de 5 de julho de 1890) estão de tal modo ensoladaras. Idoso como estou, sinto hoje quase como algum tipo de onda brincalhona, que brinca contudo como uma criança ou um gatinho — provavelmente um período de ajuste físico e perfeição que se dá aqui e agora. De qualquer modo, acredito que isso está em mim perenemente.)

Então, por trás de tudo isso, a consolação mais profunda (é uma consolação lúgubre, mas não ouso lamentar esse fato que se deu no passado, nem me abstenho de habitar, e até de me vangloriar aqui ao final) que esta minha condição dos últimos anos, de mocho paralisado ou de concha, é o indubitável resultado e desenvolvimento, agora por quase vinte anos, da excitação e da ação emocional e física que durou além da conta, com zelo excessivo, nos tempos  med.00400.512.jpg de 1862, 3, 4 e 5. Nesses anos estive visitando e acompanhando os voluntários feridos e doentes do exército, de ambos os lados, nas campanhas ou disputas, ou após elas, ou nos hospitais ou nos campos ao sul da cidade de Washington, ou naquele lugar e em qualquer outro. Aqueles tempos foram quentes, tristes, desarticulados — os voluntários do exército, de todos os Estados, — do Norte ou do Sul — os feridos, sofrendo, morrendo — os verões exaustivos em que tanto suávamos, as marchas, as batalhas, a carnificina — naquelas trincheiras os corpos rapidamente se amontoando aos milhares, quase sempre anônimos. Será que a América do Futuro — será que esta vasta e rica União terá consciência um dia do preço pago lá atrás para que ela existisse? — aquelas hecatombes de mortes em batalha — aqueles tempos dos quais, ó leitor distante, este livro inteiro é — real e finalmente — apenas uma reminiscência de mim para ti, um memorial por tudo aquilo?

Navega para não mais retornar, iate fantasma

Levanta a âncora! Ergue a vela principal e o guindaste — dirige-te para frente, Ó pequena corveta branca descascada, agora ganha velocidade em águas realmente profundas, (Não direi que esta é nossa viagem conclusiva, Mas o início e certamente a entrada da mais verdadeira, a melhor, a mais madura); Parte, parte da terra firme — não mais retornando a estes litorais, Agora adiante, seguindo para a nossa eterna e infinita aventura livre, Rejeitando todos os portos já experimentados, os mares, as amarras, as densidades, a gravitação, Navega adiante sem perspectiva de retorno, iate fantasma de mim mesmo!

Últimas gotas demoradas

E de onde e por que vindes vós? Não sabemos de onde (foi a resposta), Sabemos apenas que ficamos aqui à deriva com os demais,  med.00400.513.jpg Que demoramos e nos atrasamos — e que flutuamos ao final, e que agora estamos aqui, Para sermos as gotas concludentes das chuvas que passaram.

Adeus, minha ilusão

Adeus,* minha ilusão — (Eu tinha uma palavra a dizer, Mas este não é exatamente o momento — O melhor da fala ou dos ditos de qualquer homem, Ocorre quando o seu lugar propício chega — e pelo seu significado, Eu mantenho o meu até o fim).

Adiante, adiante com os vossos mesmos pares aprazíveis

Minha vida e sua narrativa, contendo o nascimento, a juventude, os anos de meia-idade, Línguas de fogo caprichosas e multicores, inseparavelmente entrelaçadas e fundidas em uma só — a tudo combinando, Minha alma única — metas, confirmações, falhas, alegrias — Não uma alma única sozinha, Canto o estágio crucial de minha nação (da América, da humanidade talvez) — a grandiosa provação, a grandiosa vitória, Um estranho eclaircissement de todas as massas do passado, o mundo oriental, o mundo antigo, o mundo medieval,

Atrás de um Adeus espreita muito de uma saudação de um novo começo — para mim, Desenvolvimento, Continuidade, Imortalidade, Transformação são os sentidos mais importantes da vida da Natureza e da Humanidade, e são o aspecto sine qua non de todos os fatos, e de cada fato.

Por que as pessoas vivem com tanta ternura em suas últimas palavras, conselhos, aparência, quando da partida? Aquelas últimas palavras não são exemplos do melhor, do que envolve vitalidade em sua plenitude, e equilíbrio, e controle perfeito e escopo. Mas são valiosas além da medida para confirmar e endossar o trem variado, os fatos, as teorias e a fé da vida inteira que precede.

 med.00400.514.jpg Aqui, aqui vindo de peregrinações, de vagueações, de lições, de guerras, de derrotas — aqui no Ocidente uma voz triunfante — a tudo justificando, Um agradável brado repicando — uma canção, desta vez de máximo orgulho e satisfação; Nela eu canto a grandeza comum, a horda da média geral (os melhores não precedem os piores) — e agora eu canto a idade avançada, (Meus versos, escritos primeiramente na manhã da vida, e para o banquete do verão e do outono, Do mesmo modo passo para os cabelos nevados, e concedo o mesmo aos pulsos esfriados pelo inverno); Como aqui no trinado descuidado, eu e minhas recitações, com fé e amor, Flutuando para outra obra, para canções desconhecidas, condições, Adiante, adiante, vós, pares aprazíveis! Continuai da mesma forma!

Meu septuagésimo primeiro ano de idade

Depois de somar três lustros mais dez, Com todas as suas oportunidades, transformações, perdas, tristezas, As mortes de meus pais, as ilusões de minha vida, as minhas muitas paixões dilacerantes, a guerra de 63 e 4, Como algum velho soldado alquebrado, quente, em marcha cansativa, ou a esmo depois da batalha, Hoje na hora do crepúsculo, mancando, respondendo à chamada da companhia, Aqui, com voz vital, Reportando ainda, saudando ainda o maior de todos os Oficiais.

Aparições

Uma vaga bruma pendente em torno de metade das páginas: (Algumas vezes de um modo estranho e claro para a alma, Que todas essas coisas sólidas são de fato apenas aparições, conceitos, não realidades.)
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A pálida grinalda

De algum modo, não posso deixar que se vá por enquanto, embora seja fúnebre, Deixa-a permanecer lá atrás, suspensa em sua unha, Com rosa, azul, amarelo, todas embranquecidas, e as brancas agora cinzas e cinzentas, Uma rosa embranquecida colocada lá há anos por ti, querido amigo; Mas não me esqueço de ti. Feneceste? O perfume já foi exalado? As cores e a vitalidade estão mortos? Não, enquanto as memórias repentinamente vêm à tona — o passado vivo como nunca; Pois ontem à noite acordei, e naquele anel espectral eu te vi, Teu sorriso, teus olhos, tua face, calma, silente, amorosa como sempre: Então deixa a grinalda dependurada enquanto estiver ao alcance de meus olhos, Não está ainda morta para mim, nem mesmo pálida.

Um dia terminado

A sanidade calmante e a alegria do dever cumprido, A pompa e o brilho da disputa apressada e o acúmulo de serviços terminados; Agora triunfo! Transformação! Júbilo!*

Nota — Verão no interior. — Muitos anos. — Em minhas correrias e explorações encontrei uma floresta próxima ao riacho, para onde, por alguma razão, um número não usual de pássaros em clima de felicidade pareciam retirar-se. Especialmente no começo do dia, e novamente no final, eu ouvia ali os concertos musicais dos pássaros mais copiosos. Observava aquele fenômeno freqüentemente na hora do nascer do sol — e também na hora do crepúsculo, ou um pouco antes . . . Certa vez, uma questão surgiu para mim: qual é a melhor sessão de canto, a primeira ou a última? Os primeiros sempre se divertiam, e talvez parecessem mais alegres e mais fortes; mas sempre senti os sons do crepúsculo ou do final da tarde mais penetrantes e mais doces — pareciam tocar a alma — com freqüência os tordos do início da noite, dois ou três deles, respondiam e talvez se unissem ao canto. Embora eu tenha saudades de algumas daquelas manhãs, percebi que me tornei estritamente pontual para as apresentações no início da noite.

Outra nota — "Ele partiu com a maré e o pôr-do-sol" — foi uma frase que ouvi de um cirurgião que descrevia a morte de um velho marinheiro sob certas condições peculiarmente gentis.

Durante a Guerra de Secessão, 1863 e 1864, visitando os Hospitais do Exército nas cercanias de Washington, criei o hábito, e o mantive até o fim, sempre que o fluxo ou o refluxo da maré começava na última parte do dia, de visitar pontualmente aqueles que estavam nas alas populosas de homens sofredores. De algum modo (pensei então) o efeito da hora era palpável. Os mais feridos sentiam algum alívio, e gostavam de conversar um pouco, ou de ter alguém com quem conversar, suas naturezas intelectuais e emocionais estavam em sua melhor forma: a morte era sempre mais fácil; os remédios pareciam fazer melhor efeito quando administrados nessas circunstâncias, e uma atmosfera de bonança permeava as alas.

Influências semelhantes, circunstâncias e horas semelhantes, se davam no encerramento do dia, após grandes batalhas, mesmo com todos os seus horrores. Mais de uma vez tive experiências assim, nos campos cobertos de corpos caídos ou mortos.

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Navio da idade avançada & A morte dos maliciosos

Do leste e do oeste através da borda do horizonte, Duas poderosas e imperiosas fragatas movem-se furtivamente sobre nós: Mas travaremos uma corrida sobre os mares — uma batalha disputada ainda! Sustentada vivamente lá! (Nossas máximas alegrias de emulação e arrojo!) Veste hoje o velho navio toda a sua força! A vela mestra forçada, velas finas e velas reais de vigamento, Revelam o desafio e a provocação — bandeiras e estandartes ostensivos adicionados, Quando chegamos ao mar aberto — ao mar mais profundo, às águas mais livres.

Ao ano pendente

Não tenho uma palavra-arma para ti — alguma mensagem breve e ameaçadora? (Lutei e levei a termo a batalha?) Não tenho tiros de sobra? Por todas as tuas afeições, lábios, escárnio, estupidez múltipla?  med.00400.517.jpg Nem por mim — meu próprio Eu rebelado em ti? Inclina-te, inclina-te, orgulhoso apetite voraz! — embora te sufocando; Tua garganta ciliada e tua testa empinada para beber a água da goteira; Inclinando bem teu pescoço para receber esmolas.

Decifrando Shakespeare-Bacon

Não duvido — então mais, muito mais; Em cada velha canção legada — em cada nobre página ou texto, (Diferente — algo que antes não tinha importância — algum autor insuspeito) Em cada objeto, montanha, árvore, e estrela — em cada nascimento e vida, Como parte de cada um — envolvido a partir de cada um — o sentido por trás da aparência ostentada, Um místico código cifrado aguarda embrulhado.

Daqui a muito, muito tempo

Depois de um longo, bem longo percurso, de centenas de anos,negações, Acumulações, amores despertados e alegria e pensamento, Esperanças, desejos, aspirações, ponderações, vitórias, miríades de leitores, Revestindo, contornando, cobrindo — depois de incrustações de eras e eras, Somente então poderão estas canções alcançar fruição.

Bravo, exposição de Paris!

Adiciona ao teu espetáculo, antes de terminá-lo, França, Com todo o resto, visível, concreto, templos, torres, bens, máquinas e minérios, Nosso sentimento adeja de muitos milhões de corações palpitantes, etéreo porém sólido  med.00400.518.jpg (Nós, bisnetos e tataranetos, não nos esquecemos de teus grandes antepassados), De cinqüenta Nações e Nações nebulosas, compactados, enviados hoje sobre o mar, Da América o aplauso, o amor, as memórias e a boa vontade.

Sons de interpolação*

(O General Philip Sheridan foi sepultado na Catedral, em Washington D. C., em agosto de 1888, com toda a pompa, música e cerimônias da Igreja Católica Romana)

Sobre e através do canto funeral, Órgão e missa solene, sermão, sacerdotes que se inclinam, A mim chegam sons de interpolação que não estão ali apresentados — claramente audíveis, tomando os corredores e vindo das janelas, De repentinas correrias de batalha e de barulhos estridentes — o horrendo jogo da guerra ardendo para a visão e para o ouvido. O batedor mobilizado e enviado na frente — o general montado e seus auxiliares em torno dele — a nova palavra trazida — a ordem instantânea emitida;

Nota — Camden, New Jersey, 7 de agosto de 1888. Walt Whitman pede ao New York Harold "que inclua o seu tributo a Sheridan":

"Na grande constelação de cinco ou seis nomes, sob a Presidência de Lincoln, que a história sustentará através das eras em seu firmamento, como marco das últimas cinco cintilações da secessão, irradiando sobre os seus suspiros de morte, o de Sheridan brilhará. Uma consideração erguese do exemplo dos soldados que agora estão mortos e passa por minha mente, sendo digna de nota. Se a guerra tivesse durado um pouco mais, em minha opinião, teria revelado e provado os mais conclusivos talentos de guerra jamais evidenciados por qualquer nação na face da terra. Que eles possuíram categoria e aperfeiçoamento adiante de todos os outros conhecidos, em escala de qualidade e de número ilimitado, isso é facilmente admissível. Mas temos, também, a elegibilidade da organização, do manejo e da formação de oficiais uns iguais aos outros. Esses com armamentos modernos, transporte, e a inventividade do gênio americano, fariam dos Estados Unidos, com sinceridade, uma potência militar não somente capaz de enfrentar o mundo inteiro, mas também de vencer o mundo inteiro unido contra nós".

 med.00400.519.jpg O estalido dos rifles — o ruído surdo do canhão — a correria dos homens saindo de suas tendas; O fragor da cavalaria — a estranha presteza na formação das fileiras — o elegante toque da corneta; O som dos cascos dos cavalos na partida — selas, armas, equipamentos.

Para a brisa do crepúsculo

Ah, mais uma vez sussurrando, algo invisível, Onde, tardio, neste dia aquecido tu entraste pela minha janela, pela porta, Tu, lavando, temperando todas as coisas, refrescando, vitalizando gentilmente, A mim, velho, solitário, fraco, esgotado e derretido de tanto suor; Tu, aninhando-te, dobrando-te próximo e firme, ainda que suave, companhia melhor que a conversa, livros, arte, (Tu tens, ó Natureza! Elementos! para o meu coração, expressão que vai além de tudo o mais — e isto é deles) Tão doce o teu gosto primitivo para soprar no meu interior — teus dedos calmantes em minha face e em minhas mãos, Tu, mensageiro mágico, estranho fornecedor para meu corpo e meu espírito, (Distâncias perdidas — remédios ocultos penetrando em mim da cabeça aos pés), Sinto o céu, as vastas pradarias — sinto os poderosos lagos do norte, Sinto o oceano e a floresta — de algum modo sinto o próprio globo nadando rapidamente no espaço; Tu, soprado de lábios tão amados, agora findo — a esmo do depósito infinito, enviado por Deus, (Pois tu és espiritual, Divino, acima de tudo aquilo que meus sentidos conhecem), Ministro para falar comigo, aqui e agora, a palavra que nunca disse, e que não pode dizer, Não és a destilação do concreto universal? O último refinamento de todas as leis da Astronomia? Não tens alma? Não posso conhecer-te, identificar-te?
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Velhos canto

Uma canção antiga, recitando, terminando, Certa vez olhando fixamente em tua direção, Mãe de Todos, Meditando, procurando temas adequados a ti, Aceita por mim, tu disseste, as antigas baladas, E antes de partires profere diante de mim o nome de cada um dos antigos poetas. (De muitos débitos incalculáveis, É fato que o principal débito de nosso Mundo Novo é para com os velhos poemas.) Eternamente, há tanto tempo, preludiando-te, América, Velhos cantos de sacerdotes egípcios, e os da Etiópia, Os épicos hindus, os gregos, os chineses, os persas, Os livros bíblicos e os profetas, e os profundos idílios do Nazareno, A Ilíada, a Odisséia, as tramas, os feitos, as peregrinações de Enéas, Hesíodo, Ésquilo, Sófocles, Merlin, Artur, El Cid, Rolando em Roncesvalles, os Nibelungos, Os trovadores, os menestréis, os cantores, os escaldos, Chaucer, Dante, os bandos de pássaros cantores, A Bordadura da Arte dos Menestréis, as baladas antigas, os contos feudais, ensaios, peças, Shakespeare, Schiller, Walter Scott, Tennyson, Como algumas presenças em sonho, vastas, assombrosas, estranhas, Os grandes grupos indefinidos aglomerando-se ao redor, Lançando adiante seus poderosos olhares dominadores sobre ti, Tu, com o teu pescoço e a tua cabeça agora pendentes, com mão e palavra corteses, ascendendo, Tu, parando por um momento, inclinando teus olhos sobre eles, misturando-os com sua música, Satisfeito, tudo aceitando, curiosamente preparado por eles, Tu, atravessando o teu pórtico de entrada.
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Uma saudação de Natal

(De uma constelação de amigos do Norte para uma constelação de amigos do Sul, 1889–90)

Bem-vindo, irmão brasileiro — teu amplo lugar está pronto; Uma afetuosa mão — um sorriso do norte — uma instantânea saudação solar! Deixa que o futuro cuide de si mesmo, no lugar em que revela seus tormentos e impedimentos, Nossas, nossas as vascas do presente, a meta democrática, a aceitação e a fé); Para ti, hoje, o nosso braço estendido, a nossa cabeça voltada — de nós para ti os olhos cheios de expectação, Tu, agrupamento livre! Tu, brilhante e lustroso! Tu, aprendendo bem, A luz do verdadeiro ensinamento de uma nação estampada no céu, (Mais brilhante que a Cruz, mais do que a Coroa) A elevação que há de vir da soberba humanidade.

Sons do inverno

Sons do inverno também, O brilho do sol sobre as montanhas — muitas distorções na distância Do animado trem na estrada de ferro — do campo mais próximo, celeiro, casa, O ar murmurante — até mesmo as mudas plantações, as maçãs armazenadas, o milho, Os tons das crianças e das mulheres — ritmo de muitos fazendeiros e do mangual, Os lábios loquazes de um homem entre os demais, não pense que já desistimos, Adiante com estes cabelos grisalhos, continuamos o canto alegre e ritmado.

Uma canção crepuscular

Quando me sento sozinho no crepúsculo, próximo às chamas bruxuleantes do fogo que emana da madeira de carvalho,  med.00400.522.jpg Meditando sobre cenas de guerra há muito ocorridas — sobre os incontáveis soldados anônimos sepultados, Sobre os nomes vazios, como os que não foram encomendados pelo ar e pelos mares — os que não retornaram, O breve tratado de paz depois da batalha, com horríveis enterros de esquadrões, e as trincheiras profundas cheias de corpos, Dos mortos reunidos de toda a América, Norte, Sul, Leste, Oeste, de onde eles vieram, Das florestas do Maine, das fazendas da Nova Inglaterra, da fértil Pensilvânia, Illinois, Ohio, Do Oeste imensurável, da Virgínia, do Sul, das Carolinas, do Texas, (Mesmo aqui em meu quarto — sombras e meia luz nas silenciosas chamas bruxuleantes, Vejo as fileiras decididas, erguendo-se — ouço o passo rítmico do exércitos.) Vós todos, um milhão de nomes não escritos — vós, legado obscuro de todas as guerras, Um verso especial por vós — um lampejo de dever por muito tempo negligenciado — teu místico catálogo estranhamente aqui reunido, Cada nome lembrado por mim saído da escuridão e das cinzas da morte, De agora em diante para ser recordado, no fundo, bem no fundo de meu coração, por muitos anos futuros, Vós, místico catálogo inteiro de nomes desconhecidos, do Norte ou do Sul, Embalsamados com amor nesta canção crepuscular.

Quando o poeta surgiu inteiramente amadurecido

Quando o poeta surgiu inteiramente amadurecido Pronunciou-se a satisfeita Natureza (o globo impassível e redondo, com todos os seus espetáculos do dia e da noite), dizendo: Ele é meu; Mas falou também a Alma do homem, orgulhosa, ciumenta e desarmonizada: Não, ele é exclusivamente meu; Então o poeta inteiramente amadurecido colocou-se entre ambas, e levou-as pelas mãos;  med.00400.523.jpg E hoje e sempre assim ele se encontra, misturando-as, fundindo-as, segurando-as pelas mãos, firmemente, Mãos que ele jamais largará até ser capaz de reconciliá-las, E de fundi-las, inteira e alegremente.

Osceola

Quando a sua hora de morrer havia chegado, Lentamente ele se ergueu da cama que estava no chão, Vestiu sua roupa de guerra, camisa, calças, e, impacientemente, o cinturão em torno da cintura, Pediu tintas vermelhas para se pintar (seu espelho estava pendurado diante de si), Pintou metade de sua face e de seu pescoço, seus punhos e a parte de trás das mãos. Cuidadosamente, enfiou a faca de escalpo em sua cinta — então, deitando-se, descansou um momento, Ergueu-se novamente, metade do corpo sentado, sorriu, estendeu a sua mão em silêncio para cada um e para todos, Caiu debilmente no chão (agarrando com força o cabo da machadinha), Fixou o seu olhar na esposa e filhos pequenos — o último ato: (E aqui uma linha em memória de seu nome e de sua morte).
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Uma voz proveniente da morte

(Johnstown, Pensilvânia, cataclismo, 3 de maio de 1889)

Uma voz proveniente da Morte, solene e estranha, com toda a sua força e devastação, Com um sopro repentino e indescritível — cidades afogadas — a humanidade massacrada aos milhares, A alardeada obra das amenidades, bens, moradias, forja, rua, aço, ponte de aço, Batida desordenadamente pelo sopro — e contudo a vida inseminada prosseguida, (Em meio ao resto, em meio à corrida, girando, escombros descontrolados, Uma mulher sofrendo é salva — um bebê nasce com segurança!) Embora eu venha sem anúncio, no horror e na dor, Na enchente que se derrama e no fogo, e no desastre completo dos elementos (esta voz tão solene, estranha), Eu também sou um ministro da Divindade. Sim, Morte, nós inclinamos nossas faces, cobrimos nossos olhos para ti, Lamentamos o velho, o jovem precocemente perdido para ti, O belo, o forte, o bom, o capaz, A família destruída, o marido e a esposa, o ferreiro engolfado em sua forja, Os corpos submersos nas águas e na lama, Os milhares reunidos em valas para o seu funeral, e milhares nunca encontrados ou reunidos. Então, depois do enterro, depois de chorar os mortos, (Fiéis aos que foram achados e aos que não foram, sem esquecer, aturando o passado, aqui uma nova meditação), Um dia — um momento passageiro ou uma hora — a própria América se inclina bem baixo, Silenciosa, resignada, submissa. Guerra, morte, cataclismo como esse, América, Leva para o fundo do teu coração orgulhoso e próspero. Mesmo ainda enquanto eu canto, vê! Da morte, e do lamaçal e do lodo,  med.00400.525.jpg Os botões rapidamente florescendo, solidariedade, auxílio, amor, Do Oeste e do Leste, do Sul e do Norte e do exterior, Seus corações quentes e esporados e suas mãos; a humanidade se move para auxiliar a humanidade; E de dentro ainda um pensamento e uma lição, Tu, globo eternamente lançado! Através do Espaço e da Atmosfera! Vós, águas que nos envolveis! Vós, que em toda a nossa vida e nossa morte, durante a ação ou durante o sono! Vós, leis invisíveis que a todos permeiam, Vós, que em todos, e sobre todos, e através e sob todos, não cessam! Vós! Vós! A vital, a universal, a gigante força sem resistência, que não dorme, sempre calma, Segurando a Humanidade em vossas mãos abertas, como se fora um brinquedo efêmero Que, doente, sempre vos esquece! Pois que também vos esqueci, (Absorvido que estava nessas pequenas potências de progresso, política, cultura, riqueza, invenções, civilização), Perdi o meu reconhecimento de vosso poder sempre controlador, vós, poderosas, agonia dos elementos, Nas quais e sobre as quais flutuamos, as quais todos boiamos.

Um ensinamento persa

Muito arqueado, em sua última lição, o sufi de barba grisalha, Ao ar livre, com o perfume fresco da manhã, No declive de um fértil canteiro de rosas na Pérsia, Debaixo de um antigo castanheiro cujos galhos estão amplamente espalhados, Falou para os jovens sacerdotes e discípulos: "Finalmente, meus filhos, envolvendo cada palavra, cada parte de tudo o mais, "Alá é tudo, tudo, tudo — está imanente em toda a vida e objeto, Talvez em muitos e muitos mais pareça estar removido — contudo Alá, Alá, Alá está ali.  med.00400.526.jpg Aquele que se desviou andou para longe? É essa a razão pela qual está estranhamente escondido? Farias soar os sons abaixo do inquieto oceano do mundo inteiro? Conhecerias a insatisfação? A ânsia e o aguilhão de todas as vidas; Algo jamais aquietado — nunca inteiramente terminado? a invisível necessidade de cada semente? "É a ânsia central em cada átomo, (Freqüentemente inconsciente, freqüentemente mal, caído) Para retornar à sua divina fonte e origem, não importa a que distância esteja, Potencialmente igual em todos os sujeitos e objetos, sem exceção".

O lugar-comum

O lugar-comum eu canto; Quão barata é a saúde! Quão barata é a nobreza! Abstinência, sem falsidade, sem glutonaria, sem luxúria; O ar livre eu canto, liberdade, tolerância, (Leva, aqui, a principal lição — que não é a dos livros — nem a das escolas), O dia e a noite comuns — a terra e as águas comuns, Tua fazenda — teu trabalho, negócios, ocupação, A sabedoria democrática subjacente, como um piso sólido para todos.

"O Completo Divino Catálogo da Harmonia"

(Domingo, _____, _________, _______ Fui esta manhãà igreja. Um professor universitário, Reverendo Dr.______________, fez um ótimo sermão, durante o qual captei as palavras acima; mas o ministro incluiu em seu "catálogo da harmonia" letra e espírito, apenas as coisas estéticas, e ignorou totalmente o que narro a seguir)

O diabólico e obscuro, o moribundo e o desencarnado, O incontável (dezenove vigésimos) baixo e maligno, cruel e selvagem, Os loucos, prisioneiros em terríveis prisões, presas da luxúria, malignos,  med.00400.527.jpg Peçonha e corrupção, serpentes, os tubarões devoradores, os mentirosos, os dissolutos; (Qual é a parte que os depravados e os abomináveis sustentam dentro do esquema do orbe terrestre?) Salamandras aquáticas, seres que rastejam no lodo e na lama, venenos, O solo estéril, os homens maus, a escória e os hediondos apodrecidos.

Miragens

(Anotado literalmente depois de uma conversa que se deu num jantar ao ar livre, em Nevada, com dois velhos mineiros)

Mais experiências e visões, mais estranhas do que poderias imaginar; Passado o tempo, agora principalmente antes do amanhecer ou do crepúsculo, Algumas vezes na primavera, freqüentemente no outono, com o tempo perfeitamente claro, com visão plena, Acampamentos distantes ou próximos, as ruas lotadas das cidades e as vitrines das lojas, (Acredites nisso ou não — dês ou não dês crédito — é tudo verdade, E meu amigo ali poderia confirmar — temos sempre confabulado a esse respeito), Pessoas e cenas, animais, árvores, cores e linhas, tão claros quanto poderiam ser, Fazendas e os canteiros das casas, os caminhos ornamentados com caixas, lilases nas esquinas, Casamentos em igrejas, jantares de ação de graça, o retorno de filhos que por muito tempo estiveram ausentes, Sombrios funerais, as mães e as filhas cobertas com o véu de crepe, Julgamentos nos tribunais, júri e juiz, o acusado na cela, Competidores, batalhas, multidões, pontes, embarcadouros, Aqui e ali rostos marcados pela tristeza ou pela alegria, (Eu os poderia recolher neste momento se os visse outra vez) Apresentados a mim bem acima, à direita das bordas do céu, Ou claramente ali, à esquerda no topo das montanhas.
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O significado de Folhas de Relva

Não para excluir ou demarcar ou selecionar os maus de suas massas formidáveis (até mesmo para expô-los), Mas para adicionar, fundir completar, estender — e celebrar o bom e o imortal. Insolente esta canção, suas palavras e seu escopo, Para abarcar vastos domínios de espaço e tempo, A evolução — cumulativa — desenvolvimentos e gerações. Tendo iniciado em madura juventude e tendo prosseguido continuamente, Vagueando, perscrutando, brincando com todos — guerra, paz, absorvendo de dia e à noite, Nem por uma breve hora abandonando minha tarefa, Termino-a aqui na doença, na pobreza e na velhice. Eu canto a vida e, contudo, importo-me bastante com a morte: Hoje a sombria Morte persegue meus passos, minha forma assentada, e assim tem sido por anos — Aproxima-se de mim algumas vezes e ficamos face a face.

O que não foi exprimido

Como alguém ousa dizê-lo? Após os ciclos, os poemas, os cantores, as peças, Ostentando o que é da Jônia, da Índia — Homero, Shakespeare — as estradas espessamente pontilhadas há muito, muito tempo, as áreas, As constelações brilhantes e a Via Láctea, de estrelas — as pulsações da Natureza recolhidas, Todas as paixões retrospectivas, heróis, guerra, amor, adoração, As sondas de todas as eras lançadas em suas máximas profundezas, Todas as vidas humanas, gargantas, desejos, cérebros — a expressão de todas as experiências; Após as canções incontáveis, longas ou curtas, todas as línguas, todas as terras,  med.00400.529.jpg Algo ainda não narrado na voz da poesia ou nos impressos — algo faltando, (Quem sabe? O melhor ainda sem expressão e faltando).

Grandioso é o visível

Grandioso é o visível, a luz, para mim — grandes são o céu e as estrelas, Grandiosa é a terra, e grandiosos são o tempo e o espaço duradouros, E grandiosas são as suas leis, tão multiformes, confusas, evolucionárias, Contudo mais grandiosa ainda é a minha alma invisível, compreendendo, dotando todos aqueles, Iluminando a luz, o céu e as estrelas, escavando a terra, navegando pelo mar, (O que seriam todos aqueles, de fato, sem ti, alma invisível? De que serviriam sem ti?) Mais evolucionária, vasta, confusa, ó minha alma! Muito mais multiforme — tu muito mais duradoura que eles.

Botões invisíveis

Botões invisíveis, bem escondidos, Sob a neve e o gelo, sob a escuridão, em cada polegada quadrada ou cúbica, Germinais, finos, em laços delicados, microscópicos, inatos, Como bebês em úteros, latentes, sólidos, compactos, dormentes; Bilhões e bilhões, e trilhões e trilhões deles esperando, (Na terra e no mar — o universo — as estrelas lá no céu), Desejando vagarosamente, certamente para adiante, formando-se infinitamente, E esperando sempre mais, para sempre mais atrás.

Adeus, minha Ilusão!

Adeus, minha Ilusão! Adeus, querido amigo, querido amor! Estou indo embora, não sei para onde,  med.00400.530.jpg Ou que sorte terei, e se algum dia voltarei a ver-te, Então, adeus, minha Ilusão. Agora para terminar — deixa-me olhar para trás por um momento; O mais vagaroso e mais débil tique-taque do relógio está em mim, Saída, anoitecer, e em breve cessando o batimento do coração. Vivemos longamente, com alegria, juntos acariciados; Delicioso! — agora a separação — Adeus, minha Ilusão. Contudo não me deixes ser apressado em demasia, Muito vivemos de fato, dormimos, filtramo-nos, tornamo-nos realmente um; Então se morrermos, morremos juntos (sim, permaneceremos um), Se formos a algum lugar iremos juntos para encontrar o que acontece, Talvez estaremos em melhores condições e mais contentes, e aprenderemos algo, Talvez sejas tu agora realmente a conduzir-me para as verdadeiras canções (quem sabe?), Talvez sejas tu realmente a desfazer o nó mortal, retornando agora, finalmente, Adeus — e viva, minha Ilusão!
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Um olhar retrospectivo sobre as estradas viajadas

Talvez a melhor entre as canççes já ouvidas, as de todo e qualquer verdadeiro amor, as dos episódios mais belos da vida, as das mais árduas cenas dos marinheiros ou soldados, no mar ou em terra firme, seja a epítome de todas elas, ou de qualquer uma delas, muito tempo mais tarde, olhando para as realidades que ficaram distantes no passado, quando toda a sua excitação prática já se foi. O fato é que a nossa alma ama flutuar entre tais reminiscências!

Então, aqui me sento tagarelando sob a luz precoce das velas da idade avançada—eu e meu livro—, lançando olhares retrospectivos sobre nossa estrada viajada. Após terminar, tal como foi, a jornada—(uma variada excursão de anos, com muitas paradas e espaços de intervalo—ou alguma viagem náutica estendida, na qual mais de uma vez a hora derradeira havia aparentemente chegado e parecia que certamente naufragaríamos—contudo alcançando o porto suficientemente bem através de todas as derrotas—enfim)—após ter completado meus poemas, estou curioso para revisá—los à luz de suas próprias intenções (inconscientes quando de sua composição ou inconscientes em sua maior parte), com certos desdobramentos dos 30 anos que eles procuram abarcar. Estas linhas, assim sendo, provavelmente fundirão as tramas dos primeiros propósitos e especulações, com a urdidura daquelas experiências mais tardias que sempre trouxeram estranhos desenvolvimentos.

Resultado de sete ou oito estágios e esforços que se estenderam por aproximadamente 30 anos (ao me aproximar de meus 73 anos, vivo em boa parte de memórias), tenho em Folhas de Relva, agora  med.00400.532.jpg levadas a termo com todas as suas potencialidades e forças, o meu cartão de visitas para as gerações vindouras do Novo Mundo*, se posso assim dizer. Que não ganhei a aceitação de meus contemporâneos, mas caí em aficionados sonhos de futuros—antecipações—(“ainda vive a canção embora morra Regnar”)—que de um ponto de vista mundano e comercial Folhas de Relva foi pior que um fracasso—que a crítica pública ao livro e a mim como autor ainda mostra, mais do qualquer coisa, as suas marcas de raiva e desprezo (“encontro uma sólida fileira de inimigos em toda parte” —carta de W.S.K., 28 de maio de 1884) e que apenas por tê-las publicado fui objeto de duas ou três seções de bofetadas bem sérias e oficiais—tudo isso não é mais do que aquilo que eu teria esperado. Eu tinha minha escolha quando comecei. Não apostei nem nos elogios suaves, nem em grande retorno financeiro, nem na aprovação das escolas e nas convenções existentes. E agora realizado, ou parcialmente realizado, o melhor conforto de toda essa empreitada (além de um pequeno grupo dos mais queridos amigos e apoiadores já conferidos a um homem ou a uma causa—sem dúvidas todos os mais fiéis e os menos dispostos a abrir mão de suas posições—esta pequena falange!—por serem tão poucos) é que, sem ser interrompido ou deformado por qualquer influência da alma que há em mim, disse o que diria de um modo inteiramente próprio, registrando-o inequivocamente—deixando o seu valor para ser definido pelo tempo.

Ao refletir sobre aquela minha decisão, Willian O’Connor e Dr. Bucke são muito mais peremptórios do que eu. Além de tudo o mais que pode ser dito, considero que Folhas de Relva e sua teoria sejam experimentais—tal como, no sentido mais profundo, considero que também sejam a nossa república americana e a sua teoria. (Penso que tenho ao menos filosofia suficiente para não estar absolutamente certo demais de coisa alguma ou de quaisquer resultados.) Em segundo lugar, o volume é uma sortie—se provarse triunfante e conquistar a sua área de objetivo, de liberdade e de construção, o que poderá ser totalmente respondido daqui a nada menos que cem anos. Considero o fato de ter positivamente con Quando Champollion, em seu leito de morte, entregou ao impressor a prova revisada de sua Gramática egípcia, disse alegremente: “Tenha cuidado com isso: trata-se de meu cartão de visitas para a posteridade".  med.00400.533.jpg quistado certa audiência, muito mais compensador do que quaisquer deficiências ou a falta de reconhecimento. Essencialmente, esse era, desde o princípio, e tem sempre sido até agora, o principal objetivo. Agora ele parece ter sido alcançado, e estou certamente satisfeito de abrir mão de quaisquer outras recompensas momentosas, tendo-as em pequena conta. Revendo minhas intenções, candidamente e sem paixões, sinto que foram honrosas—e aceito seu resultado, qualquer que ele venha a ser.

Após minha ambição e meu esforço continuado, quando jovem, para competir com os demais pelas recompensas mais comuns, nos negócios, na política, na literatura, etc.—de tomar parte do grande mêlée, tanto pelos prêmios da vitória como para fazer o bem— após anos perseguindo esses objetivos, encontrei-me possuído, entre os meus 31 e 33 anos de idade, por um desejo especial e uma convicção. Ou melhor, para ser bem exato, um desejo que tinha marcado sua presença em minha vida, ou havia pairado pelos flancos, quase indefinido até então, avançou adiante, definiu-se, e finalmente dominou tudo o mais. Tratava-se de um sentimento ou ambição de articular e fielmente expressar em forma poéticoliterária, e sem outros compromissos, minha própria personalidade física, emocional, moral, intelectual e estética, em meio a, e narrando, o momentoso espírito e os fatos de seus dias imediatos, e da América atual—e explorar a Personalidade, identificada com local e data, em um sentido bem mais cândido e abrangente do que em qualquer outro poema ou livro até então.

Talvez isso seja, em resumo, ou pelo menos sugere, tudo o que procurei fazer. Tendo em vista o século XIX, com os Estados Unidos, e o que eles forneceram como área e pontos de vista, Folhas de Relva é, ou procura ser, simplesmente, um fiel e indubitável registro desejado por alguém. Em meio a tudo, elas dão à identidade de um homem—o autor—identidade, calor, observações, fé e pensamentos, quase incolores, tingidos com quaisquer cores definidas de outras fés ou em outras identidades. Muitas canções além dessas tinham sido cantadas—maravilhosas, incomparáveis canções— adaptadas para outras terras—para outro espírito e outro estágio evolutivo; mas cantei, e deixei de fora ou inseri, quase que exclusivamente os cantos com referência à América e ao presente. A ciência moderna e a democracia parecem estar lançando o seu desafio à poesia, para que ela seja capaz de fazer as suas declarações em contraste com as canções e os mitos do passado. Tal como o  med.00400.534.jpg vejo agora (talvez tarde demais), assumi inconscientemente aquele desafio e procurei fazer tais declarações—algo que certamente não procuraria fazer agora, compreendendo com maior clareza o que isso significa.

Para lançar as bases de Folhas de Relva, como um poema, abandonei os temas convencionais, que nelas não aparecem: nada do cabedal da ornamentação, ou da escolha de tramas de amor e de guerra, ou elevadas e excepcionais personagens das canções do Velho Mundo; nada, como posso dizer, em nome da beleza—nem lenda, nem mito, nem romance, nem eufemismo, nem rima. Contudo, a mais ampla média da humanidade e suas identidades neste século XIX que agora amadurece, e especialmente em seus incontáveis exemplos e ocupações práticas nos Estados Unidos atualmente.

Um contraste principal das idéias por trás de cada página de meus versos, comparado com os poemas estabelecidos, é a sua atitude relativamente distinta com referência a Deus, com referência ao universo objetivo, e ainda mais (por reflexão, confissão, pressuposição, etc.) a bem alterada atitude do ego, aquele que canta ou que fala, para consigo mesmo e para com a sua humanidade companheira. Certamente esta é a hora para que a América, acima de todos, inicie esse reajustamento na poesia e em seu escopo e ponto de vista básicos, pois tudo o mais já mudou. Enquanto escrevo, vejo em um artigo sobre Wordsworth, publicado em uma das atuais revistas inglesas, as linhas: “Há apenas algumas semanas um eminente crítico francês disse que, devido à especial tendência à ciência e à sua força devoradora, dentro de cinqüenta anos a poesia não mais seria lida”. Mas antecipo exatamente o contrário. Apenas começa a existir uma nova era mais firme, vastamente mais ampla—nem ainda se encontra de todo estabelecida—para a qual o gênio poético precisa emigrar. Qualquer que tenha sido o caso nos anos anteriores, o verdadeiro uso para a faculdade imaginativa dos tempos modernos é o de conceder uma vivificação definitiva aos fatos, à ciência, e às vidas comuns, dotando-as com os brilhos e as glórias e a ilustratividade final que pertence a cada coisa real, e apenas às coisas reais. Sem essa vivificação definitiva—que apenas o poeta ou outro artista podem promover—, a realidade pareceria incompleta, e a ciência, e a democracia, e a própria vida, vãs em sua finalidade.

Poucos apreciam as revoluções morais de nosso tempo, que foram bem mais profundas do que as revoluções materiais ou  med.00400.535.jpg inventivas ou as produzidas pela guerra. O século XIX, agora se aproximando do fim (e amadurecendo os frutos das sementes plantadas nos dois séculos precedentes*)—a ascensão nas massas nacionais e as mudanças das fronteiras—os fatos históricos e outros fatos proeminentes dos Estados Unidos—a guerra que tentou a secessão—a tempestuosa afluência e o ímpeto de forças nebulosas—jamais os anos futuros testemunharão maior excitação e alarido de ação—jamais uma mudança mais completa na vanguarda dos combatentes ao longo de toda a fileira, todo o mundo civilizado. Para todos esses novos e evolucionários fatos, significados, propósitos, novas mensagens poéticas, novas formas e expressões são inevitáveis.

Meu livro e eu—que período presumimos abarcar? Aqueles trinta anos de 1850 a 1880—e a América dentro deles! Orgulhosos, de fato orgulhosos nos sentiremos, se tivermos sido capazes de selecionar o bastante daquele período em seu próprio espírito para, valorosamente, bafejar alguns sopros vivos dele ao futuro!

Não ousarei formular uma definição de Poesia, aqui ou em qualquer outro lugar, por razões que são minhas, ou quaisquer razões, nem responderei à pergunta sobre o que ela é. Religião, Amor, Natureza. . . enquanto esses termos são indispensáveis e nós conferimos a eles um significado suficientemente exato, em minha opinião nenhuma definição elaborada é suficiente para abarcar o significado da Poesia; nem qualquer regra ou convenção pode ser estabelecida de modo tão absoluto que não venha a ser desprezada ou subvertida pelo surgimento de alguma grande exceção.

Também é necessário cuidadosamente relembrar que a literatura de primeira classe não brilha por qualquer luminosidade própria; o mesmo vale para os seus poemas. Tal literatura nasce de circunstâncias e é evolucionária. A real luminosidade viva vem sempre, curiosamente, de algum outro lugar—segue fontes imponderáveis, O fermento e a germinação dos Estados Unidos até hoje se reportam ao, e na minha opinião principalmente se fundamentam no, período elisabetano da História da Inglaterra, a era de Francis Bacon e de Shakespeare. De fato, quando vamos ao seu encalço, que desenvolvimento ou advento existe que não se refira ao passado, bem passado, até que se perca de vista —talvez as suas pistas mais atormentadoras se percam—nos horizontes longínquos do passado?  med.00400.536.jpg e é lunar e relativa na melhor das hipóteses. Existem, eu sei, certos temas fortes que parecem extremamente apropriados aos poetas— como a guerra, no passado—na Bíblia, o êxtase religioso e a adoração—e sempre o amor, a beleza, alguma trama excelente, algo que faz refletir ou que toca em outras emoções. Mas estranho tal como possa parecer à primeira vista, direi que existe algo surpreendentemente mais profundo e muito mais elevado do que aqueles temas para os melhores elementos da canção moderna.

Tal como todas as antigas obras imaginativas se sustentam, à procura de seu tipo, sobre encadeamentos de pressuposições, com freqüência não mencionados por elas, e no entanto capazes de prover as suas bases mais importantes, e sem as quais elas não teriam tido razão para existir, assim também Folhas de Relva, antes que uma única linha tivesse sido escrita, pressupunha algo diferente de todos os demais poemas e, tal como ele se encontra, é o resultado de tais pressuposições. Eu deveria dizer, de fato, que seria inútil procurar ler o livro sem antes ter esse pano de fundo preparatório e essa qualidade cuidadosamente assimilados. Pense nos Estados Unidos de hoje—os fatos que fizeram esses 38 ou 40 impérios fundirem-se em um—60 ou 70 milhões de semelhantes, com suas vidas, suas paixões, com seus futuros—essas incalculáveis, modernas multidões americanas em ebulição à nossa volta, das quais somos partes inseparáveis! Pensemos, em comparação, sobre o insignificante ambiente e a área limitada dos poetas do passado ou do presente na Europa, independentemente da grandeza de seus gênios. Pensemos na ausência e na ignorância, em todos os casos até aqui mencionados, das multidões, da vitalidade, e dos estimulantes sem precedentes do aqui e do agora. Quase podemos dizer que a poesia, com características ilimitadas e magnitude cósmica e dinâmica, adequadas à alma humana, nunca antes foi possível. é certo que uma poesia que tivesse fé absoluta e eqüidade para o uso das massas democráticas nunca existiu.

Para criar uma canção de primeira classe, uma certa dose de nacionalidade, ou por outro lado o que pode ser chamado o negativo e a falta dela (como algumas vezes me parece no caso de Goethe), é, freqüentemente senão sempre, o primeiro elemento necessário. Alguém precisa apenas de um certo poder de penetração para enxergar e mais ou menos retirar os fatos materiais de seu país e região, com as cores dos humores da humanidade naquele momento, ou as suas perspectivas tristes ou esperançosas, por trás de todos os  med.00400.537.jpg poetas e de cada poeta, integrando os seus registros de nascimento. Sei muito bem que minhas Folhas não poderiam ter emergido ou ter sido confeccionadas em qualquer outra era que não fosse a segunda metade do século XIX, nem em outra terra que não fosse a América democrática, e nem em uma circunstância distinta do triunfo absoluto dos exércitos da União Nacional.

E ainda que meus amigos confiram ou não o meu trabalho, conheço o bastante os seus limites, de tal modo que relativamente ao talento da ilustração, da criação de situações dramáticas, e especialmente em termos de melodia verbal e de toda a técnica convencional de poesia, não apenas as obras divinas que hoje estão diante de nós, no futuro do mundo da literatura, mas outras tantas dúzias, transcendem (algumas delas transcendem imensuravelmente) tudo o que já fiz ou poderia fazer. Mas a mim me parecia, como os objetos da natureza, que os temas do esteticismo e todas as explorações especiais da mente e da alma envolveriam não apenas a sua qualidade inerente, mas, sim, a qualidade, tão importante, de seu ponto de vista*; a hora havia chegado para se refletir sobre todos os temas e coisas, velhas e novas, de acordo com as luzes que haviam sido lançadas sobre elas com o advento da América e da democracia —para cantar aqueles temas por meio de uma expressão que não fosse apenas a do agradecido e reverente legatário do passado, mas, sim, o da criança nascida no Novo Mundo—para tudo ilustrar através da gênese e conjunto do hoje; e que uma tal ilustração e conjunto são as demandas mais importantes da prospectiva literatura de ficção da América. Não para conduzir, no estilo já aprovado, alguma escolha de trama da sorte ou do azar, ou ilusão, ou de pensamentos refinados, ou incidentes, ou cortesias—tudo o que já foi feito cumulativamente e bem feito, de modo a provavelmente jamais ser excedido—, mas compreendendo que tais apresentações estéticas de objetos, paixões, tramas, pensamentos, etc., não são desejadas pelas nossas terras e por nossos dias, já que em relação a elas provavelmente nunca terão coisa alguma melhor do que aquilo que já possuem na forma de legados do passado, enquanto ainda permanece sem ser dito tudo o que existe, mesmo em relação a tudo aquilo, sob um ponto de vista subjetivo e contemporâneo, exclusi- De acordo com Immanuel Kant, o ponto de vista é a última realidade essencial, dando forma e significado para todas as outras coisas.  med.00400.538.jpg vamente apropriado ao nosso caso, e ao nosso novo gênio e aos novos ambientes, diferentes de qualquer coisa que já tivemos até aqui; e que uma tal concepção de vida ou de arte, atual ou passada, é para nós o único meio de sua assimilação consistente no mundo Ocidental.

De fato, e de qualquer modo, para dizê-lo especificamente, não terá chegado a hora (isso deve ser claramente dito em nome da América democrática, se não por qualquer outro motivo) em que é imperativo que venha um reajustamento de toda a teoria e a natureza da Poesia? A questão é importante, e eu posso trocar o argumento e repetir: não estará o melhor do pensamento de nossos dias e de nossa República prenhe de um nascimento e de um espírito de canção superior a qualquer coisa do passado ou do presente?

Para a consolidação efetiva e moral de nossas terras (já são, como estabelecimento material, os maiores fatos na história conhecida e maiores, muito maiores, por aquilo que eles preludiam e necessitam, e hão de ser no futuro), para se adaptar com e construir sobre as realidades concretas e as teorias de universo fornecidas pela ciência, e daí em diante a única base irrefutável para coisa qualquer, o verso incluído—para radicar ambas as influências nas ações emocionais e imaginativas da modernidade, e dominar tudo o que a precede ou a ela se opõe—não será indispensável um avanço radical e um passo adiante, ou uma indispensável nova vértebra da melhor canção?

O Novo Mundo recebe com alegria os poemas da Antiguidade, com o rico fundo de épicos do feudalismo europeu, peças, baladas —ao menos não procura enfraquecer ou substituir aquelas vozes que estão em nossos ouvidos e em nossa área—por estudos indispensáveis, influências, registros, comparações. Mas embora o ocaso do deslumbramento do sol da literatura esteja naqueles poemas para nós de hoje—embora talvez as melhores partes do atual caráter nas nações, grupos sociais, ou individualidade de qualquer homem ou mulher, do Velho Mundo ou do Novo, seja proveniente deles—e embora se me fosse solicitado listar as mais preciosas heranças deixadas para a atual civilização americana de todas as eras que nos precedem, não tenho certeza, mas acho que escolheria aquelas velhas e menos velhas canções transportadas para cá do Oriente para o Ocidente—algumas sérias palavras e sérios débitos permanecem; algumas considerações acres pedem a nossa atenção. Dos grandes poemas recebidos do exterior e das idades, e hoje penetrando e envolvendo a América, haverá um que seja consistente  med.00400.539.jpg com estes Estados Unidos, ou essencialmente aplicável a eles tal como são ou como hão de ser? Haverá um cujas bases subjacentes não sejam uma negação e um insulto à democracia? Que comentário importante temos aqui, de qualquer modo, nesta era de realização literária, com o esplêndido amanhecer da ciência e a ressurreição da História, de que nossas principais obras poéticas e religiosas não são nossas, nem foram adaptadas para a nossa luz, mas têm sido fornecidas por idades muito antigas, de seus reservatórios e de sua escuridão, ou, no máximo, da luz decrescente de seu crepúsculo! O que há lá, naquelas obras, que tão imperiosamente e escarnecidamente exerce domínio sobre toda a nossa avançada civilização e cultura?

Até mesmo Shakespeare, que tanto influencia as letras atualmente e as artes (que de fato em muitos graus se originaram a partir dele), pertence essencialmente ao passado sepultado. Somente ele sustenta a distinção orgulhosa de certas fases importantes do passado, de ter sido o mais elevado entre os cantores a quem a vida já forneceu a sua voz. Todos, entretanto, estão relacionados e estabelecidos sob condições, padrões, políticas, sociologias, raios de crença, que têm sido praticamente eliminados do hemisfério Oriental, e jamais existiram no Ocidental. Como tipos oficiais de canção, elas pertencem à América tanto quanto as pessoas e instituições que elas descrevem. Pode-se dizer, é verdade, que a natureza emocional, moral e estética da humanidade não sofreu mudanças radicais—e que nesse sentido os antigos poemas se aplicam aos nossos tempos e a todos os tempos, independentemente de data; e que eles são de um valor incalculável como retratos do passado. Eu de bom grado chego à plenitude dessas admissões; então com isso avanço nesses pontos de grande e até suprema importância.

Já registrei, de fato, em outras ocasiões a minha reverência e o meu elogio por essas heranças poéticas que jamais deverão ser superadas, e a sua indescritível preciosidade como relíquias para a América. Outro ponto em separado precisa agora ser declarado candidamente. Se eu não tivesse me postado perante aqueles poemas com a cabeça descoberta, totalmente consciente de sua grandeza colossal e beleza de forma e espírito, não poderia ter escrito Folhas de Relva. Meu veredicto e minhas conclusões, tais como ilustrados nestas páginas, foram alcançados por meio do gênio e da persuasão das obras antigas tanto quanto por meio de qualquer outra coisa—  med.00400.540.jpg provavelmente mais por meio disso do que por qualquer outro modo. Tal como a construção total e bela da América é um legítimo resultado evolucionário do passado, o mesmo ouso afirmar sobre meus versos. Sem parar de qualificar a alegação, o Mundo Antigo teve os poemas dos mitos, das ficções, do feudalismo, das conquistas, das castas, das guerras dinásticas e de personagens e façanhas esplêndidas e excepcionais, que foram grandes; mas o Novo Mundo precisa dos poemas das realidades e da ciência, e da média democrática e da eqüidade básica, que hão de ser maiores. No centro de tudo, e como objeto de tudo, situa-se o Ser Humano, na direção de quem os poemas da evolução heróica e espiritual e tudo o que a eles se liga, direta ou indiretamente, se inclina, no Velho Mundo ou no Novo.

Prosseguindo com o assunto, meus amigos mais de uma vez sugeriram—ou talvez seja que a tagarelice da idade avançada tenha me possuído—alguns fatos embrionários adicionais de Folhas de Relva, e especialmente de como iniciei esse trabalho. O Dr. Bucke, em seu livro, já descreveu completa e belamente a preparação do meu campo poético, com as atividades particulares e gerais de arado, plantação, semeadura, e cuidados com o solo, até que tudo estivesse fértil, enraizado, e pronto para iniciar o seu próprio caminho para o bem ou para o mal. Antes de todas essas etapas, não tentei qualquer familiaridade com a literatura poética. Quando tinha 16 anos tornei-me o dono de um corpulento volume bem cheio com mil páginas em forma de oitavo (eu o tenho até hoje), contendo a poesia completa de Walter Scott—uma mina inexaurível e um tesouro de forragem poética (especialmente as florestas infinitas e selvas de notas)—e assim tem sido para mim por cinqüenta anos, e assim permanece até hoje*.

Poemas completos de Walter Scott; incluindo especialmente “O remate da arte dos menestréis”; e mais: “Tristem”; “Balada do último menestrel”; “Baladas dos germanos”; “Marmion”; “A dama do lago”; “Visão de Don Roderick”; “Senhor das ilhas”; “Rokeby”; “Núpcias de Triemain”; “Campo de Waterloo”; “Haroldo, o Audaz”; todos os dramas; várias introduções, infinitas notas interessantes, e ensaios sobre poesia, romance, etc.

Tratava-se da edição de 1833 (ou 34) por Lockhart, com as últimas e copiosas revisões de Scott e suas anotações. (Li de ponta a ponta todos os poemas, mas as baladas de “O remate da arte dos menestréis”, em especial, foram lidas por mim muitas e muitas vezes.)

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Mais tarde, de tempos em tempos, nos verões e nos outonos, eu costumava sair, algumas vezes por uma semana, para um passeio, entrando pelo interior, ou no litoral de Long Island—lá, na presença das influências externas, li inteiramente o Velho e o Novo Testamentos e absorvi (provavelmente para a meu melhor benefício do que se estivesse em qualquer biblioteca ou quarto fechado—faz uma grande diferença o lugar em que se lê) Shakespeare, Ossian, as melhores traduções que pude conseguir de Homero, ésquilo, Sófocles, os antigos Nibelungos germânicos, os antigos poemas hindus, e uma ou outra obra-prima, Dante entre elas. Ocorreu que li esses últimos em uma velha floresta. A Ilíada (versão em prosa de Buckley) li primeiramente inteira na península do Oriente, na ponta nordeste de Long Island, dentro de uma caverna rochosa com chão de areia, tendo o mar por todos os lados. (Tenho refletido desde então sobre a causa de não ter me sentido subjugado por aquelas obras-primas. Provavelmente porque as li, tal como descrevi, na presença abundante da Natureza, debaixo do sol, com as paisagens se espalhando ao longe e o horizonte, ou o mar encapelado.)

Por fim revisei entre outros os poemas de Edgar Poe—dos quais eu não era um admirador, embora eu sempre os tenha visto para além do seu limitado raio de melodia (como perpétuos carrilhões de sinos musicais, na escala de b bemol menor até g), eles eram expressões melodiosas, e talvez nunca tenham sido superados, de uma certa fase pronunciada de humana morbidez. (A área poética é muito espaçosa—há nela lugar para todos—há tantas mansões!) Mas senti-me recompensado pela prosa de Poe com a idéia de que (em qualquer condição para as nossas circunstâncias, as do nosso presente) não pode haver algo como um longo poema. A mesma idéia já vinha, desde antes, assombrando a minha mente, mas o argumento de Poe, embora curto, somou-se às minhas suspeitas dando-me certeza.

Outro ponto teve um estabelecimento precoce, abrindo amplamente o caminho. Eu vi, quando o meu empreendimento e os meus questionamentos positivamente ganharam forma (de que forma melhor posso expressar meu próprio tempo distintivo e aquilo que me cerca, América, Democracia?), que o tronco e o centro de onde a resposta iria se irradiar, e para o qual tudo deveria retornar de seu desvio, não importando de que distância, deveriam ser idênticos em corpo e alma, uma personalidade—a qual, depois de muito considerar e ponderar deliberadamente, resolvi que deveria ser a  med.00400.542.jpg minha própria—e de fato não poderia ser qualquer outra. Também senti com muita força (tenha eu conseguido demonstrá-lo ou não) que para compreender verdadeiramente e totalmente o Presente, ambos, o Passado e o Futuro, são considerações principais.

Tudo isso, porém, e muito mais poderia ter levado a nada (e positivamente quase levaria a nada) se não tivesse recebido um repentino, vasto, terrível estímulo direto e indireto para uma nova expressão declamatória nacional. é verdade, digo, que embora eu tivesse iniciado antes, somente com a ocorrência da Guerra de Secessão, e aquilo que ela me mostrou como que em lampejos de raios, com as profundezas emocionais que ela sondou e fez emergir (é evidente que não me refiro apenas aos sentimentos de meu coração, pois vi tudo isso com a mesma clareza em milhões de outras pessoas)—que somente do forte arroubo e da poderosa provocação das cenas daquela guerra, surgiram as razões de ser definitivas para uma canção autóctone e apaixonada.

Desci aos campos de guerra na Virgínia (final de 1862), vivi a partir de então nos acampamentos—testemunhei grandes batalhas e os dias e as noites que se seguiam—, compartilhei de todas as flutuações, desalento, desespero, esperanças novamente erguidas, a coragem evocada—o risco eminente da morte—a causa, também —ao longo e preenchendo aqueles anos agonizantes e apavorantes, 1863-64-65—os anos de verdadeira parturição (mais do que 1776-83) desta que a partir de então seria uma União homogênea.

Sem aqueles três ou quatro anos, e as experiências que eles me deram, Folhas de Relva não teriam existido.

Mas vim a público com a intenção também de indicar ou dar pistas de alguns pontos característicos que, desde então, eu vejo (embora não o visse então, pelo menos não de um modo definitivo), eram as bases e os objetos de anseio para com aquelas Folhas, desde o princípio. A palavra que eu mesmo coloco primariamente para descrevê-las, na forma em que elas se apresentam finalmente, é a palavra sugestionabilidade. Fecho e termino muito pouco, se o faço alguma vez; e não poderia fazê-lo consistentemente com o meu esquema. O leitor sempre terá a sua parte a fazer, tanto quanto eu tive a minha. Procuro menos declarar ou apresentar qualquer tema ou pensamento, e mais trazer-te, leitor, à atmosfera do tema ou do pensamento—para que ali tu possas dar os teus próprios vôos. Outra palavra impetuosa é camaradagem, em todas as terras,  med.00400.543.jpg e em um senso mais elevado e reconhecido do que até este ponto. Outras palavras sinalizadoras seriam bom entusiasmo, controvérsia, e esperança.

O traço dominante de qualquer poeta é sempre o espírito que ele traz para a observação da Humanidade e da Natureza—o estado de espírito a partir do qual ele contempla os seus assuntos. Com que tipo de índole e com que quantidade de fé ele relata essas coisas? Com que atualidade a canção tem sido conduzida? Qual é o equipamento e qualidade especial do cantor—qual o matiz de sua cor? O último valor dos que se expressam pela arte, do passado e do presente —estetas gregos, Shakespeare—ou em nossos dias Tennyson, Victor Hugo, Carlyle, Emerson—está certamente envolvido nessas questões. Digo que o mais profundo serviço que os poemas ou qualquer outro tipo de escritos podem prestar aos seus leitores não é apenas satisfazer o intelecto ou oferecer algo polido e interessante, nem mesmo descrever grandes paixões, ou pessoas, ou eventos, mas preenchê-los com vigorosa e clara virilidade, religiosidade, e dar a eles um bom coração na forma de uma posse extrema e de um hábito. O mundo educado parece estar cada vez mais entediado através dos séculos, deixando ao nosso tempo a herança de tudo isso. Afortunadamente, há o fundo original inexaurível de animação, que normalmente reside na raça, para sempre acessível e para o qual podemos sempre apelar e no qual podemos sempre nos apoiar.

Quanto à individualidade nativa do americano, embora venha com certeza, e em larga escala, o tipo distintivo e ideal de caráter ocidental (consistente com as características operativas, políticas e até mesmo de lucratividade da humanidade dos Estados Unidos no século XIX, tal como ideais foram os cavaleiros escolhidos, os cavalheiros e guerreiros para os séculos de Feudalismo europeu) ainda não apareceu. Permiti que a ênfase de meus poemas do começo ao fim se sustentasse sobre a individualidade americana e a ajudasse—não apenas porque essa é uma grande lição na Natureza, entre todas as suas leis gerais, mas como um contrapeso às tendências niveladoras da Democracia—e por outras razões. Desafiando a literatura ostensiva e outras convenções, canto, propositadamente, canto “o grande orgulho do homem em si mesmo”, e permito que esse seja mais ou menos um motivo de quase todos os meus versos. Penso que esse orgulho é indispensável a um americano. Não julgo que esse sentimento seja incompatível com obediência, humildade, deferência, e autoquestionamento.

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A Democracia foi tão retardada e ameaçada por poderosas personalidades, que os seus primeiros instintos estão ansiosos para prender, conformar, extraviar-se e reduzir tudo a um nível mortal. Enquanto o ambicioso pensamento de minha canção existe para ajudar a formar uma grande Nação agregada, ele procura, talvez, em sua totalidade, formar miríades de indivíduos plenamente desenvolvidos e inclusivos. Bem-vindas como são as doutrinas de eqüidade e fraternidade e que defendem a educação popular, um certo compromisso acompanha todas elas, como vemos. Aquele algo essencial no íntimo do homem, nos abismos de sua alma, a tudo colorindo, e, por fruições excepcionais, dando a ele a majestade final—algo continuamente tocado e atingido pelos antigos poemas e baladas do feudalismo e freqüentemente o seu mais importante fundamento—a ciência moderna e a Democracia parecem estar colocando em risco, talvez até eliminando. Mas isso é apenas a forma e a aparência; pois a realidade é muito distinta. As novas influências, sobre a totalidade das coisas, estão certamente preparando o caminho para as maiores individualidades já existentes. Aqui e agora, do mesmo modo, a força pessoal está por trás de todas as coisas. Os tempos e as representações que vão da Ilíada a Shakespeare, inclusive, não podem felizmente jamais ser realizados outra vez—mas os elementos de humanidade corajosa e elevada encontram-se intocados.

Sem ceder uma única polegada, o operário e a operária deveriam estar nas minhas páginas, da primeira à última. A mesma amplitude de heroísmo e elevação com que os poetas gregos e feudais dotaram os seus personagens divinamente ou nobremente nascidos—e de fato mais orgulhosos e melhor fundamentados e com amplitudes maiores que aqueles—dei às massas democráticas da América. Isso para mostrar que nós, aqui e agora, somos elegíveis ao mais grandioso e melhor—mais elegíveis agora do que em quaisquer tempos do passado. Também desejo que minhas expressões (disse a mim mesmo antes de começar) sejam em espírito os poemas da manhã. (Eles foram quase sempre elaborados e escritos nas manhãs ensolaradas e ao meio-dia de minha vida.) Desejo que sejam os poemas das mulheres tão inteiramente quanto sejam os poemas dos homens. Desejei inserir a União completa dos Estados Unidos dentro de minhas canções, sem qualquer preferência ou qualquer tipo de parcialidade. Doravante, se eles sobreviverem e forem lidos, eles devem ser tanto do Sul quanto do Norte—tanto ao longo do  med.00400.545.jpg Pacífico quanto ao longo do Atlântico—no vale do Mississippi, no Canadá, lá em cima no Maine, lá embaixo no Texas e nas praias de Puget Sound.

Por um outro ponto de vista Folhas de Relva é declaradamente o canto do sexo e da amorosidade, e até mesmo da animalidade—embora significados que geralmente não se encontram associados a essas palavras estejam por trás delas, e irão oportunamente emergir; e todas visam ser erguidas sob uma luz e uma atmosfera diferentes. Dessa característica, intencionalmente palpável em algumas linhas, direi apenas que o princípio desposado dessas linhas confere sopro de vida para o meu esquema completo e que a maioria das partes poderia não ter sido escrita no lugar em que essas linhas fossem omitidas. Ainda que isso seja difícil, tornou-se, em minha opinião, imperativo conseguir uma mudança de atitude dos homens e das mulheres superiores em relação aos pensamentos e aos fatos da sexualidade, como um elemento do caráter, personalidade, emoções e um tema em literatura. Não discutirei a questão em si mesma; ela não se sustenta sozinha. Sua vitalidade está no todo de suas relações, inclinações, significados—como a chave de uma sinfonia. Em última análise as linhas a que me refiro, e o espírito em que são ditas, permeiam inteiramente Folhas de Relva, e a obra deve erguerse ou cair com elas, como o corpo humano e a alma devem subsistir como um todo.

Universais como são certos fatos e sintomas de comunidades ou indivíduos de todos os tempos, não há nada tão raro nas modernas convenções e na moderna poesia como a sua fiança normal. A literatura está sempre chamando o médico para se consultar ou se confessar, e sempre dando evasivas e embrulhando supressões em vez de apresentar aquela "heróica nudez* sobre a qual um genuíno diagnóstico de casos sérios pode ser construído. E em respeito às edições de Folhas de Relva no porvir (se elas existirem) aproveito esta ocasião para confirmar aquelas linhas com assentadas convicções e a renovação deliberada de 30 anos e, por meio deste, proibir, tanto quanto eu puder pela força da palavra, a sua elisão.

Então, ainda um propósito que a tudo abarca e sobre e abaixo de tudo. Desde que aquilo que pode ser chamado de pensamento, ou o botão do pensamento, mal começou em minha mente juvenil, eu "Século XIX", julho de 1883.  med.00400.546.jpg tinha um desejo de tentar um registro valioso daquela inteira fé e aceitação (“para justificar os caminhos de Deus para o homem” é a frase conhecida e ambiciosa de Milton), que são os fundamentos da América moral. Eu tudo sentia positivamente nos dias de minha juventude como agora em meus anos avançados; queria formular um poema em que todos os pensamentos ou fatos deveriam direta ou indiretamente ser ou conspirar para uma crença implícita na sabedoria, saúde, mistério, beleza de todos os processos, todo objeto concreto, toda existência humana ou outra existência, não apenas considerado do ponto de vista do todo, mas de cada um.

Enquanto não posso compreendê-lo ou explicá-lo, acredito inteiramente em uma chave e um propósito na natureza, inteira e diversificada; e que os resultados invisíveis e espirituais, tão reais e definidos quanto os visíveis, são a causa de toda a vida concreta e de todo o materialismo, através do tempo. Meu livro deve emanar vivacidade e alegria legitimamente o bastante, pois surgiu desses elementos e tem sido o conforto de minha vida desde que o iniciei originalmente.

Uma das razões geradoras das Folhas foi a minha convicção (tão forte hoje como sempre) de que o desenvolvimento mais elevado dos Estados Unidos há de ser o espiritual e o heróico. Ajudar a disparar e favorecer esse crescimento—ou mesmo chamar a atenção para ele ou para a sua necessidade—é propósito do início, do meio e do fim dos poemas. (De fato, quando realmente decifrado e resumido até o fim, arando honestamente o solo inculto da média da humanidade—não meramente um “bom governo”, no senso comum—é a justificação e a principal razão de ser destes Estados Unidos.)

Vantagens isoladas em qualquer categoria ou graça ou fortuna —os diretos ou indiretos filamentos de toda a poesia do passado—são em minha opinião detestáveis para o gênio republicano e não oferecem fundamentos para os versos que a ele se coadunam. Poemas estabelecidos, eu sei, têm a grande vantagem de cantar aquilo que já foi cumprido, tão cheios de glórias, lembranças queridas às mentes dos homens. Mas o meu livro é um candidato para o futuro. “Toda a arte original”, afirma Taine, de qualquer modo, “é regulada por si mesma, e nenhuma arte original pode ser regulada por algum fator externo; ela carrega o seu próprio contrapeso e não o recebe de alguma outra parte — vive de seu próprio sangue”—um consolo para as minhas contusões freqüentes e minha intratável vaidade.

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Como este texto é talvez principalmente uma tentativa de uma declaração pessoal ou ilustração, permitirei a mim mesmo, como auxílio adicional, extrair a seguinte anedota do livro Anais dos pintores da Antiguidade, decorado por mim na juventude. Rubens, o pintor flamengo, em uma de suas andanças pelas galerias dos antigos conventos, deparou-se com uma obra singular. Após observála e muito refletir sobre ela por um bom tempo, e ouvir as críticas de seu séquito de alunos, disse a eles, em resposta aos seus questionamentos (a respeito da escola à qual a obra pertenceria): “Não acredito que o artista, desconhecido e talvez não mais entre os vivos, que deu ao mundo este legado, pertenceu alguma vez a qualquer escola, ou pintou qualquer coisa além deste quadro, que é uma façanha pessoal—uma parte da vida de um homem”.

Folhas de Relva, de fato (nunca será demais reiterá-lo), foi o afloramento de minha própria natureza pessoal, emocional ou outra, —uma tentativa, do começo ao fim, de registrar uma pessoa, um ser humano (eu mesmo, no final do século XIX, na América) livre, inteira e verdadeiramente. Não encontrei qualquer registro pessoal similar na literatura atual que para mim tenha sido satisfatório. Porém não é em Folhas de Relva, distintamente como literatura, ou algo dessa espécie, que fui nutrido ou resolvi minhas reivindicações. Ninguém alcançará meus versos se insistir em vê-los como performance literária, ou procurar em uma tal performance, ou mirando principalmente na direção da arte ou da estética.

Digo que nenhuma terra ou pessoa ou circunstância jamais existiu que precisasse tanto de uma raça de cantores e de poemas diferentes de todos os outros, e rigidamente os seus próprios, como a terra e as pessoas e as circunstâncias de nossos Estados Unidos precisam hoje de tais cantores e poemas, e para o futuro. E ainda mais, enquanto estes Estados continuarem a absorver e forem dominados pela poesia do Velho Mundo, e permanecerem desabastecidos de poesia autóctone, para expressar, vitalizar e dar cor e definição ao seu sucesso material e político, e ministrá-los de modo distintivo, sentirão a insuficiência de uma nacionalidade de Primeira Classe e permanecerão defeituosos. Na liberdade de meu dia que termina, dou-te, leitor, a mesma conversa tagarela de antes, pensamentos, lembranças,

Ociosamente à deriva com o refluxo, Tais ondulações, vozes mal ouvidas, ecos que vêm da praia.  med.00400.548.jpg

Concluo com dois itens para o gênio imaginativo do Oeste, quando ele se ergue valorosamente—primeiro, o que Herder ensinou ao jovem Goethe, que a poesia verdadeiramente grande é sempre (como os cânticos homéricos ou bíblicos) o resultado de um espírito nacional, e não o privilégio de uns poucos polidos e seletos; segundo, que as mais fortes e mais doces canções ainda estão por ser cantadas.

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DADOS BIOGRÁFICOS 
  Walt Whitman 
  (1819–1892)

Estejas tranqüila—fique à vontade comigo—sou Walt Whitman, liberal e vigoroso como a Natureza, Enquanto o sol não te excluir, também eu não te excluirei . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Todos querem te subjugar, sou o único que jamais consentirá em subjugar-te, Sou o único que não impõe sobre ti qualquer mestre, dono, apostador, Deus, a não ser aquele Deus que aguarda implícito em ti mesmo.

A publicação de um folheto contendo 12 poemas sem título, de um autor até então desconhecido, assinalou, em 1855, a passagem para um novo ciclo cultural nos Estados Unidos. A data em que o texto apareceu, 4 de julho, Dia da Independência norteamericana, seria, mais tarde, associada a uma simbólica libertação de influências estrangeiras e à criação de um idioma próprio,  med.00400.550.jpg indiscutivelmente nativo. Com Folhas de Relva, a poesia das Américas cruzava os portais da modernidade.

O autor dos poemas, batizado como Walter Whitman Filho, nasceu a 31 de maio de 1819 em West Hills, Huntington, Long Island, sendo o segundo de nove filhos de um casal muito simples: o pai era um carpinteiro e a mãe uma dona de casa analfabeta. Pouco depois do nascimento de Walter, a família mudou-se para o Brooklyn, onde o menino foi criado entre os quakers*.

A vida familiar de Walter trouxe-lhe muitas desventuras: a mãe vivia enferma; o pai era um homem arredio e ausente; uma das irmãs, Hannah, era neurótica; Jesse, o irmão mais velho, teve sífilis e morreu num manicômio; outro irmão, Andrew, era um jovem vaidoso que não se conformava com a pobreza; e Edward, o caçula, era deficiente mental. George, o mais bem-sucedido entre todos (foi nomeado inspetor pela Direção de Obras Hidráulicas), jamais se interessou pelo trabalho literário de Walter. Muito tempo depois de Folhas de Relva ter sido considerada uma obra reveladora de novos horizontes, George admitiu que não tinha dado a menor importância à obra do irmão: “Vi o livro, mas não o li. Não pensei que valesse a pena lê-lo. Nossa mãe pensou o mesmo”, declarou.

Aos 11 anos, Whitman deixou de freqüentar a escola e passou a trabalhar como mensageiro de um escritório de advocacia; aos 12, tornou-se aprendiz de impressor e, aos 13, trabalhava nas oficinas do jornal Long Island Star. Sua adolescência foi marcada pela inquietude. Precisava trabalhar, mas não gostava de sentir-se amarrado, dizia que “só queria viver”. Aos 17 anos, decidiu deixar as atividades em empresas de jornalismo e tornar-se professor, e nos três anos seguintes lecionou em sete escolas rurais, alojando-se nas casas de seus alunos. Aos 20 anos, o jovem novamente mudou Quakers: grupo religioso de tradição protestante, denominada Sociedade dos Amigos, criada por volta de 1652 pelo inglês George Fox. Os quakers reagiram contra os abusos da Igreja Anglicana, alegando ter influência direta do Espírito Santo. Os membros da Sociedade dos Amigos receberam a alcunha de quakers (tremedores) em virtude de suas manifestações espirituais durante os cultos. Refutavam qualquer organização clerical e preferiam viver no recolhimento, valorizando a pureza moral e a prática ativa do pacifismo e da filantropia. Perseguidos na Inglaterra por Carlos II, emigraram em massa para os Estados Unidos, onde, em 1681, criaram, sob a liderança de William Penn, a colônia da Pensilvânia.  med.00400.551.jpg de opinião. Voltou à cidade natal de Huntington, onde adquiriu uma máquina impressora e fundou o seu próprio jornal, o Long Island. Contudo, o empreendimento que começara com grande entusiasmo, teve vida curta. Após um ano trabalhando como factótum do próprio diário, fechou-o e foi novamente em busca de emprego na imprensa da região. De jornal em jornal, tornou-se, aos 27 anos, redator do Brooklyn Eagle.

A essa altura já escrevia em prosa e verso, e alguns de seus trabalhos haviam sido publicados. A prosa era empolada e retórica. Os contos tinham títulos lúgubres como “Um impulso malvado”, “História de um assassino fugitivo” e “A volta do terrível Frank”. Seus poemas eram ainda piores. Compostos em metros vulgares e com rimas forçadas, tratavam principalmente de temas violentos. Eram expressões de sentimentos medíocres, revestidas de uma forma absurda, sem qualquer virtude técnica. Em resumo, eram poemas sem brilho, mesmo em se tratando de um autor principiante.

Whitman foi redator do Eagle até os 30 anos. Escrevia alguns artigos razoáveis e outros medíocres. Escreveu também Franklin Evans ou O Abstêmio, uma verdadeira apologia da temperança disfarçada de romance. Também nesse período, ajudava o pai na construção de casas, mas sabia vestir-se com elegância, gostava muito de ir ao teatro e à ópera (consta que seu compositor favorito era Donizetti), passeava pela Broadway e freqüentava rodas de discussão política e alguns eventos da alta sociedade.

Um amigo de Whitman falou-lhe de uma vaga no New Orleans Daily Crescent, e em fevereiro de 1848, acompanhado de seu irmão Jeff, que tinha então 15 anos, dirigiu-se ao Sul, passando pelos Alleghenies, atravessando Ohio e chegando ao Mississippi. Três meses mais tarde, porém, Whitman estava de volta ao Brooklyn, onde, durante um ano, foi redator do Freeman, um seminário liberal.

Foi também por volta dos 30 anos que Whitman começou a escrever em um novo estilo poético; abandonou os versos vulgares e torpes que havia publicado nos periódicos e passou a experimentar formas livres, sem rima, e com ritmo flexível, combinando acentos vigorosos e pulsações irregulares. As reiterações oportunas, os paralelismos e a cadência compensavam a ausência de metrificação, assemelhando-se bastante ao estilo dos salmistas hebraicos. Quando atingiu 35 anos, essas experiências alcançaram extraordinária culminação.

Em 1855, passou a assinar apenas Walt Whitman, em parte para  med.00400.552.jpg se diferenciar do pai, em parte para expressar a emancipação de suas produções anteriores, e entregou para publicação, a uma pequena editora do Brooklyn, os originais de seus 12 poemas polirítmicos, intitulados Folhas de Relva. O título era uma glorificação do “herbário democrático”, que tanto se identificava com o espírito norteamericano. O retrato em uma página de rosto revelava o amadurecimento do autor. Os traços do diletante refinado haviam desaparecido: a reluzente bengala e o fraque impecável deram lugar às toscas roupas de operário, calças presas com cinto e botas de cano alto. A camisa aberta e o chapéu inclinado para a frente davam-lhe um certo ar de libertino. Tal era a imagem da lenda que ele mesmo começava a criar. é possível dizer que passou o resto de sua vida elaborando essa lenda e que nela estava entremeada a sua grande obra.

Na primeira edição de Folhas de Relva Whitman se apresentou como um operário, “amado pelos analfabetos”. Era comum aos autores da época elogiar-se a si mesmos em comentários anônimos. Whitman não foi exceção a essa regra. Desejoso de atrair numerosos leitores e querendo assegurar-se de que encontrariam uma nova personagem democrática, um novo poeta da democracia, escreveu: “Sendo de genuína estirpe americana, corpulento, vigoroso—de 36 anos de idade—jamais recorreu a remédios, jamais se vestiu de preto, sempre usou roupas grossas, frescas e limpas, desnuda a garganta, o peito da camisa liso e amplo, o rosto moreno de tom rosado, a barba entremeada de branco, o cabelo igual ao feno depois de segado nos campos; pessoa particularmente amada e procurada, sobretudo pelos jovens e os analfabetos; homem que não busca a companhia de literatos, jamais é encontrado nas tribunas, entre grupos de clérigos, funcionários ou professores; acham-no na baía, acompanhando os pescadores nas barcas, ou viajando num ônibus da Broadway, sentado junto ao condutor, ou com um grupo de vagabundos, percorrendo os amplos campos do país [. . .]. é homem no qual se adverte a singularidade consistente na ausência de toda a singularidade, cujo trato não se deslumbra, senão que produz fascinação tranqüilizadora do familiar e do costumeiro, de algo cuja existência se conhecia anteriormente, esperando-o com veemência; esse é Walt Whitman, o criador de uma literatura de nova espécie”.

É óbvio que Whitman, em busca da popularidade, exagerava, atribuindo a si o extremo da mendicidade, apresentando-se como homem do rio, como “um dos debaixo”, querendo que seus poemas  med.00400.553.jpg vendessem com aspecto da linguagem vulgar dos marinheiros, dos condutores de ônibus e vagabundos. Todavia, uma certa dose de imodéstia e auto-adulação era desculpável e até necessária, já que teve de enfrentar o coro vociferante de críticos contumazes. “O livro constitui uma impertinência para a língua inglesa; quanto a seu sentimento, é uma afronta para a moral reconhecida de um povo respeitável”, publicou o Christian Examiner num dos comentários menos agressivos que se escreveram sobre a obra. “Devemos indicar este monturo de sujeira às leis, as quais, com toda certeza, para cumprir seu fim, hão de suprimir semelhante obscenidade. Não cremos que haja periódico tão imundo para lhe reproduzir as passagens”, declarou o New York Criterion. Mas o Boston Intelligencer superou o Criterion em má-fé: “Essa massa heterogênea de inchação, egolatria, vulgaridade e disparates [. . .]. A bestialidade do autor evidencia-se na descrição que faz de si mesmo e não nos ocorre melhor recompensa que o látego para a violação da decência tão flagrante como a que temos entre nós [. . .]. O autor deveria ser expulso a pontapés de todo círculo de pessoas decentes, por se encontrar em nível mais baixo que o dos animais. Não há inspiração nem método em seu balbuciar incoerente e parece-nos que deve ser algum louco fugido do manicômio, que se debate em lamentável delírio”.

Os críticos ingleses não foram menos cruéis. O London Critic disparou: “é possível que a mais ousada das nações tolere um poeta cujas indecências mal-cheirosas nos ofendem o olfato? Walt Whitman está tão alheio à arte, como um porco o está em relação à matemática”. A última frase parece um eco do comentário publicado pelo New York Times sobre o autor de Folhas de Relva: “trata-se de um centauro, semi-homem, semibesta [. . .] que fosse como um porco na imensa sujeira dos pensamentos obscenos”.

Paradoxalmente, as primeiras mostras de aprovação da obra vieram da puritana e recatada Nova Inglaterra. Charles Eliot Norton usou de prudência ao dizer: “Trata-se de curiosa obra escrita sem regras [. . .], não aparece nela a rima ou o verso livre, antes está composta numa espécie de prosa agitada, dividida em linhas, sem nenhum propósito de regularidade ou medida [. . .]. Mas o autor é uma nova luminária surgida na poesia”.

Edward Everett Hale, o famoso homem de letras de Boston, autor de O homem sem pátria, foi ainda mais generoso em sua análise. Embora admitisse que o livro era “estranho e inusitado”, declarou  med.00400.554.jpg que “ao lê-lo se desfruta da louçania, simplicidade e realismo de suas páginas, do mesmo modo como o homem fatigado que se estende num prado e sente o prazer de ali estar, em meio à vegetação que o rodeia [...]. Neste curioso livro apresentaram-se pequenos esboços da vida—os quais, à medida que vão sendo desenvolvidos ante nós, dão-nos a impressão de serem reais, tão reais que nos perguntamos assombrados como puderam ser plasmados no papel”. Todavia, os encômios mais inesperadamente desabridos vieram da parte do grande Sábio de Concord, o filósofo Ralph Waldo Emerson. Aquele livro de um poeta desconhecido, publicado por um editor obscuro, despertou em Emerson o mais eloqüente entusiasmo: “Meu caro senhor, não me foge o valor das qualidades maravilhosas que brilham em Folhas de Relva. Vejo nesta obra o mais extraordinário exemplo de inspiração e sabedoria que a América do Norte até agora produziu. Senti grande prazer ao lê-la, já que a clareza e o vigor nos produzem gozo [. . .]. Dou-lhe os meus parabéns por suas idéias independentes e corajosas... Encontrei coisas incomparáveis, ditas de modo incomparável. Encontrei um valor na forma de tratar os temas que me encantou e que só pode nascer de uma ampla visão. Felicito-o no começo de sua grande carreira.”

Entretanto, os ecos proféticos da saudação de Emerson tardariam a se tornar realidade. Durante muito tempo ainda a obra de Whitman seria atacada, ridicularizada, vituperada. O próprio autor foi responsável em parte pelos ataques sofridos nos anos que se seguiram, porque se comprazia em provocar os grupos conservadores, sobretudo no que se referia às considerações sexuais de sua obra. Beirando o exibicionismo, escreveu, ele mesmo, um outro comentário anônimo para a imprensa, no qual criticava o próprio livro: “Não se pode esquecer que para Whitman o sexo é o grande princípio ordenador do universo. Ele fala do músculo do macho e da entranha fecunda da fêmea em suas páginas como de realidades benfazejas. . . Estende os braços à direita e à esquerda, convidando homens e mulheres a estreitar-se com ele num abraço de amor indiscutível, busca apertar-lhes as mãos, deseja o contato de seus colos e peitos e ama o som de suas vozes. Tudo o mais parece fundir-se em seu impetuoso carinho para com os seres humanos”.

O sentimento de carinho realmente transborda das Folhas de Relva, e um carinho universal, que a tudo e a todos abraça, na exaltação do divino medíocre, pois, ao glorificar-se a si mesmo, o poeta glorificou a humanidade inteira:

 med.00400.555.jpg Eu celebro o eu, num canto de mim mesmo, E aquilo que eu presumir também presumirás, Pois cada átomo que há em mim igualmente habita em ti.

Essa identificação entre um homem, o eu lírico e todos os homens é crescente em sua obra, na medida em que é acrescida de novos poemas, nas edições subseqüentes: a segunda tinha 384 páginas; os 12 poemas iniciais tornaram-se 32. A terceira edição, publicada cinco anos depois da primeira, tinha 456 páginas e continha 124 poemas novos, assim como correções radicais nos poemas originais. As edições posteriores sofreram acréscimos e correções menores, mas, somente em 1891, com a nona edição da obra, Whitman deu por encerrado o ciclo de revisões de Folhas de Relva, deixando para a posteridade o que também tem sido chamado de “edição do leito de morte”.

A obra lhe trouxe alguma fama, mas não lhe aumentou a renda. Dois anos depois da primeira edição, apertado pela fome, Whitman voltou ao jornalismo. Na primavera de 1857, aos 38 anos, foi nomeado redator do Brooklyn Daily Times e começou a atacar as falcatruas legalizadas, a prostituição organizada e as injustiças sociais aceitas pela maioria complacente.

Em 1861, estourou a Guerra de Secessão*. Antiescravista, Whitman estava alinhado aos exércitos do Norte, a União, a mesma que celebrou com tanta veemência em seus versos. Têm-se discutido as razões pela qual não chegou a se alistar para os combates. Alguns atribuem essa escolha às influências do pensamento pacifista dos quacker, outros ao fato de que já se considerava velho aos 38 anos de idade. O mais provável, contudo, é que tenha pesado a sua oposição inata à disciplina obrigatória, sua incapacidade de submeter- se à rotina de arregimentação. Em vez de se alistar, Whitman seguiu para a cidade de Washington, que foi convertida num gigantesco hospital de guerra, e ali permaneceu durante 12 anos, entregando-se de corpo e alma a um intenso trabalho de enfermagem Termo pelo qual se costuma designar a guerra civil entre o sul e o norte dos Estados Unidos no período que vai de 1861 a 1865. O conflito, que custou a vida de mais de 61.000 norte-americanos, foi provocado pela reação do norte ao posicionamento separatista dos sulistas que queriam a permanência da instituição da escravatura negra no país.  med.00400.556.jpg e de apoio psicológico aos soldados feridos ou enfermos. Em visita a hospitais, escreveu que “há alguma coisa no amor humano, nas carícias e em sua magnética corrente de simpatia que, de certo modo, proporciona mais alívio que todos os remédios do mundo”.

Whitman não tinha rendimentos, mas prestava alguns serviços militares extras (como copiar documentos oficiais e escrever artigos), que lhe garantiam o sustento e ainda lhe possibilitavam oferecer aos seus doentes tabaco, selos, doces, açúcar para a limonada, algumas laranjas e maçãs e, às vezes, algum livro. Mantinha colóquios íntimos com aqueles soldados acamados e escrevia-lhes as cartas. Dessa experiência veio-lhe a inspiração para escrever uma comovedora série poética intitulada Toque de Recolher.

O estudo constante de si mesmo levou Whitman a sentir vivo interesse pelos demais; assim, em vez de compor abstratos hinos patrióticos à democracia, preferiu falar em suas páginas da beleza e do terror que a vida encerra, vida que ele julgava ser “plena de paixão, pulso e poderio”.

Os serviços prestados aos feridos de guerra amenizaram as críticas que a imprensa lhe fazia como escritor. Em 1865, dez anos depois da publicação de Folhas de Relva, o New York Times comentou Toque de Recolher afirmando que Whitman era deficiente de qualquer ponto de vista, como poeta, e suas páginas mostravam “uma pobreza de idéias evidenciada pelo tumulto de palavras incoerentes. Porém”, prosseguia o Times, “o Sr. Whitman possui melhores títulos para ser objeto da gratidão de seus compatriotas que os que possam resultar de sua vocação poética [. . .]. A devoção com que se dedicou aos mais penosos deveres nos hospitais de Washington durante a guerra honrará sua memória quando as Folhas de Relva tiverem murchado e o Toque de Recolher houver cessado de soar”.

A gratidão dos compatriotas por Whitman manifestou-se por meio de um membro do Gabinete de Lincoln, e foi assim que o poeta recebeu um cargo no Departamento de Assuntos Indígenas da Secretaria do Interior. Alguns meses depois, quando a nomeação parecia consolidada, o Secretário do Interior, James Hartland, descobriu o livro de Whitman num caixote fechado, leu-o aterrorizado e destituiu-o imediatamente. A indignação de seus amigos se fez sentir nos meios políticos: William Douglas O’Connor publicou o combativo folheto O Bom Poeta Gris, e a destituição sumária converteu-se assim em uma transferência para o escritório do pro-  med.00400.557.jpg curador-geral, onde o poeta trabalhou até os 53 anos. A partir dessa idade, Whitman foi obrigado a ganhar a vida de um modo bem mais penoso: não só teve de imprimir seus próprios livros como também teve de vendê-los. A quinta edição de Folhas de Relva trazia uma nota promocional sobre poemas soltos, como “Passagem para a índia” e “Visões democráticas” que podiam ser comprados diretamente do autor.

Apegado à cidade de Washington, Whitman ali permaneceu até que fortes e constantes dores de cabeça (atribuídas a uma infecção contraída nos hospitais de guerra), crises de esgotamento e solidão levaram-no, aos 53 anos de idade, a visitar a mãe, que vivia com seu irmão George em Camden, New Jersey. Poucos dias após sua chegada, morreu-lhe a mãe. O poeta mergulhou em profundo abatimento e não quis sair dali. George deu-lhe um quarto no andar superior e Whitman permaneceu em Camden.

Tinha abandonado o círculo de seus amigos e a vida mudara visivelmente. Envelheceu rapidamente: dores espasmódicas faziamno parecer mais fraco do que realmente estava. Breves períodos de energia eram alternados com longos ataques de depressão. Em uma carta que escreveu nessa época ao crítico britânico Edward Dowden, que o havia elogiado sem reservas no além-mar, queixa-se asperamente de que ele, tanto quanto seus poemas, eram sistematicamente ignorados pelos organismos estabelecidos nos Estados Unidos, rejeitados pelas editoras e de que “o autor se vê privado de meios de subsistência”. Para vender seus livros, levava-os numa cesta pelas ruas de Camden. Ganhava algum dinheiro, mas os problemas de saúde impediam-lhe caminhadas mais longas, o que limitava sua venda.

Aos 65 anos vivia num quarto pequeno e cheio de jornais velhos, em uma velha casa da rua Mickle, próxima a um cruzamento ferroviário de Camden. Os trens passavam muito perto, fazendo grande barulho, e o cheiro de uma fábrica de fertilizantes era-lhe insuportável. A viúva de um marinheiro cuidava da casa, preparava as refeições do poeta e arrumava-lhe as camisas. Seus admiradores recolhiam e enviavam-lhe algum dinheiro para as despesas. Oliver Wendel Holmes e Samuel L. Clemens estavam entre aqueles que lhe ofereceram carruagens para se deslocar entre as cidades em que ainda realizava conferências esporádicas, como a famosa conferência sobre Lincoln, proferida durante um banquete na Filadélfia. Todavia, na maior parte do tempo, recolhia-se acamado no seu pequeno  med.00400.558.jpg quarto do andar superior da casinha da rua Mickle, em Candem. Julgava-se moribundo, mas não vencido. Passava por longas fases de silêncio, sentado diante da lareira, agitando (ou como diria Edmund Grosse, “irritando”) o fogo. Pensava muito na morte, fazia planos sobre o seu túmulo e preparava uma série de despedidas.

Aos 72 anos, Whitman preparou a edição de 1891 (também conhecida como “a edição de seu leito de morte”) de Folhas de Relva, obra que agora contava não com os 12 poemas originais de 1855, mas com mais de trezentos poemas. Descrevia-se como uma “concha de carcaça dura, destroçada, mísera e velha, maltratada pelo tempo—sem pernas, sem poder mover-se um pouco que fosse, atirada a um lugar alto e seco sobre as areias da praia”. Pelos fins de dezembro de 1891, Whitman contraiu pneumonia. Apesar do estado grave, conseguiu ainda sobreviver todo aquele inverno. Morreu no dia 26 de março de 1892, dois meses antes de completar 73 anos. A autopsia revelou que tinha também uma tuberculose avançada.

A desabrida e luxuriosa sensualidade que caracteriza Folhas de Relva, e em especial os poemas “Canção de mim mesmo” e “Os filhos de Adão”, contrasta de modo estranho com a vida celibatária de Whitman. O poeta nunca se casou e o único episódio em sua vida que poderia ter parecido amor foi a relação que manteve com a Sra. Anne Gilchrist, crítica inglesa que se considerava companheira daquele solteirão de idade madura. Contudo, Whitman adotou uma estudada atitude evasiva, acabando por retirar-se. Tanto George, seu irmão, quanto Peter Doyle, que foi seu amigo entre os 45 e os 50 anos de idade, afirmam categoricamente que Walt não se interessava pelas mulheres. O poeta se precatava quanto a essa sua singularidade fazendo distinção nítida entre “amorosidade”, o amor físico entre os sexos, e “afetividade”, que julgava ser uma “atração pessoal entre os homens que é mais forte que a amizade”. Os poemas de “Cálamo” celebram essa “afetividade”, com uma combinação de audácia e ingenuidade: audácia, porque o poeta estava consciente das implicações e ambigüidades de seus poemas; ingenuidade, porque identificava “o robusto amor, de homens que se beijam uns aos outros com a saudação natural e espontânea dos amigos na América do Norte”. A natureza dupla de Whitman o levou a interpretar erroneamente o significado de camaradagem, mas proporcionou-lhe uma sensibilidade além do normal; aumentou-lhe a consciência das complexidades multiformes do ser, as infinitas variedades  med.00400.559.jpg do sofrimento e, sobretudo, fez-lhe conhecer a piedade básica e a solidariedade.

Aqueles que admiravam Whitman sem reservas causaram-lhe tantos prejuízos quanto seus opositores. Para eles, o poeta era um clarividente e seus livros um novo evangelho, a moderna “bíblia da democracia”. Deixando de lado qualquer senso crítico e mergulhando no mais completo fanatismo, homens tais como O’Connor, Burroughs e Bucke concluíram que Whitman era a encarnação da natureza, uma criação à parte, um criador sem precursores. Na realidade, a filosofia de Whitman é um amálgama na qual se divisam as mais diversas fontes. Tudo o que lia era canalizado e filtrado por sua personalidade absorvente. A mais importante de suas fontes inspiradoras é justamente aquela que não foi bem apreciada: Emerson! Muitas passagens da prosa do Sábio de Concord encontram na poesia de Whitman o seu equivalente. Por exemplo, em O intelectual norte-americano, Emerson terminava assim: “Temos escutado demasiado tempo as cortesãs musas européias. Já se suspeita que o espírito do homem livre da América é tímido, imitativo, servil. . . Que não seja assim, irmãos e amigos, queira Deus que esse não seja o nosso espírito. Caminharemos com nossos próprios pés, trabalharemos com nossas próprias mãos, expressaremos nossas próprias idéias”. Cerca de 20 anos depois de Emerson ter escrito essas linhas, elas se tornaram o tema da desafiadora “Canção à exposição”, de Whitman:

Vem, Musa, emigra da Grécia e da Jônia, Cancela, por favor, aquelas imensas dívidas já tão pagas, Aquela questão de Tróia e a da ira de Aquiles, e Enéas, as andanças de Odisseu, Nos rochedos de teu níveo Parnaso está anunciado “mudamos” e “aluga-se”, Repete-o em Jerusalém, coloca um sinal bem alto no portão de Jafa e no Monte Moriá, Faze o mesmo nas paredes dos teus castelos alemães, franceses e espanhóis, e nas coleções italianas, Para que se possa conhecer uma esfera melhor, mais nova e mais dinâmica, um domínio amplo, não experimentado te espera, e pede por ti.

Não é preciso negar as influências que recebeu para afirmar que  med.00400.560.jpg Whitman foi, de fato, um inovador. Foi ele o pai do verso livre, ampliou grandemente os temas tratados até então, libertando assim o espírito da poesia moderna. E não são apenas as suas inovações técnicas que fizeram dele o arauto eloqüente de uma civilização em acelerado ritmo de desenvolvimento. Em tudo que escreveu, sentese o pulsar de uma América às vezes materialista, mas sempre crescente. Em certo grau, Whitman conseguiu se expressar em um idioma autóctone, genuinamente americano, diferente do inglês. Por vezes, falava das folhas como de uma experiência lingüística. A poesia—afirmava ele—deve expressar-se em tom familiar, baseando-se em alicerces amplos e baixos, aderidos ao solo. Em “Uma cartilha americana” exortava a utilização livre das vozes populares. “Dez mil americanos autóctones estão se formando, ou já se formaram, grande número dos quais poderiam ser empregados pelos escritores norte-americanos—palavras que deveriam ser acolhidas, por serem de estirpe nacional. De onde vem a propriedade, o estranho encanto dos nomes aborígines? Monangahela—como nos deleita o ouvido com seu feitiço! [. . .] Quem sabe utilizar convenientemente as palavras, utiliza as coisas—elas destilam força e beleza em sua boca—são milagres de suas mãos, milagres de seus lábios [. . .]. Precisamos de palavras flexíveis, rotundas, perduráveis. Imaginais que as liberdades e as fibras constitutivas destes estados só têm que ver com delicadas palavras femininas? Com maneirosas palavras cavalheirescas?” Na prática, contudo, o vocabulário de Whitman era uma estranha mescla de linguagem comum e parágrafos literários, uma mistura, às vezes, incongruente, de espontaneidade e afetação. Se por um lado defendia a força da linguagem vulgar e elogiava a gíria, por outro fez o uso extravagante de estrangeirismo, como no verso: “embaraçoso éclaircissement por tanto tempo aprazado” e “escuta meu contabile—Oh Liberdad!” e coisas absurdas como “imperturba-me”, “filosofistas” e “exaltai o poderoso eidolon da terra”. Esses feitos inconseqüentes não assustavam Whitman: “Contradigo-me?”, dizia erguendo os ombros. “Pois bem, contradigo-me. Sou muito amplo: contenho multidões.” Seu credo estava solto pelos quatro ventos, divertia-se em dissolver as formas, tirava os leitores das bibliotecas empoeiradas e colocavaos em contato com a radiante luz solar e o ar livre. Para Whitman o cósmico e o cotidiano eram sinônimos:

 med.00400.561.jpg Creio que uma folha de relva não faz menos que a jornada diária das estrelas, E a formiga é igualmente perfeita, e o grão de areia, e o ovo da garriça, E a raineta é uma obra-prima para o altíssimo. E um corredor de amoras pretas adornaria os salões do céu, E a mais estreita junta de minha mão faz qualquer máquina parecer desprezível, E a vaca ruminando com sua cabeça volúvel supera qualquer estátua, E uma ratazana é um milagre suficiente para dobrar os joelhos de sextilhões de infiéis.

Whitman desagrada muitos leitores, não somente pela falta de gosto ocasional, mas também porque em suas obras existe uma loquacidade excessiva e uma constante aglutinação do transcendental e do trivial em fastidiosos catálogos. No entanto, em seus melhores textos tudo está livre de afetação e os poemas se elevam a uma região em que ganham as dimensões da eternidade. Suas linhas são densas e podem ser a um só tempo sensuais e comovedoramente ternas. São tão dramáticas quanto um juramento veemente, e tão graves como os salmos que lhes serviram de modelo. Tudo em Whitman contribui para manifestar e conciliar as suas próprias contradições. Mas a aceitação indiscriminada que está implícita em Whitman é a medula de sua fé. A forma de seus poemas resulta da essência de seu afeto monista, de sua capacidade de abarcar, no mesmo amplexo de mística afirmação, a beleza e a fealdade, o bem e o mal, o simples e o complexo. é necessário admitir que Folhas de Relva é obra desigual, descuidada e até sem forma; mas é também algo de monumental, é um livro gigantesco. Não constitui um único pico isolado nas alturas, mas, sim, uma variedade de picos em alturas as mais distintas. Se alguns de seus abismos parecem descer abaixo do nível do mar, suas alturas produzem estonteante vertigem, já que sua imensa elevação foi poucas vezes ultrapassada. Além disso, não resta dúvida de que o livro se identifica com o autor. De suas páginas emerge Whitman como personagem desafiadora e polêmica, enigmática, cheia de arestas e extravagante, mas como um colosso de seu tempo e de todos os tempos.

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Cronologia

  • 1819—31 de maio: Nascimento de Walt Whitman, em West Hills, Long Island, Estado de Nova Iorque. Segundo filho de Walter Whitman e de Louisa Van Velsor Whitman.
  • 1820–1823—Vive em West Hills.
  • 1824—Muda-se para o Brooklyn. Entra em escola pública.
  • 1831—Trabalha em um escritório de advocacia; depois, num consultório médico.
  • 1834—Ingressa em uma tipografia como aprendiz do ofício.
  • 1836—Inicia a carreira de jornalista no Mirror, Nova Iorque.
  • 1838—Professor em escolas agrícolas de Suffolk. Também leciona em escolas do Queens, durante três anos. Publica o semanário The Long Islander, em Hungtington.
  • 1840—Inscreve-se como eleitor. Volta à cidade de Nova Iorque, trabalhando como jornalista e editor de periódico.
  • 1841—Colabora no jornal New World
  • 1846–1847—Dirige o jornal Brooklyn Daily Eagle.
  • 1848—Dirige-se para o Sul, acompanhado de Jeff, passando por Alleghenies, Ohio, indo até o Mississippi. Chega a New Orleans, onde foi contratado como redator-chefe do jornal The Crescent durante três meses apenas. No mesmo ano, dirige o semanário The Freeman, Brooklyn, dele se retirando poucos meses depois. Passa a construir casas e vendê-las.
  • 1849—É delegado à convenção que indicou o nome de Van Buren para Presidente dos Estados Unidos.
  • 1855—Publica a primeira edição de Folhas de Relva, um  med.00400.563.jpg opúsculo contendo 12 poemas. Fim de um círculo cultural e início de outro. Adoção de um idioma próprio, nativo. Falece o pai de Whitman.
  • 1856—Segunda edição de Folhas de Relva, com 384 páginas.
  • 1857—Nomeado redator do Brooklyn Daily Times, ataca as falcatruas legalizadas, o meretrício organizado em comércio e as injustiças sociais aceitas pela maioria complacente.
  • 1860—Terceira edição de Folhas de Relva, com 456 páginas.
  • 1861—13 de abril: Início da Guerra de Secessã.
  • 1862—Vai para os campos de batalha. Trabalha como enfermeiro em hospitais, atendendo feridos de combates. Depois das batalhas, manteve-se ainda na atividade por três anos.
  • 1865—Lee rende-se em Appomatox. Whitman ocupa um cargo em escritórios do Governo.
  • 1867—Quarta edição de Folhas de Relva, incluindo-se nela "O rufar do tambor".
  • 1868—O poeta Freiligrath publica sua versão para o alemão de Folhas de Relva em um jornal de Augsburg.
  • 1871—Quinta edição de Folhas de Relva. Publica Democratic Vistas.
  • 1873—Prostrado por paralisia em Washington. Procura uma praia no Atlântico por ordem médica. Em Filadélfia, sua moléstia se agrava. Fixa moradia em Camden, New Jersey, permanecendo ali durante 15 anos, até a morte. Sexta edição de Folhas de Relva, com outro volume—"Two Rivulets"—de prosa alternada com poemas.
  • 1881—Sétima edição de Folhas de Relva, publicada por Osgood & Co., Boston.
  •  med.00400.564.jpg
  • 1882—Oitava edição de Folhas de Relva, publicada por David MacKay, Filadélfia. Também edita um volume em prosa—Specimen Days—, contendo notas autogiográficas.
  • 1884—Adquire a casa da Mickle Street, 330, Candem, New Jersey, onde passa a residir.
  • 1888—Às vésperas de seus 70 anos de idade, fica impossibilitado de andar; é a conseqüência de seu árduo trabalho em hospitais (1863–1864). Tem um volume em prosa e verso no prelo denominado November Boughs.
  • 1891—Revê a nona edição de Folhas de Relva, último toque de suas mãos na obra revolucionária. Somente em 1926 seriam recolhidos em edição completa vários poemas póstumos e "desprezados" pelo poeta.
  • 1892—26 de março: Morte de Walt Whitman, em Camden, New Jersey, pronunciando as palavras: "Mude-me de posição, Warry".

Índice

Introdução 11
FOLHAS DE RELVA
Letreiros
Eu canto o meu próprio Ser 25
À medida que eu refletia em silêncio 25
Na cabine dos navios em pleno mar 26
Às terras estrangeiras 27
A um historiador 27
A ti, causa antiga! 28
Espectros 28
Por ele eu canto 31
Enquanto eu lia o livro 31
Ao começar os meus estudos 32
Precursores 32
Para os Estados Unidos 32
Jornadas pelos Estados Unidos 33
Para uma certa cantarina 33
Eu imperturbável 34
Sabedoria 34
A nau saindo 34
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Ouço a América cantando 35
Que lugar está sitiado? 35
Ainda assim eu canto o um 35
Não fecheis as vossas portas 36
Poetas do porvir 36
Para ti 36
A ti, leitor 37
Saindo de Paumanok 37
Canção de mim mesmo 49
Filhos De Adão
Ao jardim, o mundo torna 109
Desde os rios confinados à dor 109
Eu canto o corpo elétrico 111
Uma mulher espera por mim 119
O Eu espontâneo 121
Uma hora para a loucura e o regozijo 123
Do encapelado oceano da multidão 124
Eras e eras retornando a intervalos 125
Nós também, por quanto tempo fomos enganados 125
Ó hímen! Ó himeneu! 126
Sou aquele que sofre por amor 126
Momentos puros 126
Certa vez passei por uma cidade populosa 127
Eu vos escutei, solenes e doces tubos do órgão 127
De frente para o oeste, no litoral da Califórnia 128
Como Adão ao amanhecer 128
Cálamo
Por caminhos nunca antes trilhados 129
Folhagem perfumada de meu peito 130
Quem quer que me estejas agora segurando nas mãos 131
Por ti, ó Democracia 133
Estes poemas canto na primavera 133
Não tendo de meu peito estriado apenas 135
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Da terrível dúvida das aparências 135
O princípio de toda a metafísica 136
Registradores das idades conseqüentemente 137
Ouvi no fim do dia 137
És tu mais uma pessoa atraída por mim? 138
Raízes e folhas abandonadas a si mesmas 139
Não as chamas que aquecem e consomem 139
Gotas caídas 140
Cidade de orgias 140
Contempla esta face morena 141
Vi, em Louisiana, um carvalho vivo crescendo 141
A um desconhedico 142
Neste momento, enternecido e reflexivo 142
Ouvi dizer que es acusações foram contra mim 143
A relva dos prados marcando a divisa 143
Quando examino a fama conquistada 143
Nós, dois meninos, juntos e atados um ao outro 144
Uma promessa para a Califórnia 144
Aqui as folhas mais delicadas de mim 145
Nenhuma máquina para economizar mão-de-obra 145
Uma visão de relance 145
Uma folha de mão em mão 146
Terra, minha imagem 146
Sonhei em um sonho 146
Para que achas que tenho esta pena nas mãos? 147
Para o leste e para o oeste 147
Algumas vez, estando com aquele a quem amo 147
Para um jovem do oeste 148
Âncora encalhada para sempre, ó amor! 148
Em meio à multidão 148
Ó tu, para quem com freqüência e em silêncio eu acorro 149
Aquela sombra minha imagem 149
Pleno de vida agora 149
Salut au monde! 150
Canção da estrada aberta 160
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Atravessando a balsa do Brooklyn 170
Canção do Respondente 176
Nossa antiga feuillage 181
Uma canção de alegrias 186
Canção do grande machado 193
Canção à exposição 204
Canção da sequóia 214
Uma canção sobre a Terra que gira 226
Juventude, dia, velhice e noite 232
Aves De Arribaçâo
Canção do universal 233
Pioneiros! Ó pioneiros! 235
Para ti 239
França, o 18º ano destes Estados 242
O eu e o que é meu 243
Ano de meteoros (1859–60) 245
Com antecedentes 246
Um carro alegórico na Broadway 248
À Deriva No Mar
Saindo do berço, para sempre embalado 252
Quando refluí com o oceano da vida 258
Lágrimas 261
Ao pássaro navio-de-guerra 262
Na cabine de comando de um navio 262
À noite, na praia 263
O mundo submarino 264
Na praia, sozinho, à noite 265
Canção para todos os mares, para todas as embarcações 266
Patrulhando Barnegat 267
Depois da embarcação marítima 267
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À Margem Da Estrada
Uma balada de Boston (1854) 269
Europa, os 72º e 73º anos destes Estados 271
Um espelho de mão 273
Deuses 273
Gérmens 274
Pensamentos 275
Quando ouvi o astrônomo erudito 275
Perfeições 275
Ó meu eu! Ó vida! 276
Para um Presidente 276
Sento-me e observo 276
Os ricos doadores 277
O gracejo das águias 277
Vagando em pensamento 278
O quadro de uma fazenda 278
O espanto de uma criança 278
O corredor 278
Lindas mulheres 279
Mãe e bebê 279
Pensamento 279
De viseira abaixada 279
Pensamento 279
Deslizando sobre tudo 280
Nunca veio sobre ti uma hora 280
Pensamento 280
A velhice 280
Lugares e tempos 280
Oferendas 281
Aos Estados 281
O Rufar Do Tambor
Ó primeiramente, canções para um prelúdio 282
Mil oitocentos e sessenta e um 284
Rufai! Rufai, tambores! 285
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Saindo de Paumanok, eu vôo como um pássaro 286
Canção do estandarte ao amanhecer 287
Erguei-vos, ó dias, de vossas profundezas insondáveis 293
Virgínia—O Oeste 295
Cidade dos navios 296
A história do centenário 297
A cavalaria cruzando um baixio 301
Bivaque na encosta da montanha 302
Corporações do exército em marcha 302
Próximo à chama intermitente do bivaque 303
Retorna dos campos, pai 303
Minha estranha vigilância no campo, certa noita 305
Uma marcha em colunas sob pressão e a estrada desconhecida 306
Uma visão no acampamento no amanhecer cinzento e sombrio 307
Quando aborrecido andei sem rumo pelas florestas da Virgínia 308
Não foi o comandante 308
O ano que tremeu e cambaleou 309
O médico de feridas 309
Por muito tempo, tempo demais, América! 312
Dá-me o sol esplêndido e silencioso 312
Hino fúnebre para dois veteranos 314
Sobre a carnagem rosa, uma voz profética 315
Vi o velho General na baía 316
A visão dos artilheiros 317
Etiópia saudando as cores 318
A juventude não me pertence 319
Corrida de veteranos 319
Mundo, preste bem atenção 319
Ó rapaz dos prados de rosto bronzeado 319
Olha para baixo, lua bela 320
Reconciliação 320
Solene, como de um em um 320
Quando repouso minha cabeça no teu colo, companheiro 321
Delicado agrupamento 321
Para um certo civil 322
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Contempla, vitoriosa sobre os picos 322
Espírito cuja obra está completa 323
Adeus a um soldado 324
Volta, ó Liberdade 324
Na direção do solo forrado de folhas caminham 325
Memórias Do Presidente Lincoln
Quando os lilases florescidos duraram na varanda 326
Ó Capitão! meu Capitão! 334
Silenciados sejam os acampamentos hoje 335
Este pó foi um dia o homem 335
Na margem do Ontário azul 336
Reversões 351
Regatos Do Outono
Como conseqüência, etc. 352
O retorno dos heróis 353
Havia uma criança indo adiante 359
Velha Irlanda 361
A casa morta da cidade 361
Esta mistura 362
Para um revolucionário europeu derrotado 364
Terras anônimas 366
Canção pelo tempo de lilás 367
Desenhos para uma tumba 373
Saindo de trás desta máscara 375
Vocalismo 376
Para aquele que foi crucificado 378
Vós, condenados em julgamentos nas cortes 378
Leis para as criações 379
Para uma prostituta comum 380
Procurei por um longo tempo 380
Pensamento 381
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Milagres 381
Faíscas da roda 382
A um pupilo 383
Desentranhado das entranhas 383
O que sou eu, afinal 384
Cosmos 384
Outros podem louvar aquilo de que gostam 385
Quem aprende minha lição inteira? 385
Testes 387
A tocha 387
Ó estrela da França 387
O domador de bois 389
O pensamento de um velho homem sobre a escola 390
Vagando na manhã 390
Música italiana em Dakota 391
Com todos os teus dons 392
Minha galeria de fotos 392
Os Estados da pradaria 392
Orgulhosa música da tempestade 393
Passagem para a Índia 399
Prece de Colombo 408
Os que dormem 410
Transposições 418
Pensar sobre o tempo 419
Sussurros Da Morte Celeste
Aventuras-te agora, ó alma 426
Sussurros da morte celeste 426
Cantando o quadrado deífico 427
Sobre ele, a quem amo dia e noite 429
Ainda, ainda, tuas horas de depressão 430
Como se um fantasma me acariciasse 430
Garantias 431
Anos de areia movediça 432
Aquela música sempre está em torno de mim 432
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Que navio aturdido no mar 433
Uma aranha paciente e silenciosa 433
Vivendo sempre, sempre morrendo 433
Para alguém que brevemente morrerá 434
Noite nas pradarias 434
Pensamento 435
A última invocação 436
Quando assistia aos agricultores arando a terra 436
Reflexivo e vacilante 436
Tu, mãe, com tua progênie à altura 437
Um retrato de Paumanok 442
Do Meio-Dia À Noite Estrelada
Teu orbe suspenso inteiramente encantador 443
Faces 444
O trombeteiro místico 448
Para uma locomotiva no inverno 451
Ó Sul magnético 452
Mannahatta 453
Tudo é verdade 454
Uma canção-enigma 455
Sempre mais alto 456
Ah, pobrezas, encolhimentos e recuos amuados 457
Pensamentos 458
Médiums 458
Tece, minha vida intrépida 459
Espanha, 1873–74 459
Próximo à ampla praia de Potomac 460
Dos longínquos desfiladeiros de Dakota 460
Antigos sonhos de guerra 461
Estamenha densamenta matizada 462
O melhor que vejo em ti 462
Espírito que formou este cenário 463
Quando ando, nestes dias majestosos 463
Uma meia-noite clara 464
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Canções De Despedida
À medida que a hora se aproxima 465
Anos de modernidade 465
Cinzas dos soldados 467
Pensamentos 469
Canção do crepúsculo 470
Igualmente em teus portais, morte 473
Meu legado 473
Melancólico ao meditar sobre a morte dela 474
Acampamentos verdes 474
O soluçar dos sinos 476
Quando eles se aproximam do fim 476
Alegria, colega de bordo, alegria! 476
O desejo inenarrável 477
Portais 477
Estes cânticos 477
Agora finale para a margem 477
Até breve! 478
Primeiro Anexo: Areias Nos Setenta
Mannahatta 481
Paumanok 481
De Montauk Point 481
Para aqueles que falharam 482
Um cântico encerrando sessenta e nove 482
Os soldados mais corajosos 482
Uma fonte de tipo 483
Quando aqui me sento para escrever 483
Meu canário 483
Perguntas para o meu septuagésimo ano 483
Os mátires de Wallabout 484
O primeiro dente-de-leão 484
América 484
Memórias 485
Hoje e tu 485
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Depois da fascinação do dia 485
Abraham Lincoln, nascido em 12 de fevereiro de 1809 485
Selecionado dos espetáculos de maio 486
Dias serenos 486
Fantasias em Navesink 486
Dia de eleição, novembro de 1884 490
Com lábios arrogantes vigorosos, ó Mar! 490
A morte do General Grant 491
Jaqueta vermelha (do topo do mastro) 492
Monumento de Washington, fevereiro de 1885 492
Daquela tua alegre garganta 493
Broadway 493
Para captar a cadência final das canções 494
Velho Salt Kossabone 494
O tenor morto 495
Continuidades 496
Yonnondio 496
Vida 497
"Indo a algum lugar" 497
Pequeno o tema de meu Canto 497
Verdadeiros conquistadores 498
Os Estados Unidos para os críticos do Velho Mundo 498
O pensamento tranqüilizador de todos 499
Agradecimentos em idade avançada 499
Vida e morte 500
A voz da chuva 500
Logo as folhas do inverno hão de estar aqui 500
Enquanto não esquecemos o passado 501
O veterano moribundo 501
Lições mais fortes 502
Um crepúsculo nos prados 502
Vinte anos 502
Brotos de laranja de Flórida pelo correio 503
Crepúsculo 503
Vós, tardias e esparsas folhas de mim 504
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Não descarnados, contudo ramos apenas latentes 504
O Imperador morto 504
Como a chama sinalizadora dos gregos 505
O navio desmantelado 505
Agora, canções precedentes, adeus 505
Uma bonança quando a noite cai 506
Os cumes tremulantes da idade avançada 506
Depois do jantar e da conversa 507
Segunda Anexo: Adeus, Minha Ilusão
Nota à guisa de prefácio para o segundo anexo 508
Navega para não mais retornar, iate fantasma 510
Últimas gotas demoradas 510
Adeus, minha ilusão 511
Adiante, adiante com os vossos mesmos pares aprazíveis 511
Meu septuagésimo primeiro ano de idade 512
Aparições 512
A pálida grinalda 513
Um dia terminado 513
Navio da idade avançada & A morte dos maliciosos 514
Ao ano pendente 514
Decifrando Shakespeare-Bacon 515
Daqui a muito, muito tempo 515
Bravo, exposição de Paris! 515
Sons de interpolaço 516
Para a brisa do crepúsculo 517
Velhos cantos 518
Uma saudação de Natal 519
Sons do inverno 519
Uma canção crepuscular 519
Quando o poeta surgiu inteiramente amadurecido 520
Osceola 521
Uma voz proveniente da morte 522
Um ensinamento persa 523
O lugar-comum 524
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"O Completo Divino Catálogo da Harmonia" 524
Miragens 525
O significado de Folhas de Relva 526
O que não foi exprimido 526
Grandioso é o visível 527
Botões invisíveis 527
Adeus, minha ilusão! 527
Um olhar retrospectivo sobre as estradas viajadas 529
Dados biográficos 547
Cronologia 560

Notes:

1. Atendendo a sugestões de leitores, livreiros e professores, a partir de certo número da coleção, começamos a publicar, de alguns autores, outras obras além da sua obra-prima. [back]

2. Tradutor e poeta. [back]

3. Hippolyte Adolphe Taine (Vouziers, 1828 — Paris, 1893): filósofo, historiador e crítico literário francês. [back]

4. A íntegra desse texto de Whitman encontra-se nesta edição, p. 527. [back]

5. CHARDIN, Teilhard de. Vida e pensamentos. São Paulo: Livro Clipping — Martin Claret, 2001, p. 99. [back]

6. Id., ibid. [back]

7. Id., ibid, p. 102. [back]

8. Id., ibid, pp. 104, 106. [back]

9. Id., ibid, pp. 106-107. [back]

10. BLOOM, Harold. Gênio — os 100 autores mais criativos da história da Literatura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 601-604. [back]

11. CHARDIN, Teilhard de. Op. cit., pp. 24-41. [back]

12. PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 336. [back]

13. ROHDEN, Huberto. A metafísica do cristianismo. São Paulo: Martin Claret, 1991, p. 14. [back]

14. BLOOM, Harold. Op. cit. [back]

15. MONTEIRO, Irineu. Walt Whitman: Profeta da Liberdade. São Paulo: Martin Claret, 1984. [back]

16. MONTEIRO, Irineu. Op. cit., pp. 81-84. [back]

17. (Indubitavelmente, no Brooklyn, dentro de uma velha câmara mortuária, não marcada por distinções especiais, jazem amontoados neste momento os autênticos restos mortais dos mais dedicados e mais antigos revolucionários patriotas que estiveram nas prisões marítimas e prisões terrestres britânicas na época que foi de 1776 a 1783, provenientes de Nova Iorque e arredores e de toda a extensão de Long Island; originalmente foram eles enterrados — muitos milhares deles — em trincheiras nas areias de Wallabout) [back]

18. (Mais de oitenta e três graus ao norte — a cerca de um bom dia de navegação a vapor do Pólo por um de nossos velozes marinheiros em mar aberto — com superioridade, o explorador ouviu a canção de uma única emberiza-das-neves, alegremente ressoando sobre a desolação.) [back]

19. (Voltaire fechou uma famosa discussão clamando que um navio de guerra e a Grand Ópera eram provas suficientes do progresso da civilização e da França, em seus dias) [back]

20. (Quando eu já era quase um homem, vivendo no Brooklyn, Nova Iorque (meados de 1838) encontrei-me com um oficial da Marinha dos Estados Unidos que retornara do Forte Moultrie, S. C., e tive com ele longas conversas — soube da ocorrência abaixo descrita — a morte de Osceola. Esse último foi um jovem valente, líder Seminole (tribo indígena do sul da América do Norte) na guerra da Flórida que se travou naquele dias — que foi rendido e aprisionado por nossas tropas, e morreu literalmente de "coração partido", no Forte Moultrie. Adoeceu por estar confinado — os médicos e oficiais deram todas as liberdades e gentilezas possíveis para tentar salvá-lo; e então o final) [back]

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